quarta-feira, 29 de março de 2017

O SISTEMA EM AÇÃO



                                                                Reinaldo Lobo

         O Brasil vai descobrindo, finalmente, a existência e a extensão do Sistema Corrupto. Várias provas foram fornecidas nos últimos dias. Ficamos sabendo que não se restringe a um esquema na Petrobrás, nos Correios ou qualquer ente isolado estatal, paraestatal ou privado. É uma verdadeira constelação de planetas e estrelas no meio de uma galáxia – a “oligarquia liberal” dominante.
         Soubemos, inclusive, que esse subsistema ilegal girando em nosso universo cultural e político é longevo e transgeracional. O patriarca da nossa maior empreiteira, o sênior Emilio Odebrecht, revelou em depoimento para a Operação Lava Jato que seu pai, avô de Marcelo, o neto detido, já pagava propina há décadas para operar junto ao Estado. Não é difícil deduzir que o mesmo processo acontece em outras gigantes do ramo.
         O Sistema existe estruturado desde, pelo menos, a Ditadura civil-militar que governou de 1964 a 1985, entrou pela Nova República, reina até agora pelas mãos do PMDB. Não nos enganemos: esse não é o único partido agente e beneficiário. Envolve todos os partidos, sem exceção. No governo de FHC, um jornalista, Paulo Francis, denunciou sua incrustação nas diretorias da Petrobrás, sem êxito. Acabou morrendo antes de dar as provas nem apresentar suas fontes de informação.
          Se não criaram, os militares foram os responsáveis pela consolidação do Sistema. Como se imaginavam nacionalistas, seus governos ditatoriais escolheram entregar a empreiteiras nacionais as obras do seu ufanismo sobre um “Brasil Grande”.
        Foi então que surgiram esses gigantescos conglomerados de “tocadores de obras” financiadas pelos bancos estatais. Participavam do esquema desde políticos como Paulo Maluf, militares como Mário Andreazza, até fundos de pensão e empresas privadas terceirizadas. Depois da Ditadura, já no período Sarney, o Sistema cresceu, “normalizou-se”, ficou colado nas diversas instituições do Estado. Foi quando se consagrou a expressão “mamar nas tetas do Estado”, dirigida como crítica tanto pelos liberais como pelos sociólogos marxistas.
        O governo FHC fez algo parecido com a invenção militar das empreiteiras locais, ao dar toda a força para fortalecer a concentração de um sistema bancário endógeno, criando grandes conglomerados de uma banca nacional, em detrimento da concorrência estrangeira. Hoje, esses monstros bancários monopolizam as decisões na esfera financeira e econômica, têm lucros exorbitantes, estratosféricos, agindo como verdadeiros cartéis. É esse controle da concorrência que impede a diminuição dos juros para o consumidor, mesmo quando o Banco Central derruba a taxa Selic.
        Nenhum político que quisesse se eleger estava isento de passar pelo filtro das empreiteiras, da rede bancária privada conivente, das indústrias e do agronegócio subsidiado. Os financiamentos de campanhas eleitorais contavam, como ainda contam, com a retribuição de favores dos partidos e políticos premiados.
        Os marxistas costumam dizer que o capitalismo é, por natureza, corrupto. Consideram essas acomodações sistêmicas apenas um efeito da corrupção essencial. Ora, não é dessa corrupção definida teoricamente que falamos. O subsistema da corrupção brasileira serve, sem dúvida, a uma oligarquia, mas tem sua especificidade histórica e suas peculiaridades.
       Muito já se escreveu sobre o patrimonialismo herdado da colonização portuguesa e o hábito de nossos políticos se considerarem donos do poder assim que o assumem. Vendem o poder como uma mercadoria que detêm.  Mas o mercado é restrito, passa por essa fusão dos interesses estatais com os privados, bem como por uma burocracia – escolhida muitas vezes pelos políticos e suas bancadas especiais: como a da Bala, do Boi e da Bíblia.
      Há ainda os gestores dos fundos de pensão, aparentemente regrados pelo Estado, mas que têm interesses e vida própria. Pelo menos um sociólogo, Chico de Oliveira, mostrou que o caso brasileiro não é de capitalismo “puro”, mas algo semelhante a um Ornitorrinco, aquele animal misto de ave e mamífero, raro, uma verdadeira exceção na escala evolutiva.
      O Sistema hoje parece ameaçado e em crise. Isso é “culpa do PT”. Ao entrar na cena política adquirindo poder, este introduziu o distributivismo e a participação popular, via Estado, nas benesses do consumo e da renda.
      Desequilibrou o Sistema, cuja única finalidade era beneficiar a “oligarquia liberal”, formada pela participação nas instituições e mantendo o  subsistema ilegal. Expôs sua contradição entre o funcionamento do crescimento das forças produtivas e o sistema de apropriação.
      A corrupção reinante mantinha o sistema capitalista em pleno funcionamento, até a entrada do caçula da corrupção, que trazia com ele, contudo, o vírus do distributivismo, chamado pelos ideólogos do Sistema de populismo.
      O atual governo do conglomerado PMDB-DEM-PSDB tem a missão de consertar o desequilíbrio, restaurando a exclusão das massas populares de qualquer participação. Para isso, é preciso primeiro “estancar a sangria” da Lava Jato e a perseguição aos seus membros genuínos, como sugeriu o mais claro e consciente de seus representantes, o senador Romero Jucá. A meta inicial era só pegar o PT, mas a Lava Jato fugiu do controle, uma vez que o Sistema considerava necessário também salvar “os outros”, como Aécio, Serra, Alckmin, Aloisio Nunes Ferreira, etc., cujos nomes foram revelados pelas delações das empreiteiras.
      Não está fácil. Os escândalos se sucedem. Um outro desequilíbrio ocorreu ao longo dos anos após a Ditadura, quando houve a independência da Polícia Federal e dos jovens Procuradores da República. Aparelhados para servir às instituições republicanas, os poderosos contavam com que eles se voltariam apenas contra os intrusos ou estranhos ao seu grupo. Mas a dinâmica do Judiciário, aliada à divulgação exacerbada pela própria mídia conservadora, impõe aos juízes que considerem as provas contra o Sistema que encontram no caminho.
      Essas provas estão ameaçando conter o furor antipopular do atual governo, ainda que este esteja inteiramente a serviço da oligarquia. Essa é hoje a principal contradição que faz com que até juízes do Supremo se comportem como verdadeiros militantes partidários, tentando sustentar a continuidade do Sistema Corrupto, pois está em jogo o próprio capitalismo, para que ele nunca acabe.


quinta-feira, 9 de março de 2017

A ESTUPIDEZ GENERALIZADA


                                                                              
                                                                              Reinaldo Lobo

     Um belo dia o francês Antoine, aos 25 anos, decidiu ser estúpido. Anuncia aos seus amigos mais próximos que, dali em diante, iria investir na idiotice. Tinha suas razões.
     Ser inteligente, apreciar leituras, não gostar da burocracia e de todos os seus disfarces, detestar ser manipulado e explorado, odiar ser obrigado a estudar assuntos desinteressantes, ser capaz de traduzir do aramaico, conhecer profundamente o cinema de Frank Capra e de Sam Peckinpah, “não o levaram muito longe”. Na verdade, a quase lugar algum.
     O seu plano perfeito foi o de se voltar para o cultivo da idiotice como forma de sobrevivência. Depois de tentar o alcoolismo e o suicídio, Antoine convenceu-se de que só a estupidez lhe permitiria ser plenamente aceito pela sociedade em que vive – a contemporânea.
     E o que pode ser, pergunta-se ele, mais estúpido do que ganhar dinheiro, muito dinheiro, e gastar em bens de consumo inúteis?
     Esse é o resumo do sentido inicial de um pequeno grande livro francês do jovem Martin Page, de 31 anos, possivelmente com motivos autobiográficos: ”Como me tornei um estúpido”, traduzido pela Editora Rocco em 2005 e relançado agora.
   Um texto nada estúpido, por sinal. Dele, disse o jornal “Le Monde” que se trata de “um romance coberto de razões e que revela um escritor que domina seu estilo tão bem quanto seu humor fino e sutil”.
    A contundência de Page está em revelar o “espírito do tempo” dominante na sociedade atual.  Apesar de se autodenominar “pós-moderna” ou de se situar para além da modernidade, parece imediatista, primitiva, gananciosa, violenta, regressiva, de uma ética rasteira movida por “interesses egoístas”. E conformista, quase de um conformismo generalizado.
    As exceções são pessoas como Martin Page e alguns outros que questionam a alienação dos cidadãos rotinizados do trabalho para casa, a balada e a TV, com seu lazer consumista e a submissão despolitizada. E, por que não, cretinizados?
     Se a modernidade era o questionamento permanente do que estava estabelecido, tanto em arte quanto em política ou filosofia, essa inquietação praticamente começou a desaparecer a partir de 1950. Essa é uma data arbitrária, mas é por volta dessa época que o demônio crítico que animava o Ocidente com seu sopro criador durante mais de dois séculos, como dizia Cornelius Castoriadis, começou a perder força até quase sumir hoje em dia.
     Não é caso de se exigir das pessoas em geral que leiam só bons livros, obras primas de gênios, mas pode-se dizer que o culto atual do pragmatismo e da imediatez ajuda e imbecilizar. Ah, dirão, mas as crianças leem e-mails e frequentam computadores, assistem a filmes e são obrigadas a redigir na internet. Sem dúvida, mas não é do QI nem de habilidades práticas de que se fala sobre a estupidez contemporânea. Citemos a ironia da personagem bem construída de Antoine:
      “Uma coisa que se pode admitir é que frequentar grandes obras, servir-se do seu próprio espírito, ler livros de gênios não asseguram a ninguém inteligência, mas tornam isso provável. Naturalmente, há pessoas que terão lido Freud, Platão, que saberão fazer trocadilhos com os “quarks” e ver a diferença entre os falcões-peregrinos e um peneireiro, e que, todavia, serão rematados imbecis. Não obstante, potencialmente, estando em contato com uma multidão de estímulos e deixando seu espírito frequentar uma atmosfera enriquecedora, a inteligência encontra terreno favorável para o seu desenvolvimento, exatamente como uma doença. Pois a inteligência é uma doença”.
      Ironia à parte, a inteligência é uma doença de que deveríamos nos livrar?
      A personagem tem certa razão em chamá-la de doença, pois produz inquietações. Até mesmo stress, quando se volta para o confronto com uma realidade estabelecida. “Pensar é dizer Não! ”, lembrava o filósofo Gaston Bachelard. É um tipo de doença contagiosa, que leva, contudo, ao progresso.
      O que estamos enfrentando no mundo atual é o contrário do progresso, ou, pelo menos a sua negação. Vejam o estado das artes e da política, por exemplo. Patinam sem sair do lugar. Não se pode dizer isso da tecnologia e da ciência, que avançam, mas em direção a quê? Qual a sua qualidade humana? Teria razão Heidegger quando desconfiava da ciência, pois ela imporia um déficit de Ser? 
       Há inteligência em toda parte, mas não parece acompanhada de sensatez. Há intelectuais, operários inteligentes, estrategistas do mercado que trabalham para reproduzir inteligentemente o sistema em que vivemos. O sistema é que é burro, digamos assim? A era da letargia do consumo e dos prazeres fugazes, dos laços rápidos e do whatsApp induz à estupidez? Dizer sim é muito fácil, talvez a situação seja mais complexa.
      Para o personagem Antoine, a estupidez é um grande refúgio e uma forma de se relacionar com os iguais na nossa vida cotidiana. Nesse sentido, a inteligência seria mesmo uma doença, algo negativo capaz de atrapalhar a convivência.
      No plano da técnica e da economia, a obsolescência rápida das máquinas, celulares e outras, mostra que a inteligência produz progresso, mas também problemas. Se algo existe hoje como um ser funcional, amanhã se torna um não-ser, inexistente. Será que desacelerar em vários planos o progresso, não seria tornar a convivência um pouco mais fácil e calma, aplainá-la, ainda que mais burra?
      Nosso herói Antoine pensa e repensa esses problemas do conformismo generalizado, apesar de almejar à estupidez. E diz, citando o roteirista de “Nascido para Matar”, Michael Herr, que comenta em seu brilhante livro sobre Stanley Kubrick :
    “A estupidez das pessoas não deriva de sua falta de inteligência, mas da sua falta de coragem.”