quinta-feira, 9 de março de 2017

A ESTUPIDEZ GENERALIZADA


                                                                              
                                                                              Reinaldo Lobo

     Um belo dia o francês Antoine, aos 25 anos, decidiu ser estúpido. Anuncia aos seus amigos mais próximos que, dali em diante, iria investir na idiotice. Tinha suas razões.
     Ser inteligente, apreciar leituras, não gostar da burocracia e de todos os seus disfarces, detestar ser manipulado e explorado, odiar ser obrigado a estudar assuntos desinteressantes, ser capaz de traduzir do aramaico, conhecer profundamente o cinema de Frank Capra e de Sam Peckinpah, “não o levaram muito longe”. Na verdade, a quase lugar algum.
     O seu plano perfeito foi o de se voltar para o cultivo da idiotice como forma de sobrevivência. Depois de tentar o alcoolismo e o suicídio, Antoine convenceu-se de que só a estupidez lhe permitiria ser plenamente aceito pela sociedade em que vive – a contemporânea.
     E o que pode ser, pergunta-se ele, mais estúpido do que ganhar dinheiro, muito dinheiro, e gastar em bens de consumo inúteis?
     Esse é o resumo do sentido inicial de um pequeno grande livro francês do jovem Martin Page, de 31 anos, possivelmente com motivos autobiográficos: ”Como me tornei um estúpido”, traduzido pela Editora Rocco em 2005 e relançado agora.
   Um texto nada estúpido, por sinal. Dele, disse o jornal “Le Monde” que se trata de “um romance coberto de razões e que revela um escritor que domina seu estilo tão bem quanto seu humor fino e sutil”.
    A contundência de Page está em revelar o “espírito do tempo” dominante na sociedade atual.  Apesar de se autodenominar “pós-moderna” ou de se situar para além da modernidade, parece imediatista, primitiva, gananciosa, violenta, regressiva, de uma ética rasteira movida por “interesses egoístas”. E conformista, quase de um conformismo generalizado.
    As exceções são pessoas como Martin Page e alguns outros que questionam a alienação dos cidadãos rotinizados do trabalho para casa, a balada e a TV, com seu lazer consumista e a submissão despolitizada. E, por que não, cretinizados?
     Se a modernidade era o questionamento permanente do que estava estabelecido, tanto em arte quanto em política ou filosofia, essa inquietação praticamente começou a desaparecer a partir de 1950. Essa é uma data arbitrária, mas é por volta dessa época que o demônio crítico que animava o Ocidente com seu sopro criador durante mais de dois séculos, como dizia Cornelius Castoriadis, começou a perder força até quase sumir hoje em dia.
     Não é caso de se exigir das pessoas em geral que leiam só bons livros, obras primas de gênios, mas pode-se dizer que o culto atual do pragmatismo e da imediatez ajuda e imbecilizar. Ah, dirão, mas as crianças leem e-mails e frequentam computadores, assistem a filmes e são obrigadas a redigir na internet. Sem dúvida, mas não é do QI nem de habilidades práticas de que se fala sobre a estupidez contemporânea. Citemos a ironia da personagem bem construída de Antoine:
      “Uma coisa que se pode admitir é que frequentar grandes obras, servir-se do seu próprio espírito, ler livros de gênios não asseguram a ninguém inteligência, mas tornam isso provável. Naturalmente, há pessoas que terão lido Freud, Platão, que saberão fazer trocadilhos com os “quarks” e ver a diferença entre os falcões-peregrinos e um peneireiro, e que, todavia, serão rematados imbecis. Não obstante, potencialmente, estando em contato com uma multidão de estímulos e deixando seu espírito frequentar uma atmosfera enriquecedora, a inteligência encontra terreno favorável para o seu desenvolvimento, exatamente como uma doença. Pois a inteligência é uma doença”.
      Ironia à parte, a inteligência é uma doença de que deveríamos nos livrar?
      A personagem tem certa razão em chamá-la de doença, pois produz inquietações. Até mesmo stress, quando se volta para o confronto com uma realidade estabelecida. “Pensar é dizer Não! ”, lembrava o filósofo Gaston Bachelard. É um tipo de doença contagiosa, que leva, contudo, ao progresso.
      O que estamos enfrentando no mundo atual é o contrário do progresso, ou, pelo menos a sua negação. Vejam o estado das artes e da política, por exemplo. Patinam sem sair do lugar. Não se pode dizer isso da tecnologia e da ciência, que avançam, mas em direção a quê? Qual a sua qualidade humana? Teria razão Heidegger quando desconfiava da ciência, pois ela imporia um déficit de Ser? 
       Há inteligência em toda parte, mas não parece acompanhada de sensatez. Há intelectuais, operários inteligentes, estrategistas do mercado que trabalham para reproduzir inteligentemente o sistema em que vivemos. O sistema é que é burro, digamos assim? A era da letargia do consumo e dos prazeres fugazes, dos laços rápidos e do whatsApp induz à estupidez? Dizer sim é muito fácil, talvez a situação seja mais complexa.
      Para o personagem Antoine, a estupidez é um grande refúgio e uma forma de se relacionar com os iguais na nossa vida cotidiana. Nesse sentido, a inteligência seria mesmo uma doença, algo negativo capaz de atrapalhar a convivência.
      No plano da técnica e da economia, a obsolescência rápida das máquinas, celulares e outras, mostra que a inteligência produz progresso, mas também problemas. Se algo existe hoje como um ser funcional, amanhã se torna um não-ser, inexistente. Será que desacelerar em vários planos o progresso, não seria tornar a convivência um pouco mais fácil e calma, aplainá-la, ainda que mais burra?
      Nosso herói Antoine pensa e repensa esses problemas do conformismo generalizado, apesar de almejar à estupidez. E diz, citando o roteirista de “Nascido para Matar”, Michael Herr, que comenta em seu brilhante livro sobre Stanley Kubrick :
    “A estupidez das pessoas não deriva de sua falta de inteligência, mas da sua falta de coragem.”

     

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