Reinaldo Lobo
Um belo
dia o francês Antoine, aos 25 anos, decidiu ser estúpido. Anuncia aos seus
amigos mais próximos que, dali em diante, iria investir na idiotice. Tinha suas
razões.
Ser inteligente, apreciar leituras, não
gostar da burocracia e de todos os seus disfarces, detestar ser manipulado e
explorado, odiar ser obrigado a estudar assuntos desinteressantes, ser capaz de
traduzir do aramaico, conhecer profundamente o cinema de Frank Capra e de Sam
Peckinpah, “não o levaram muito longe”. Na verdade, a quase lugar algum.
O seu plano perfeito foi o de se voltar
para o cultivo da idiotice como forma de sobrevivência. Depois de tentar o
alcoolismo e o suicídio, Antoine convenceu-se de que só a estupidez lhe
permitiria ser plenamente aceito pela sociedade em que vive – a contemporânea.
E o que pode ser, pergunta-se ele, mais
estúpido do que ganhar dinheiro, muito dinheiro, e gastar em bens de consumo
inúteis?
Esse é o resumo do sentido inicial de um
pequeno grande livro francês do jovem Martin Page, de 31 anos, possivelmente
com motivos autobiográficos: ”Como me tornei um estúpido”, traduzido pela
Editora Rocco em 2005 e relançado agora.
Um texto nada estúpido, por sinal. Dele,
disse o jornal “Le Monde” que se trata de “um romance coberto de razões e que
revela um escritor que domina seu estilo tão bem quanto seu humor fino e
sutil”.
A contundência de Page está em revelar o
“espírito do tempo” dominante na sociedade atual. Apesar de se autodenominar “pós-moderna” ou
de se situar para além da modernidade, parece imediatista, primitiva,
gananciosa, violenta, regressiva, de uma ética rasteira movida por “interesses
egoístas”. E conformista, quase de um conformismo generalizado.
As exceções são pessoas como Martin Page e
alguns outros que questionam a alienação dos cidadãos rotinizados do trabalho
para casa, a balada e a TV, com seu lazer consumista e a submissão
despolitizada. E, por que não, cretinizados?
Se a modernidade era o questionamento
permanente do que estava estabelecido, tanto em arte quanto em política ou
filosofia, essa inquietação praticamente começou a desaparecer a partir de
1950. Essa é uma data arbitrária, mas é por volta dessa época que o demônio
crítico que animava o Ocidente com seu sopro criador durante mais de dois
séculos, como dizia Cornelius Castoriadis, começou a perder força até quase
sumir hoje em dia.
Não é caso de se exigir das pessoas em
geral que leiam só bons livros, obras primas de gênios, mas pode-se dizer que o
culto atual do pragmatismo e da imediatez ajuda e imbecilizar. Ah, dirão, mas
as crianças leem e-mails e frequentam computadores, assistem a filmes e são
obrigadas a redigir na internet. Sem dúvida, mas não é do QI nem de habilidades
práticas de que se fala sobre a estupidez contemporânea. Citemos a ironia da
personagem bem construída de Antoine:
“Uma coisa que se pode admitir é que
frequentar grandes obras, servir-se do seu próprio espírito, ler livros de
gênios não asseguram a ninguém inteligência, mas tornam isso provável.
Naturalmente, há pessoas que terão lido Freud, Platão, que saberão fazer
trocadilhos com os “quarks” e ver a diferença entre os falcões-peregrinos e um
peneireiro, e que, todavia, serão rematados imbecis. Não obstante,
potencialmente, estando em contato com uma multidão de estímulos e deixando seu
espírito frequentar uma atmosfera enriquecedora, a inteligência encontra
terreno favorável para o seu desenvolvimento, exatamente como uma doença. Pois
a inteligência é uma doença”.
Ironia à parte, a inteligência é uma
doença de que deveríamos nos livrar?
A personagem tem certa razão em chamá-la de
doença, pois produz inquietações. Até mesmo stress, quando se volta para o
confronto com uma realidade estabelecida. “Pensar é dizer Não! ”, lembrava o
filósofo Gaston Bachelard. É um tipo de doença contagiosa, que leva, contudo,
ao progresso.
O que estamos enfrentando no mundo atual
é o contrário do progresso, ou, pelo menos a sua negação. Vejam o estado das
artes e da política, por exemplo. Patinam sem sair do lugar. Não se pode dizer
isso da tecnologia e da ciência, que avançam, mas em direção a quê? Qual a sua
qualidade humana? Teria razão Heidegger quando desconfiava da ciência, pois ela
imporia um déficit de Ser?
Há inteligência em toda parte, mas não
parece acompanhada de sensatez. Há intelectuais, operários inteligentes,
estrategistas do mercado que trabalham para reproduzir inteligentemente o
sistema em que vivemos. O sistema é que é burro, digamos assim? A era da
letargia do consumo e dos prazeres fugazes, dos laços rápidos e do whatsApp
induz à estupidez? Dizer sim é muito fácil, talvez a situação seja mais
complexa.
Para o personagem Antoine, a estupidez é
um grande refúgio e uma forma de se relacionar com os iguais na nossa vida
cotidiana. Nesse sentido, a inteligência seria mesmo uma doença, algo negativo
capaz de atrapalhar a convivência.
No plano da técnica e da economia, a
obsolescência rápida das máquinas, celulares e outras, mostra que a
inteligência produz progresso, mas também problemas. Se algo existe hoje como
um ser funcional, amanhã se torna um não-ser, inexistente. Será que desacelerar
em vários planos o progresso, não seria tornar a convivência um pouco mais
fácil e calma, aplainá-la, ainda que mais burra?
Nosso herói Antoine pensa e repensa esses
problemas do conformismo generalizado, apesar de almejar à estupidez. E diz,
citando o roteirista de “Nascido para Matar”, Michael Herr, que comenta em seu brilhante
livro sobre Stanley Kubrick :
“A estupidez das pessoas não deriva de sua
falta de inteligência, mas da sua falta de coragem.”
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