quinta-feira, 20 de abril de 2017

A GRANDE CATARSE

  
                                                                
                                                           Reinaldo Lobo

       Na tragédia grega, a catarse ocorre quando o espectador do teatro se identifica com os conflitos, a culpa e o destino terrível dos heróis e vivencia tudo isso de modo a expiar e a purgar intensamente suas próprias emoções, por um breve momento. No Brasil atual, os espectadores assistiram nos últimos dias à novela da corrupção como os gregos antigos experimentavam a tragédia, sem final feliz.
       Alguns estudiosos do teatro interpretaram o herói trágico como o lutador que se contrapõe ao mundo, a fim de impedir sua letargia. Sua destruição é inevitável, mas não lhe falta sentido. Sua época não estaria madura para o valor pelo qual luta, e cai, mas seu sacrifício abre caminho para um futuro melhor -- como mostraram Hebbel e do mesmo modo Hegel. A morte do herói deixa uma herança positiva.
       Por esse ângulo, não há mais heróis em nosso País. Nem herança positiva visível. As explosões catárticas provocadas pelas revelações expostas na semana passada pelo Ministério Público mostraram que o “sentido”  reivindicado por nossos políticos recobria apenas atos de corrupção de vários tipos. Não há esperança coletiva na corrupção.
      Foram desencadeadas 211 investigações envolvendo 98 políticos em Brasília, sendo 39 deputados de todos os principais partidos e diversos senadores importantes, mais três ex-presidentes da República, 9 governadores, um ministro do TCU, e uma lista de prefeitos e vereadores em todo o território nacional. Seu político predileto pode estar entre eles.
     Alguns inquéritos já estão avançados e mostram sinais evidentes de abuso de poder, malversação de dinheiro público e propinas num montante de 3.4 bilhões de dólares só nos últimos oito anos.
     Por mais polêmicas que as delações premiadas da Odebrecht possam causar, não há dúvida de que expuseram claramente o método de operar das empreiteiras junto aos governos e aos políticos, além dos seus esquemas de campanha e de caixa 2.
      Personagens tidos como exemplos de “ética na política” por certo período foram desmascarados agora. Líderes principais dos partidos mais importantes, como PSDB, PMDB e PT receberam dezenas de denúncias de crimes de peculato, favorecimento pessoal, tráfico de influência e crimes eleitorais.
      Foi uma experiência em escala nacional de catarse e de desidealização das figuras centrais que governaram o Brasil desde, pelo menos, a instauração da Nova República, em 1985, e a promulgação da Constituição pós-Ditadura, em 1988.
         Uma pequena digressão sobre catarse:
         Freud inaugurou a psicanálise utilizando o primitivo método catártico de Breuer e dos hipnotizadores, como forma de cura das neuroses. Consistia em deixar fluir as emoções, fantasias e a fala livre dos pacientes, seja sob hipnose, seja em estado de aparente vigília. Funcionava como descarga e alívio. Depressa, descobriu-se um fato surpreendente, a “dissociação da consciência”, que se torna clara a esse método ao mesmo tempo em que produz uma “ampliação da consciência”.
        Depois de discutir teorias discrepantes com Breuer, Freud logo descobriu que a dissociação da consciência é um fenômeno psicológico - não físico ou químico- e que estava ligado a conflitos emocionais ocultos dos pacientes, expelidos e reagidos na catarse. Daí, foi um passo para descobrir que todos temos atividade mental inconsciente, isto é, desconhecida de nós mesmos -- ideias, fantasias e emoções que não podem vir à tona, a não ser de forma indireta por sinais e sintomas.
        Um desses sintomas são a dissociação e a própria expressão intensa de emoções. Freud descobriu que elas têm um sentido.
        Estamos lembrando Freud e seus métodos apenas para dizer que é possível viver catarses coletivas que, se não forem devidamente conhecidas e interpretadas, de nada servirão, como a morte dos heróis sem legado futuro. Ou como nas novelas, que são falsas tragédias com final feliz, onde apenas os vilões caricaturais são enterrados.
        Corremos o risco, no Brasil de hoje, de mantermos uma dissociação da consciência e não enxergarmos mais fundo, em busca de um significado oculto. Não basta assistirmos passivos o desenrolar da tragédia política brasileira e o desnudamento do que temos denominado de Sistema Corrupto. Nunca se viu de forma tão clara como funciona o Sistema, mas é preciso ver o seu eixo constitutivo, que é o uso do Estado de forma autoritária pelo conluio entre os políticos e as empreiteiras privadas para evitar a concorrência. Os lobbies e os cartéis integram um esquema bem montado há décadas, como revelou o delator Emílio Odebrecht, dono da maior empreiteira.
       Talvez esteja no fundo da tragédia atual o autoritarismo da sociedade brasileira, girando em torno de uma elite antiquada e privilegiada que faz suas próprias regras e leis. É o que chamamos de “oligarquia liberal”, uma contradição entre os termos. Democracia não é isso.
         Não basta escandalizar-se, nem apenas sofrer as paixões do desnudamento da corrupção, mas é preciso localizar a raiz da promiscuidade político-institucional em que vivemos. Como sugeriu uma vez Sérgio Buarque de Holanda, no coração do homem cordial brasileiro estão ao mesmo tempo a submissão e a prepotência.
        Falando uma linguagem mais ainda psicanalítica, enquanto gozarmos com a tragédia alheia e não tomarmos consciência de que a corrupção é um assunto de todos nós, com o qual precisamos lidar aberta, pessoal e internamente, continuaremos dissociados, a idealizar heróis na forma de juízes, salvadores da pátria e políticos de ocasião.


quarta-feira, 19 de abril de 2017

 


        "O essencial do trabalho de Freud consistiu, talvez, na descoberta do elemento imaginário da 'psyché'-- no desvelamento das dimensões as mais profundas do que chamo de imaginação radical".
     
        Cornelius Castoriadis

    ("L'institution imaginaire de la société", pg. 381)