Reinaldo Lobo
Na tragédia grega, a catarse ocorre
quando o espectador do teatro se identifica com os conflitos, a culpa e o
destino terrível dos heróis e vivencia tudo isso de modo a expiar e a purgar
intensamente suas próprias emoções, por um breve momento. No Brasil atual, os
espectadores assistiram nos últimos dias à novela da corrupção como os gregos
antigos experimentavam a tragédia, sem final feliz.
Alguns estudiosos do teatro
interpretaram o herói trágico como o lutador que se contrapõe ao mundo, a fim
de impedir sua letargia. Sua destruição é inevitável, mas não lhe falta
sentido. Sua época não estaria madura para o valor pelo qual luta, e cai, mas
seu sacrifício abre caminho para um futuro melhor -- como mostraram Hebbel e do
mesmo modo Hegel. A morte do herói deixa uma herança positiva.
Por esse ângulo, não há mais heróis em
nosso País. Nem herança positiva visível. As explosões catárticas provocadas
pelas revelações expostas na semana passada pelo Ministério Público mostraram
que o “sentido” reivindicado por nossos
políticos recobria apenas atos de corrupção de vários tipos. Não há esperança
coletiva na corrupção.
Foram
desencadeadas 211 investigações envolvendo 98 políticos em Brasília, sendo 39
deputados de todos os principais partidos e diversos senadores importantes,
mais três ex-presidentes da República, 9 governadores, um ministro do TCU, e
uma lista de prefeitos e vereadores em todo o território nacional. Seu político
predileto pode estar entre eles.
Alguns inquéritos já estão avançados e mostram
sinais evidentes de abuso de poder, malversação de dinheiro público e propinas
num montante de 3.4 bilhões de dólares só nos últimos oito anos.
Por
mais polêmicas que as delações premiadas da Odebrecht possam causar, não há dúvida
de que expuseram claramente o método de operar das empreiteiras junto aos
governos e aos políticos, além dos seus esquemas de campanha e de caixa 2.
Personagens tidos como exemplos de “ética
na política” por certo período foram desmascarados agora. Líderes principais
dos partidos mais importantes, como PSDB, PMDB e PT receberam dezenas de
denúncias de crimes de peculato, favorecimento pessoal, tráfico de influência e
crimes eleitorais.
Foi uma experiência em escala nacional de
catarse e de desidealização das figuras centrais que governaram o Brasil desde,
pelo menos, a instauração da Nova República, em 1985, e a promulgação da
Constituição pós-Ditadura, em 1988.
Uma pequena digressão sobre catarse:
Freud inaugurou a psicanálise
utilizando o primitivo método catártico de Breuer e dos hipnotizadores, como
forma de cura das neuroses. Consistia em deixar fluir as emoções, fantasias e a
fala livre dos pacientes, seja sob hipnose, seja em estado de aparente vigília.
Funcionava como descarga e alívio. Depressa, descobriu-se um fato
surpreendente, a “dissociação da consciência”, que se torna clara a esse método
ao mesmo tempo em que produz uma “ampliação da consciência”.
Depois de discutir teorias discrepantes com
Breuer, Freud logo descobriu que a dissociação da consciência é um fenômeno psicológico
- não físico ou químico- e que estava ligado a conflitos emocionais ocultos dos
pacientes, expelidos e reagidos na catarse. Daí, foi um passo para descobrir
que todos temos atividade mental inconsciente, isto é, desconhecida de nós
mesmos -- ideias, fantasias e emoções que não podem vir à tona, a não ser de
forma indireta por sinais e sintomas.
Um desses sintomas são a dissociação e a
própria expressão intensa de emoções. Freud descobriu que elas têm um sentido.
Estamos lembrando Freud e seus métodos
apenas para dizer que é possível viver catarses coletivas que, se não forem
devidamente conhecidas e interpretadas, de nada servirão, como a morte dos
heróis sem legado futuro. Ou como nas novelas, que são falsas tragédias com
final feliz, onde apenas os vilões caricaturais são enterrados.
Corremos o risco, no Brasil de hoje, de
mantermos uma dissociação da consciência e não enxergarmos mais fundo, em busca
de um significado oculto. Não basta assistirmos passivos o desenrolar da
tragédia política brasileira e o desnudamento do que temos denominado de
Sistema Corrupto. Nunca se viu de forma tão clara como funciona o Sistema, mas
é preciso ver o seu eixo constitutivo, que é o uso do Estado de forma
autoritária pelo conluio entre os políticos e as empreiteiras privadas para
evitar a concorrência. Os lobbies e os cartéis integram um esquema bem montado
há décadas, como revelou o delator Emílio Odebrecht, dono da maior empreiteira.
Talvez esteja no fundo da tragédia atual o
autoritarismo da sociedade brasileira, girando em torno de uma elite antiquada
e privilegiada que faz suas próprias regras e leis. É o que chamamos de
“oligarquia liberal”, uma contradição entre os termos. Democracia não é isso.
Não basta escandalizar-se, nem apenas sofrer
as paixões do desnudamento da corrupção, mas é preciso localizar a raiz da
promiscuidade político-institucional em que vivemos. Como sugeriu uma vez
Sérgio Buarque de Holanda, no coração do homem cordial brasileiro estão ao
mesmo tempo a submissão e a prepotência.
Falando uma linguagem mais ainda
psicanalítica, enquanto gozarmos com a tragédia alheia e não tomarmos
consciência de que a corrupção é um assunto de todos nós, com o qual precisamos
lidar aberta, pessoal e internamente, continuaremos dissociados, a idealizar
heróis na forma de juízes, salvadores da pátria e políticos de ocasião.
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