quinta-feira, 16 de novembro de 2017

A MALÍCIA IDEOLÓGICA


                
                                                                         Reinaldo Lobo

       Puxa, a gente não pode ser nem “um pouquinho racista”, meio de “brincadeira”, que logo vem a turma dos Direitos Humanos querendo impor o “politicamente correto”! Esses chatos sem senso de humor estão inventando, “de cima para baixo, uma sociedade mal-humorada, neurastênica e hostil à liberdade de expressão”.
       Esse raciocínio simplista acima, difundido pela mídia conservadora, como a revista Veja, contém vários truques maliciosos próprios da ideologia. O discurso ideológico tem a capacidade de inverter tudo, esconder o principal e apresentar uma racionalização—no sentido psicanalítico, uma justificativa defensiva para evitar o contato com alguma verdade incômoda ou inconveniente.
      Um exemplo: quando se diz no papel “todos são iguais perante a Lei”  --uma vez que existem na realidade os “Mais Iguais” do que outros--, essa declaração é pura falsificação e generalização ideológica.
      O primeiro truque proposto pelos argumentos em defesa do racismo “leve” é a suposição de que a pessoa que faz “piada de preto”, “piada de judeu”, “piada sobre mulher”, como se fossem apenas “piada de papagaio”, está apenas “se divertindo”. Ora, ela está expressando um preconceito enraizado na sociedade a fim de extravasar seu desprezo e seu ódio contra segmentos discriminados da população.
      Uma parte da sociedade brasileira já aprendeu a distinguir o teor das piadas racistas, graças à assimilação de valores contemporâneos mais avançados e às lutas das comunidades negras para sua integração e reconhecimento. Não somos mais um país tão atrasado que ainda canta a “mulher do cabelo duro”, sem saber “qual o pente” que a penteia. Nem uma nação exclusiva de uma elite que, além de matar mais jovens negros no mundo, proclamava que “negro ou c...na entrada, ou c... na saída”.
      A juventude negra hoje se revolta e a classe média branca tem um pingo de vergonha do que nossa sociedade tem feito há séculos com sua população mais rejeitada e pobre. A própria classe média evoluiu e essa vergonha é o resultado de valores mais recentes adquiridos pelos embates históricos aqui e em outras partes do mundo.
     O “politicamente correto”, assim chamado pelos recalcitrantes e ambíguos das nossas classes dominantes, é desprezado por setores que, justamente, estão na vanguarda da defesa de valores ultrapassados.
     O segundo grande truque dos sutis argumentos racistas é a inversão do papel de vítima. Quem é apresentada como vítima generalizada das críticas ao racismo é a própria sociedade, em sua totalidade, e não a sua parte verdadeiramente vitimada, como os negros e pobres. E quem critica o racismo é acusado de “impor de cima para baixo”, como se a nossa sociedade hierarquizada e estruturada em torno de poder e privilégios.  Ou seja, são esses “intelectuais esquerdistas” que querem doutrinar o povo e torná-lo racista ao contrário, de negros discriminando brancos. A sociedade “neurasténica” não é a da imposição e a educação por meio dos valores de privilegiados, mas é “inventada” justamente por quem resiste a esses valores.
      O fato é que existem hoje setores da sociedade, como as mulheres, os gays, os jovens simpatizantes de causas progressistas e libertárias, muito mais sensíveis às violações dos direitos civis e humanos. E isso incomoda os setores dominantes, que fingem aderir à democracia, mas, na prática, resistem a que seja exercida.
      Quando a causa se torna relativamente inócua, toleram um pouco mais. Aconteceu uma trajetória curiosa com a defesa do meio ambiente: no início, os setores dominantes e suas gazetas acusavam todos ecologistas de serem “ecochatos”. A citada revista Veja repetiu várias vezes o refrão contra os ambientalistas, até pela pena dos mesmos articulistas, como se a defesa da vida e a sobrevivência do planeta fossem lutas vãs.
      Foram necessários anos de provas científicas e evidências da vida cotidiana para que nossas gazetas mudassem um pouco o tom das críticas. À medida em que surgiu uma consciência mundial a respeito do clima e que a própria população começou a perceber a necessidade de uma visão mais séria sobre a sustentabilidade, o assunto da esfera do sarcasmo e do riso irônico e foi parar nas capas e manchetes.
     A democracia permite a criação de novos direitos, como o do divórcio, do aborto, do casamento de pessoas do mesmo sexo. Isso assombra as áreas mais conservadoras do País, como as Igrejas e os ideólogos fundamentalistas. No caso do racismo, o perigo ainda é maior: os conservadores temem que se “crie” abertamente uma “luta racial”, que, por sinal, já existe em parte nos morros e favelas, sob outra denominação.
    Enquanto houver distância social entre as raças, tudo bem, existirá a “paz racial”. Os arautos do conservadorismo querem manter a crença hipócrita de que não há racismo enquanto estiver debaixo do tapete. O que muitos de nós já percebemos é que o racismo cotidiano “escapa” por meio de desabafos involuntários -- ou não-- na forma de piadas e agressões mais ou menos veladas. O extravasamento do ódio racial não é mais encarado como uma brincadeira com a “nega fulô” ou a “negrinha sarará”, como acontecia até o século passado. E a há uma razão para isso: a modernização, que acarreta uma maior consciência negra.
      A chave para compreender a ideologia conservadora é a operação que torna vítimas os poderosos, e as verdadeiras vítimas são acusadas de ter o poder de impor suas ideias e valores. Essa é a inversão predileta de certa mídia.
     Os conservadores na mídia corporativa, nas classes dominantes e na classe média branca são saudosistas de um País que foi o último a abolir a escravidão e que mantinha o negro “no seu devido lugar”.

    Como estamos vivendo uma onda de conservadorismo aqui e no mundo, é de se temer que a democracia esteja ameaçada e que os saudosistas de velhos valores vençam. Já estão elogiando até mesmo Bolsonaro, que ridicularizou os simpatizantes dos quilombolas, e condenando aquela juíza que repreendeu o deputado dizendo que “política não é piada”. Talvez nossas classes dominantes mereçam um candidato a presidente que seja, ele próprio, uma perigosa piada de mau gosto.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

A CRISE SEM FIM

                       

                                                                      Reinaldo Lobo

   Um traço das sociedades contemporâneas é a crença de que o crescimento ilimitado da produção, das forças produtivas e do consumo infinito é, de fato, a finalidade central da vida humana. O resto seria a cultura, a arte, as religiões, as identificações pessoais, os afetos, os sonhos, a esperança, a solidariedade, o reconhecimento e muitas outras inutilidades.
     Essa “ideia” do crescimento sem fim é o que Cornelius Castoriadis chamava de significação imaginária social. A ela correspondem novas atitudes, valores e normas, uma nova definição da realidade e do ser, uma seleção do que conta e daquilo que não conta.
     Os cientistas e os filósofos de plantão determinam uma nova virada para o pensamento e o conhecimento: não há limites para os poderes e as possibilidades da Razão em seu casamento com o capitalismo. Essa significação imaginária se refere também à “aplicação da ciência à indústria”, como dizia o racionalista Marx--o que implicaria em constantes transformações tecnológicas. Nesse ponto, os neoliberais e os marxistas se encontram, isto é, na crença do “progresso permanente”.
     O fato de a natureza estar sendo destruída sistematicamente e de haver crises constantes ou cíclicas na sociedade, com grandes prejuízos humanos e materiais, passam a ser “normais” sob esse ponto de vista da produção e do consumo infinitos. Já não há limites para a progressão do conhecimento, dizem os cientistas em paralelo com os ideólogos. É como se a Razão, de crise em crise, de forma fragmentária e irregular, progredisse em direção a uma Verdade Absoluta que nunca é atingida. Assinalou Castoriadis: “a ideia da expansão ilimitada do domínio racional (“pseudo domínio”, “pseudo racional”) fala de um totalitarismo imanente ao imaginário capitalista”.
      Essa visão-de-mundo capitalista, que se imagina científica e racional, tem destruído sistematicamente os valores, a arte e a cultura, hoje diminuídas a reflexos do “mercado”. Também têm sido detonadas as identificações pessoais pelo rebaixamento das instituições e da política. É como se os sujeitos apresentassem um superego “frouxo”, sem marcos e referências no imaginário social.
      A predominância da significação imaginária do capitalismo produz várias características e efeitos particulares na sociedade atual e nos seus indivíduos. Um deles, é o conformismo generalizado: sua origem é a diminuição da participação dos cidadãos na vida pública. As instituições políticas cumprem a função de afastá-los dos assuntos públicos, convencendo-os da inutilidade de sua participação. É minúscula a parte da sociedade que governa e decide sobre seus sucessores—é a chamada “oligarquia liberal”. Em face da significação hegemônica capitalista desaparece o conteúdo de toda oposição verdadeira entre “direita” e “esquerda”. Tudo isso produz um sujeito conformista e privatizado, que recusa responsabilidade social e política, virado de costas para as questões de toda a comunidade e preso cada vez mais na esfera privada, isto é, na sua família e em algumas relações pessoais. Isso é o que se pode chamar de privatização e despolitização da vida.
         Na democracia contemporânea, quando uma pessoa vota, sua atitude é cínica; não crê no programa que lhe é apresentado, mas considera que o candidato escolhido entre vários é apenas um mal menor em comparação com o governante anterior.
         Na sociedade atual, o indivíduo deixou de ser um cidadão e um produtor na acepção da palavra e se tornou um consumidor. Seu objetivo está em grande medida na aquisição de mais bens, mais diversão, mais sensações, mais turismo. Está passivo e envolvido por uma inundação de ofertas propostas pela mídia.  O sujeito é o espectador da exposição das mercadorias e do espetáculo da alienação.
         O contorno da sociedade é capitalista, e sua meta principal é o consumo desenfreado, além da acumulação do capital. Isso leva a uma operação destrutiva dos laços e da vida social, à privatização do sujeito e ao seu conformismo. Castoriadis chama a essa operação de “avanço da maré de insignificância” em uma “sociedade de lobbies e de hobbies”.
         Do ponto de vista psicanalítico, essa fase desestruturante do espaço social gera uma “crise do processo identificatório”. Isso acontece porque a significação imaginária do capitalismo, entregue a si mesma, entra em crise-- em um tipo de espiral auto-desestabilizante-- e, com ela, as instituições.
       O resultado é, então, ninguém mais saber a sua função na sociedade, qual o sentido da vida social e a sua participação nela. Fica confuso o que se espera de um homem, de uma mulher, de um professor, de um operário, de um profissional. Essa crise identificatória acelerou-se desde os anos 80, com o triunfo do neoliberalismo em 160 países do mundo. Só restam traços remotos dos “tipos antropológicos” anteriores, da década de 70 para trás.
       Não se pode falar de um sujeito no sentido pleno quando as pessoas são levadas a não pensar, não refletir sobre si e sobre a sociedade. Para existirem sujeitos é preciso que os indivíduos possam falar de um “nós” coletivo e possam instituir um campo de conhecimento reflexivo, uma lucidez e responsabilidade pela sociedade a que pertencem.
       A dúvida atual é se as chamadas democracias liberais têm como produzir esses indivíduos autônomos e em quantidade suficiente para restaurar a esfera pública e uma liberdade digna desse nome.