Reinaldo Lobo
Puxa, a gente não pode ser nem “um pouquinho
racista”, meio de “brincadeira”, que logo vem a turma dos Direitos Humanos
querendo impor o “politicamente correto”! Esses chatos sem senso de humor estão
inventando, “de cima para baixo, uma sociedade mal-humorada, neurastênica e
hostil à liberdade de expressão”.
Esse raciocínio simplista acima, difundido
pela mídia conservadora, como a revista Veja, contém vários truques maliciosos
próprios da ideologia. O discurso ideológico tem a capacidade de inverter tudo,
esconder o principal e apresentar uma racionalização—no sentido psicanalítico,
uma justificativa defensiva para evitar o contato com alguma verdade incômoda
ou inconveniente.
Um exemplo:
quando se diz no papel “todos são iguais perante a Lei” --uma vez que existem na realidade os “Mais
Iguais” do que outros--, essa declaração é pura falsificação e generalização
ideológica.
O primeiro truque proposto pelos
argumentos em defesa do racismo “leve” é a suposição de que a pessoa que faz
“piada de preto”, “piada de judeu”, “piada sobre mulher”, como se fossem apenas
“piada de papagaio”, está apenas “se divertindo”. Ora, ela está expressando um
preconceito enraizado na sociedade a fim de extravasar seu desprezo e seu ódio
contra segmentos discriminados da população.
Uma parte da sociedade brasileira já
aprendeu a distinguir o teor das piadas racistas, graças à assimilação de
valores contemporâneos mais avançados e às lutas das comunidades negras para
sua integração e reconhecimento. Não somos mais um país tão atrasado que ainda
canta a “mulher do cabelo duro”, sem saber “qual o pente” que a penteia. Nem
uma nação exclusiva de uma elite que, além de matar mais jovens negros no
mundo, proclamava que “negro ou c...na entrada, ou c... na saída”.
A juventude negra hoje se revolta e a
classe média branca tem um pingo de vergonha do que nossa sociedade tem feito
há séculos com sua população mais rejeitada e pobre. A própria classe média
evoluiu e essa vergonha é o resultado de valores mais recentes adquiridos pelos
embates históricos aqui e em outras partes do mundo.
O “politicamente correto”, assim chamado
pelos recalcitrantes e ambíguos das nossas classes dominantes, é desprezado por
setores que, justamente, estão na vanguarda da defesa de valores ultrapassados.
O segundo grande truque dos sutis
argumentos racistas é a inversão do papel de vítima. Quem é apresentada como
vítima generalizada das críticas ao racismo é a própria sociedade, em sua
totalidade, e não a sua parte verdadeiramente vitimada, como os negros e
pobres. E quem critica o racismo é acusado de “impor de cima para baixo”, como
se a nossa sociedade hierarquizada e estruturada em torno de poder e
privilégios. Ou seja, são esses
“intelectuais esquerdistas” que querem doutrinar o povo e torná-lo racista ao
contrário, de negros discriminando brancos. A sociedade “neurasténica” não é a
da imposição e a educação por meio dos valores de privilegiados, mas é
“inventada” justamente por quem resiste a esses valores.
O fato é que existem hoje setores da
sociedade, como as mulheres, os gays, os jovens simpatizantes de causas
progressistas e libertárias, muito mais sensíveis às violações dos direitos
civis e humanos. E isso incomoda os setores dominantes, que fingem aderir à democracia,
mas, na prática, resistem a que seja exercida.
Quando a causa se torna relativamente
inócua, toleram um pouco mais. Aconteceu uma trajetória curiosa com a defesa do
meio ambiente: no início, os setores dominantes e suas gazetas acusavam todos
ecologistas de serem “ecochatos”. A citada revista Veja repetiu várias vezes o
refrão contra os ambientalistas, até pela pena dos mesmos articulistas, como se
a defesa da vida e a sobrevivência do planeta fossem lutas vãs.
Foram
necessários anos de provas científicas e evidências da vida cotidiana para que
nossas gazetas mudassem um pouco o tom das críticas. À medida em que surgiu uma
consciência mundial a respeito do clima e que a própria população começou a
perceber a necessidade de uma visão mais séria sobre a sustentabilidade, o
assunto da esfera do sarcasmo e do riso irônico e foi parar nas capas e
manchetes.
A democracia permite a criação de novos
direitos, como o do divórcio, do aborto, do casamento de pessoas do mesmo sexo.
Isso assombra as áreas mais conservadoras do País, como as Igrejas e os
ideólogos fundamentalistas. No caso do racismo, o perigo ainda é maior: os
conservadores temem que se “crie” abertamente uma “luta racial”, que, por
sinal, já existe em parte nos morros e favelas, sob outra denominação.
Enquanto houver distância social entre as
raças, tudo bem, existirá a “paz racial”. Os arautos do conservadorismo querem
manter a crença hipócrita de que não há racismo enquanto estiver debaixo do
tapete. O que muitos de nós já percebemos é que o racismo cotidiano “escapa”
por meio de desabafos involuntários -- ou não-- na forma de piadas e agressões
mais ou menos veladas. O extravasamento do ódio racial não é mais encarado como
uma brincadeira com a “nega fulô” ou a “negrinha sarará”, como acontecia até o
século passado. E a há uma razão para isso: a modernização, que acarreta uma
maior consciência negra.
A chave para compreender a ideologia
conservadora é a operação que torna vítimas os poderosos, e as verdadeiras
vítimas são acusadas de ter o poder de impor suas ideias e valores. Essa é a
inversão predileta de certa mídia.
Os conservadores na mídia corporativa, nas
classes dominantes e na classe média branca são saudosistas de um País que foi
o último a abolir a escravidão e que mantinha o negro “no seu devido lugar”.
Como estamos vivendo uma onda de
conservadorismo aqui e no mundo, é de se temer que a democracia esteja ameaçada
e que os saudosistas de velhos valores vençam. Já estão elogiando até mesmo
Bolsonaro, que ridicularizou os simpatizantes dos quilombolas, e condenando
aquela juíza que repreendeu o deputado dizendo que “política não é piada”.
Talvez nossas classes dominantes mereçam um candidato a presidente que seja,
ele próprio, uma perigosa piada de mau gosto.