segunda-feira, 6 de novembro de 2017

A CRISE SEM FIM

                       

                                                                      Reinaldo Lobo

   Um traço das sociedades contemporâneas é a crença de que o crescimento ilimitado da produção, das forças produtivas e do consumo infinito é, de fato, a finalidade central da vida humana. O resto seria a cultura, a arte, as religiões, as identificações pessoais, os afetos, os sonhos, a esperança, a solidariedade, o reconhecimento e muitas outras inutilidades.
     Essa “ideia” do crescimento sem fim é o que Cornelius Castoriadis chamava de significação imaginária social. A ela correspondem novas atitudes, valores e normas, uma nova definição da realidade e do ser, uma seleção do que conta e daquilo que não conta.
     Os cientistas e os filósofos de plantão determinam uma nova virada para o pensamento e o conhecimento: não há limites para os poderes e as possibilidades da Razão em seu casamento com o capitalismo. Essa significação imaginária se refere também à “aplicação da ciência à indústria”, como dizia o racionalista Marx--o que implicaria em constantes transformações tecnológicas. Nesse ponto, os neoliberais e os marxistas se encontram, isto é, na crença do “progresso permanente”.
     O fato de a natureza estar sendo destruída sistematicamente e de haver crises constantes ou cíclicas na sociedade, com grandes prejuízos humanos e materiais, passam a ser “normais” sob esse ponto de vista da produção e do consumo infinitos. Já não há limites para a progressão do conhecimento, dizem os cientistas em paralelo com os ideólogos. É como se a Razão, de crise em crise, de forma fragmentária e irregular, progredisse em direção a uma Verdade Absoluta que nunca é atingida. Assinalou Castoriadis: “a ideia da expansão ilimitada do domínio racional (“pseudo domínio”, “pseudo racional”) fala de um totalitarismo imanente ao imaginário capitalista”.
      Essa visão-de-mundo capitalista, que se imagina científica e racional, tem destruído sistematicamente os valores, a arte e a cultura, hoje diminuídas a reflexos do “mercado”. Também têm sido detonadas as identificações pessoais pelo rebaixamento das instituições e da política. É como se os sujeitos apresentassem um superego “frouxo”, sem marcos e referências no imaginário social.
      A predominância da significação imaginária do capitalismo produz várias características e efeitos particulares na sociedade atual e nos seus indivíduos. Um deles, é o conformismo generalizado: sua origem é a diminuição da participação dos cidadãos na vida pública. As instituições políticas cumprem a função de afastá-los dos assuntos públicos, convencendo-os da inutilidade de sua participação. É minúscula a parte da sociedade que governa e decide sobre seus sucessores—é a chamada “oligarquia liberal”. Em face da significação hegemônica capitalista desaparece o conteúdo de toda oposição verdadeira entre “direita” e “esquerda”. Tudo isso produz um sujeito conformista e privatizado, que recusa responsabilidade social e política, virado de costas para as questões de toda a comunidade e preso cada vez mais na esfera privada, isto é, na sua família e em algumas relações pessoais. Isso é o que se pode chamar de privatização e despolitização da vida.
         Na democracia contemporânea, quando uma pessoa vota, sua atitude é cínica; não crê no programa que lhe é apresentado, mas considera que o candidato escolhido entre vários é apenas um mal menor em comparação com o governante anterior.
         Na sociedade atual, o indivíduo deixou de ser um cidadão e um produtor na acepção da palavra e se tornou um consumidor. Seu objetivo está em grande medida na aquisição de mais bens, mais diversão, mais sensações, mais turismo. Está passivo e envolvido por uma inundação de ofertas propostas pela mídia.  O sujeito é o espectador da exposição das mercadorias e do espetáculo da alienação.
         O contorno da sociedade é capitalista, e sua meta principal é o consumo desenfreado, além da acumulação do capital. Isso leva a uma operação destrutiva dos laços e da vida social, à privatização do sujeito e ao seu conformismo. Castoriadis chama a essa operação de “avanço da maré de insignificância” em uma “sociedade de lobbies e de hobbies”.
         Do ponto de vista psicanalítico, essa fase desestruturante do espaço social gera uma “crise do processo identificatório”. Isso acontece porque a significação imaginária do capitalismo, entregue a si mesma, entra em crise-- em um tipo de espiral auto-desestabilizante-- e, com ela, as instituições.
       O resultado é, então, ninguém mais saber a sua função na sociedade, qual o sentido da vida social e a sua participação nela. Fica confuso o que se espera de um homem, de uma mulher, de um professor, de um operário, de um profissional. Essa crise identificatória acelerou-se desde os anos 80, com o triunfo do neoliberalismo em 160 países do mundo. Só restam traços remotos dos “tipos antropológicos” anteriores, da década de 70 para trás.
       Não se pode falar de um sujeito no sentido pleno quando as pessoas são levadas a não pensar, não refletir sobre si e sobre a sociedade. Para existirem sujeitos é preciso que os indivíduos possam falar de um “nós” coletivo e possam instituir um campo de conhecimento reflexivo, uma lucidez e responsabilidade pela sociedade a que pertencem.
       A dúvida atual é se as chamadas democracias liberais têm como produzir esses indivíduos autônomos e em quantidade suficiente para restaurar a esfera pública e uma liberdade digna desse nome.





    

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