Reinaldo Lobo*
O paciente lembra para poder esquecer,
dizia Freud. Dito de outra maneira, uma boa análise pode facilitar a revelação
da lembrança, mas com a finalidade de recuperar a saúde do paciente. O
psicanalista propicia a análise das defesas que formam obstáculos à recordação
e uma das maiores dificuldades para recordar é a própria lembrança. “A
lembrança falsificada”, escreve Freud em seu ensaio “Lembrança Encobridora”, já
em 1899, “é a primeira de que tomamos consciência”.
Em sua análise de neuróticos, ele concebeu
que aquilo que foi pensado antes como recordação -- seja uma narrativa ou uma
imagem interiorizada do passado--, não é de fato uma lembrança até que tenha
sido interpretada. Em outras palavras, até que seja analisada e elaborada, ela
é o que Freud chama de uma lembrança encobridora, uma fantasia sobre o passado.
Assim, inúmeras recordações banais podem esconder conflitos insuspeitados pela
consciência, imagens simples da própria infância podem revelar verdades
dolorosas distorcidas e conflitos traumáticos inconscientes, os quais precisam
ser recordados em sua verdadeira dimensão, para que a pessoa que sofre se
recupere. Lacan dirá mais tarde, em seus “Escritos”, com seu gosto pelos
paradoxos: “O paciente não está curado porque se lembra, ele se lembra porque
está curado”.
Usando a metáfora psicanalítica, pode-se
dizer que o Brasil continuará muito doente enquanto não resgatar de verdade seu
passado, e elaborar seus traumas e conflitos soterrados. Entre nós, temos o
hábito de varrer tudo isso para debaixo do tapete, passar por cima dos
conflitos em nome da conciliação nacional.
A nossa anistia assimétrica, no final da
Ditadura, foi assim: os crimes cometidos em nome do Estado não foram apurados,
os criminosos estão soltos até hoje e personagens como o coronel Ustra se foram
sem prestar contas à Justiça. Tudo em nome de um projeto de reconciliação
proposto pela oligarquia dominante, com vistas a um hipotético futuro de paz
social e política. Há até quem tenha saudades desse período ditatorial nefasto,
pintado infantilmente com as cores de um sonho desperto e as tintas da
idealização.
A nossa miséria social tem o mesmo
destino: sonhamos com tempos de milagres econômicos como se não fossem parte de
um processo cíclico de crises capitalistas que não nos tiram do
subdesenvolvimento e que agravam a desigualdade entre as classes. Também
idealizamos outros povos mais desenvolvidos, como se a disparidade em escala
internacional e o desenvolvimento desigual e combinado não existissem.
Não há conservadorismo maior do que o
daquelas pessoas que dizem existir apenas uma “crise moral” na sociedade
brasileira, negando nosso passado colonial de exploração, de escravidão e de
hipocrisia constante de nossas elites dominantes. Falar na maravilha da
produção agrícola, negando uma histórica concentração fundiária no País e a
condição subalterna de fornecedores de matéria prima aos mercados
internacionais, enquanto a população rural ainda padece de trabalho escravo, é
o mesmo que um neurótico falar de seu passado infantil feliz, sem reconhecer as
causas do seu sofrimento.
No Brasil, temos o hábito de lembrar o
que nos convém: as lindas paisagens, a natureza “benévola” do povo em geral,
recortes de anos dourados, como os de JK e aspirações a “País do Futuro”, e nos
habituamos a negar as destruições da floresta amazônica, a poluição desenfreada
das grandes cidades, a violência urbana que mata mais do que as guerras da
Síria e do Iraque, a conversão nacional ao tráfico de cocaína mais intenso do
mundo, superando a Colômbia, a Bolívia, além de muitas outras mazelas.
O sistema corrupto revelado pela
Operação Lava Jato inspirou nostalgia em muitas pessoas em relação ao regime
civil-militar de 64 a 85, como se este não fosse uma fonte importante da
montagem do próprio sistema corrupto. Foram os “nacionalistas” militares que
deram toda a força possível para que surgissem os conglomerados de empreiteiras
brasileiras como a Camargo Correia, Odebrecht, Hidroservice, etc., que se
alimentavam e algumas ainda se alimentam das grandes obras públicas do governo.
Preocupados com a logística e a estratégia de defesa, os militares preferiram
priorizar grupos de empresários nacionais em detrimento das empreiteiras
norte-americanas ou de quaisquer outros países.
Sabemos hoje, examinadas as causas e não
apenas a superfície e os sintomas da “crise moral” brasileira, que os célebres
“tocadores de obras” Paulo Maluf e Mário Andreazza, foram recordistas mundiais,
nas proporções do dinheiro da época, nesse curioso fenômeno do
superfaturamento. Os complexos viários de Maluf, sua “aventura” da Paulipetro,
gastaram milhões denunciados pela imprensa amordaçada e nunca investigados
devidamente. A ponte Rio-Niterói e a Transamazônica tiveram, àquela época, o
metro quadrado mais caro do planeta, mas os nostálgicos da Ditadura fazem
questão de não recordar exatamente.
Os que justificam esse passado de
exploração e violência tendem a esquecer e a banalizar. Fazendo novamente uma
analogia metafórica com a situação analítica, vale a pena dizer que uma análise
do passado mostra que as lembranças banalizadas, aparentemente periféricas e
desimportantes tendem a omitir o principal porque, na maioria das vezes revelam
o principal em sua forma e até sinais do conteúdo. O mesmo vale para a negação:
quando uma pessoa diz “não que eu queira ofender ninguém”, podemos ter um
indício de que teve a intenção ou já está ofendendo.
Por isso, é difícil acreditar, hoje, que
não seja uma grande mentira quando os governantes falam de “reformas” para
corrigir injustiças do passado, sem examinar o que foram essas injustiças e
esse passado. Suas intenções declaradas não só não correspondem aos gestos,
como partem de autoridades ilegítimas e suspeitas de apenas repetir o passado.
Em psicanálise, o sintoma gira em torno da repetição; é a pura repetição. Há
que interpretar e mostrar. Sem isso, o paciente continua doente.