quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

FALSAS LEMBRANÇAS



                                                              Reinaldo Lobo*

       O paciente lembra para poder esquecer, dizia Freud. Dito de outra maneira, uma boa análise pode facilitar a revelação da lembrança, mas com a finalidade de recuperar a saúde do paciente. O psicanalista propicia a análise das defesas que formam obstáculos à recordação e uma das maiores dificuldades para recordar é a própria lembrança. “A lembrança falsificada”, escreve Freud em seu ensaio “Lembrança Encobridora”, já em 1899, “é a primeira de que tomamos consciência”.
     Em sua análise de neuróticos, ele concebeu que aquilo que foi pensado antes como recordação -- seja uma narrativa ou uma imagem interiorizada do passado--, não é de fato uma lembrança até que tenha sido interpretada. Em outras palavras, até que seja analisada e elaborada, ela é o que Freud chama de uma lembrança encobridora, uma fantasia sobre o passado. Assim, inúmeras recordações banais podem esconder conflitos insuspeitados pela consciência, imagens simples da própria infância podem revelar verdades dolorosas distorcidas e conflitos traumáticos inconscientes, os quais precisam ser recordados em sua verdadeira dimensão, para que a pessoa que sofre se recupere. Lacan dirá mais tarde, em seus “Escritos”, com seu gosto pelos paradoxos: “O paciente não está curado porque se lembra, ele se lembra porque está curado”.  
       Usando a metáfora psicanalítica, pode-se dizer que o Brasil continuará muito doente enquanto não resgatar de verdade seu passado, e elaborar seus traumas e conflitos soterrados. Entre nós, temos o hábito de varrer tudo isso para debaixo do tapete, passar por cima dos conflitos em nome da conciliação nacional.
      A nossa anistia assimétrica, no final da Ditadura, foi assim: os crimes cometidos em nome do Estado não foram apurados, os criminosos estão soltos até hoje e personagens como o coronel Ustra se foram sem prestar contas à Justiça. Tudo em nome de um projeto de reconciliação proposto pela oligarquia dominante, com vistas a um hipotético futuro de paz social e política. Há até quem tenha saudades desse período ditatorial nefasto, pintado infantilmente com as cores de um sonho desperto e as tintas da idealização.
      A nossa miséria social tem o mesmo destino: sonhamos com tempos de milagres econômicos como se não fossem parte de um processo cíclico de crises capitalistas que não nos tiram do subdesenvolvimento e que agravam a desigualdade entre as classes. Também idealizamos outros povos mais desenvolvidos, como se a disparidade em escala internacional e o desenvolvimento desigual e combinado não existissem.
      Não há conservadorismo maior do que o daquelas pessoas que dizem existir apenas uma “crise moral” na sociedade brasileira, negando nosso passado colonial de exploração, de escravidão e de hipocrisia constante de nossas elites dominantes. Falar na maravilha da produção agrícola, negando uma histórica concentração fundiária no País e a condição subalterna de fornecedores de matéria prima aos mercados internacionais, enquanto a população rural ainda padece de trabalho escravo, é o mesmo que um neurótico falar de seu passado infantil feliz, sem reconhecer as causas do seu sofrimento.
       No Brasil, temos o hábito de lembrar o que nos convém: as lindas paisagens, a natureza “benévola” do povo em geral, recortes de anos dourados, como os de JK e aspirações a “País do Futuro”, e nos habituamos a negar as destruições da floresta amazônica, a poluição desenfreada das grandes cidades, a violência urbana que mata mais do que as guerras da Síria e do Iraque, a conversão nacional ao tráfico de cocaína mais intenso do mundo, superando a Colômbia, a Bolívia, além de muitas outras mazelas.
       O sistema corrupto revelado pela Operação Lava Jato inspirou nostalgia em muitas pessoas em relação ao regime civil-militar de 64 a 85, como se este não fosse uma fonte importante da montagem do próprio sistema corrupto. Foram os “nacionalistas” militares que deram toda a força possível para que surgissem os conglomerados de empreiteiras brasileiras como a Camargo Correia, Odebrecht, Hidroservice, etc., que se alimentavam e algumas ainda se alimentam das grandes obras públicas do governo. Preocupados com a logística e a estratégia de defesa, os militares preferiram priorizar grupos de empresários nacionais em detrimento das empreiteiras norte-americanas ou de quaisquer outros países.
     Sabemos hoje, examinadas as causas e não apenas a superfície e os sintomas da “crise moral” brasileira, que os célebres “tocadores de obras” Paulo Maluf e Mário Andreazza, foram recordistas mundiais, nas proporções do dinheiro da época, nesse curioso fenômeno do superfaturamento. Os complexos viários de Maluf, sua “aventura” da Paulipetro, gastaram milhões denunciados pela imprensa amordaçada e nunca investigados devidamente. A ponte Rio-Niterói e a Transamazônica tiveram, àquela época, o metro quadrado mais caro do planeta, mas os nostálgicos da Ditadura fazem questão de não recordar exatamente.
      Os que justificam esse passado de exploração e violência tendem a esquecer e a banalizar. Fazendo novamente uma analogia metafórica com a situação analítica, vale a pena dizer que uma análise do passado mostra que as lembranças banalizadas, aparentemente periféricas e desimportantes tendem a omitir o principal porque, na maioria das vezes revelam o principal em sua forma e até sinais do conteúdo. O mesmo vale para a negação: quando uma pessoa diz “não que eu queira ofender ninguém”, podemos ter um indício de que teve a intenção ou já está ofendendo.
      Por isso, é difícil acreditar, hoje, que não seja uma grande mentira quando os governantes falam de “reformas” para corrigir injustiças do passado, sem examinar o que foram essas injustiças e esse passado. Suas intenções declaradas não só não correspondem aos gestos, como partem de autoridades ilegítimas e suspeitas de apenas repetir o passado. Em psicanálise, o sintoma gira em torno da repetição; é a pura repetição. Há que interpretar e mostrar. Sem isso, o paciente continua doente.


terça-feira, 5 de dezembro de 2017

UM PENSADOR DA LIBERDADE



                                                                  Reinaldo Lobo

      Na nossa época da rapidez, da imagem fugaz, do consumo infinito, da destruição das significações, da retirada da população da esfera política, da decomposição dos instrumentos de direção da sociedade, do espetáculo da alienação e da superficialidade, faz uma falta imensa uma figura da grandeza do filósofo Cornelius Castoriadis, falecido há exatos 20 anos, em dezembro de 1997.
      Filósofo e psicanalista, o greco-francês Castoriadis (1922) não só diagnosticou a insignificância de nossa época como também apontou o prognóstico implícito e as possibilidades de cura.
     Desde que saiu em 1945 de Atenas, onde estudou economia, direito e filosofia, o filósofo elaborou uma obra diversificada na França, trabalhando décadas como economista da OCDE, entidade que deu origem à União Europeia. Militante revolucionário, fundou com outro filósofo, Claude Lefort, a revista “Socialismo ou Barbárie”, motivo de um grande impacto intelectual junto às esquerdas por sua originalidade de pensamento e sua crítica do totalitarismo.
     Ainda que a obra singular de Castoriadis alcance campos tão diferentes quanto a psicanálise, a economia, a política, a história e a filosofia, ela tem uma unidade em torno de um problema básico – colocar em ação o conceito de imaginário social para gerar e alimentar uma filosofia da história e da transformação.
    O pensamento castoriadiano estabelece a liberdade humana e a imaginação radical, que movem o indivíduo e a sociedade, como os centros da história, cuja natureza é, em grande parte, indeterminada. A imaginação não é definida por ele como representação ou simples combinatória de imagens, ou como erro e distorção, mas como um fluxo de prazer representativo, imagens, fantasias e afetos que atravessam permanentemente o sujeito, de forma aleatória e indeterminada. A imaginação é o disruptivo em nós. Equivale à “vontade” de Nietzsche, só para dar uma ideia aproximada.
    Apesar de não negar os conflitos e as determinantes sociais, Castoriadis privilegia a liberdade como fundamento da ação humana. Ele se situa, assim, no polo oposto da filosofia liberal e do marxismo mais determinista. Ambas as filosofias postulam uma racionalidade calcada no inelutável progresso econômico e tecnológico (em direção ao crescimento da liberdade, no liberalismo), determinados pelo primado da economia e da propriedade (no caso da ortodoxia marxista e, também, do liberalismo). A filosofia marxista pressupõe não só a primazia do fator econômico em todas as instâncias do corpo social, mas também as inescapáveis Leis da História e a chegada inevitável do comunismo.
    Ao contrário desses dois modelos, o projeto claro de Castoriadis é o de pensar a sociedade (e suas instituições) como uma criação humana que não é previamente determinada. A sociedade se constitui não só sobre uma dimensão de base material, mas também pela criação de significações imaginárias sociais (como a religião, os mitos, os ritos e outras obras culturais) que estabelecem as relações entre os homens e que dão sentido às suas ações.
     O filósofo foi marxista durante um certo tempo e militou na corrente trotskista, da qual divergiu porque esta sustentava que a União Soviética era um “Estado proletário degenerado pela burocracia”.  Para Castoriadis a sociedade nascida da Revolução de 1917 não era apenas uma distorção da via correta do marxismo, mas uma entidade nova, com novas relações de exploração de classes, com uma hipertrofia estatal que procurava abranger tudo e todos, isto é, um sistema totalitário. Um novo monstro: o totalitarismo.
     Ao contrário de muitos ex-trotskistas e ex-marxistas, ele não foi para a direita, mas reconstruiu o pensamento de esquerda a partir do anti-capitalismo e do anti-totalitarismo. Não se limitou a uma “decisão ideológica”, impensada e cômoda; foi mais fundo e construiu uma complexa nova filosofia da História.
    Conhecedor de Platão e de Aristóteles, com sólida formação na história da Grécia antiga, Castoriadis não se preocupou a apenas em “desconstruir” (palavra da moda) a filosofia clássica ou o pensamento político – procurou renová-lo de um modo original, apesar da resistência que encontrou nos meios acadêmicos por ter uma cultura erudita, polivalente, e que não ignorou a prática política revolucionária.
     As referências de Castoriadis foram a Paidéia grega, a filosofia clássica, sobretudo Aristóteles; o marxismo do primeiro Marx (o chamado “jovem Marx”); Hegel; os economistas tradicionais e os contemporâneos; a psicanálise, que ele praticou desde os anos 60 até morrer. Em relação a essa última, dizia que era um “fervoroso freudiano”, mas se nota também duas influências importantes, que ele admitiu para mim pessoalmente: Melanie Klein e Lacan.
    Do lacanismo, dizia que aproveitou os erros e os exageros, sobretudo na questão da linguagem e também teria aprendido com Lacan “o que não fazer”. Criticava a “impostura” dos lacanianos ao exacerbar a importância do silêncio na análise e seu equívoco em confundir a lei simbólica com a Lei real, da sociedade efetiva. Curiosamente, há uma semelhança muito grande entre a teoria e a prática de Castoriadis com um autor pós-kleiniano jamais citado: Winnicott, que, como ele, dizia haver uma lacuna a ser preenchida na teoria freudiana da sublimação. Para ambos, a cultura não se explica exclusivamente por um deslocamento sublimatório dos indivíduos, mas há uma autonomia do cultural que interage com o individual, e vice-versa.
    Do ponto-de-vista castoriadiano, a imaginação e o imaginário são constitutivos do homem e da sociedade, cujas metas paralelas poderiam ser a autonomia e a democracia calcada na ação coletiva “de baixo para cima”. A sociedade é uma entidade (uma “mônada”, termo que emprestou de Leibniz) que se autocria organizando-se sobre o que se apresenta a ela em decorrência de um fundo comum de significações (o imaginário social, constituído por crenças, ideologias, mitos, etc.). O “projeto de autonomia” consiste naquilo que define a palavra autonomia: dar-se as próprias leis. Um sujeito é autônomo quando se emancipa das autoridades paternas e vai para o espaço público lidar com as instâncias e instituições de autoridade, legítimas ou não.
   Vivemos, dizia Castoriadis, sob as democracias liberais, sob as primitivas ou sob o totalitarismo, em sociedade heterônomas, onde a liberdade vem “de fora” e “de cima”. Dependemos de leis abstratas que não criamos, de deuses a que nos submetemos, de autoridades impostas. Apenas em alguns momentos da História, o projeto de autonomia prosperou: na Grécia, com a criação da democracia incipiente, nas revoluções antimonárquicas do século XVIII, nos movimentos operários nascentes do século XIX e nas suas sequências de lutas do século XX, como as revoluções russa de 1917 e a húngara, de 1956, autonomista e antitotalitária.
   Hoje, o projeto de autonomia humana consiste em revolucionar a política para tirar a humanidade da alternativa entre democracia liberal capitalista e regimes autoritários falsamente socialistas. A revolução, misto de utopia no sentido mais nobre e de reatualização das ideias do jovem Marx, não será necessariamente feita de sangue ou da tomada de palácios. Será a progressiva consciência de homens lúcidos e da vontade democrática dos povos diante dos abusos do poder: lucidez de que podem fazer suas próprias leis e modificá-las permanentemente. Será uma revolução permanente.