Reinaldo
Lobo
Na nossa época da rapidez, da imagem
fugaz, do consumo infinito, da destruição das significações, da retirada da
população da esfera política, da decomposição dos instrumentos de direção da
sociedade, do espetáculo da alienação e da superficialidade, faz uma falta
imensa uma figura da grandeza do filósofo Cornelius Castoriadis, falecido há
exatos 20 anos, em dezembro de 1997.
Filósofo e psicanalista, o greco-francês
Castoriadis (1922) não só diagnosticou a insignificância de nossa época como
também apontou o prognóstico implícito e as possibilidades de cura.
Desde que saiu em 1945 de Atenas, onde estudou
economia, direito e filosofia, o filósofo elaborou uma obra diversificada na
França, trabalhando décadas como economista da OCDE, entidade que deu origem à
União Europeia. Militante revolucionário, fundou com outro filósofo, Claude
Lefort, a revista “Socialismo ou Barbárie”, motivo de um grande impacto
intelectual junto às esquerdas por sua originalidade de pensamento e sua
crítica do totalitarismo.
Ainda que a obra singular de Castoriadis
alcance campos tão diferentes quanto a psicanálise, a economia, a política, a
história e a filosofia, ela tem uma unidade em torno de um problema básico –
colocar em ação o conceito de imaginário social para gerar e alimentar uma
filosofia da história e da transformação.
O pensamento castoriadiano estabelece a
liberdade humana e a imaginação radical, que movem o indivíduo e a sociedade,
como os centros da história, cuja natureza é, em grande parte, indeterminada. A
imaginação não é definida por ele como representação ou simples combinatória de
imagens, ou como erro e distorção, mas como um fluxo de prazer representativo,
imagens, fantasias e afetos que atravessam permanentemente o sujeito, de forma
aleatória e indeterminada. A imaginação é o disruptivo em nós. Equivale à
“vontade” de Nietzsche, só para dar uma ideia aproximada.
Apesar
de não negar os conflitos e as determinantes sociais, Castoriadis privilegia a
liberdade como fundamento da ação humana. Ele se situa, assim, no polo oposto
da filosofia liberal e do marxismo mais determinista. Ambas as filosofias
postulam uma racionalidade calcada no inelutável progresso econômico e
tecnológico (em direção ao crescimento da liberdade, no liberalismo),
determinados pelo primado da economia e da propriedade (no caso da ortodoxia
marxista e, também, do liberalismo). A filosofia marxista pressupõe não só a
primazia do fator econômico em todas as instâncias do corpo social, mas também
as inescapáveis Leis da História e a chegada inevitável do comunismo.
Ao contrário desses dois modelos, o projeto
claro de Castoriadis é o de pensar a sociedade (e suas instituições) como uma
criação humana que não é previamente determinada. A sociedade se constitui não
só sobre uma dimensão de base material, mas também pela criação de
significações imaginárias sociais (como a religião, os mitos, os ritos e outras
obras culturais) que estabelecem as relações entre os homens e que dão sentido
às suas ações.
O
filósofo foi marxista durante um certo tempo e militou na corrente trotskista,
da qual divergiu porque esta sustentava que a União Soviética era um “Estado
proletário degenerado pela burocracia”.
Para Castoriadis a sociedade nascida da Revolução de 1917 não era apenas
uma distorção da via correta do marxismo, mas uma entidade nova, com novas
relações de exploração de classes, com uma hipertrofia estatal que procurava
abranger tudo e todos, isto é, um sistema totalitário. Um novo monstro: o
totalitarismo.
Ao contrário de muitos ex-trotskistas e
ex-marxistas, ele não foi para a direita, mas reconstruiu o pensamento de
esquerda a partir do anti-capitalismo e do anti-totalitarismo. Não se limitou a
uma “decisão ideológica”, impensada e cômoda; foi mais fundo e construiu uma
complexa nova filosofia da História.
Conhecedor de Platão e de Aristóteles, com
sólida formação na história da Grécia antiga, Castoriadis não se preocupou a
apenas em “desconstruir” (palavra da moda) a filosofia clássica ou o pensamento
político – procurou renová-lo de um modo original, apesar da resistência que
encontrou nos meios acadêmicos por ter uma cultura erudita, polivalente, e que
não ignorou a prática política revolucionária.
As referências de Castoriadis foram a
Paidéia grega, a filosofia clássica, sobretudo Aristóteles; o marxismo do
primeiro Marx (o chamado “jovem Marx”); Hegel; os economistas tradicionais e os
contemporâneos; a psicanálise, que ele praticou desde os anos 60 até morrer. Em
relação a essa última, dizia que era um “fervoroso freudiano”, mas se nota
também duas influências importantes, que ele admitiu para mim pessoalmente:
Melanie Klein e Lacan.
Do lacanismo, dizia que aproveitou os erros
e os exageros, sobretudo na questão da linguagem e também teria aprendido com
Lacan “o que não fazer”. Criticava a “impostura” dos lacanianos ao exacerbar a
importância do silêncio na análise e seu equívoco em confundir a lei simbólica
com a Lei real, da sociedade efetiva. Curiosamente, há uma semelhança muito
grande entre a teoria e a prática de Castoriadis com um autor pós-kleiniano
jamais citado: Winnicott, que, como ele, dizia haver uma lacuna a ser
preenchida na teoria freudiana da sublimação. Para ambos, a cultura não se
explica exclusivamente por um deslocamento sublimatório dos indivíduos, mas há
uma autonomia do cultural que interage com o individual, e vice-versa.
Do ponto-de-vista castoriadiano, a
imaginação e o imaginário são constitutivos do homem e da sociedade, cujas
metas paralelas poderiam ser a autonomia e a democracia calcada na ação
coletiva “de baixo para cima”. A sociedade é uma entidade (uma “mônada”, termo
que emprestou de Leibniz) que se autocria organizando-se sobre o que se
apresenta a ela em decorrência de um fundo comum de significações (o imaginário
social, constituído por crenças, ideologias, mitos, etc.). O “projeto de
autonomia” consiste naquilo que define a palavra autonomia: dar-se as próprias
leis. Um sujeito é autônomo quando se emancipa das autoridades paternas e vai
para o espaço público lidar com as instâncias e instituições de autoridade,
legítimas ou não.
Vivemos, dizia Castoriadis, sob as
democracias liberais, sob as primitivas ou sob o totalitarismo, em sociedade
heterônomas, onde a liberdade vem “de fora” e “de cima”. Dependemos de leis
abstratas que não criamos, de deuses a que nos submetemos, de autoridades
impostas. Apenas em alguns momentos da História, o projeto de autonomia
prosperou: na Grécia, com a criação da democracia incipiente, nas revoluções antimonárquicas
do século XVIII, nos movimentos operários nascentes do século XIX e nas suas
sequências de lutas do século XX, como as revoluções russa de 1917 e a húngara,
de 1956, autonomista e antitotalitária.
Hoje, o projeto de autonomia humana consiste
em revolucionar a política para tirar a humanidade da alternativa entre
democracia liberal capitalista e regimes autoritários falsamente socialistas. A
revolução, misto de utopia no sentido mais nobre e de reatualização das ideias
do jovem Marx, não será necessariamente feita de sangue ou da tomada de
palácios. Será a progressiva consciência de homens lúcidos e da vontade
democrática dos povos diante dos abusos do poder: lucidez de que podem fazer
suas próprias leis e modificá-las permanentemente. Será uma revolução
permanente.
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