terça-feira, 5 de dezembro de 2017

UM PENSADOR DA LIBERDADE



                                                                  Reinaldo Lobo

      Na nossa época da rapidez, da imagem fugaz, do consumo infinito, da destruição das significações, da retirada da população da esfera política, da decomposição dos instrumentos de direção da sociedade, do espetáculo da alienação e da superficialidade, faz uma falta imensa uma figura da grandeza do filósofo Cornelius Castoriadis, falecido há exatos 20 anos, em dezembro de 1997.
      Filósofo e psicanalista, o greco-francês Castoriadis (1922) não só diagnosticou a insignificância de nossa época como também apontou o prognóstico implícito e as possibilidades de cura.
     Desde que saiu em 1945 de Atenas, onde estudou economia, direito e filosofia, o filósofo elaborou uma obra diversificada na França, trabalhando décadas como economista da OCDE, entidade que deu origem à União Europeia. Militante revolucionário, fundou com outro filósofo, Claude Lefort, a revista “Socialismo ou Barbárie”, motivo de um grande impacto intelectual junto às esquerdas por sua originalidade de pensamento e sua crítica do totalitarismo.
     Ainda que a obra singular de Castoriadis alcance campos tão diferentes quanto a psicanálise, a economia, a política, a história e a filosofia, ela tem uma unidade em torno de um problema básico – colocar em ação o conceito de imaginário social para gerar e alimentar uma filosofia da história e da transformação.
    O pensamento castoriadiano estabelece a liberdade humana e a imaginação radical, que movem o indivíduo e a sociedade, como os centros da história, cuja natureza é, em grande parte, indeterminada. A imaginação não é definida por ele como representação ou simples combinatória de imagens, ou como erro e distorção, mas como um fluxo de prazer representativo, imagens, fantasias e afetos que atravessam permanentemente o sujeito, de forma aleatória e indeterminada. A imaginação é o disruptivo em nós. Equivale à “vontade” de Nietzsche, só para dar uma ideia aproximada.
    Apesar de não negar os conflitos e as determinantes sociais, Castoriadis privilegia a liberdade como fundamento da ação humana. Ele se situa, assim, no polo oposto da filosofia liberal e do marxismo mais determinista. Ambas as filosofias postulam uma racionalidade calcada no inelutável progresso econômico e tecnológico (em direção ao crescimento da liberdade, no liberalismo), determinados pelo primado da economia e da propriedade (no caso da ortodoxia marxista e, também, do liberalismo). A filosofia marxista pressupõe não só a primazia do fator econômico em todas as instâncias do corpo social, mas também as inescapáveis Leis da História e a chegada inevitável do comunismo.
    Ao contrário desses dois modelos, o projeto claro de Castoriadis é o de pensar a sociedade (e suas instituições) como uma criação humana que não é previamente determinada. A sociedade se constitui não só sobre uma dimensão de base material, mas também pela criação de significações imaginárias sociais (como a religião, os mitos, os ritos e outras obras culturais) que estabelecem as relações entre os homens e que dão sentido às suas ações.
     O filósofo foi marxista durante um certo tempo e militou na corrente trotskista, da qual divergiu porque esta sustentava que a União Soviética era um “Estado proletário degenerado pela burocracia”.  Para Castoriadis a sociedade nascida da Revolução de 1917 não era apenas uma distorção da via correta do marxismo, mas uma entidade nova, com novas relações de exploração de classes, com uma hipertrofia estatal que procurava abranger tudo e todos, isto é, um sistema totalitário. Um novo monstro: o totalitarismo.
     Ao contrário de muitos ex-trotskistas e ex-marxistas, ele não foi para a direita, mas reconstruiu o pensamento de esquerda a partir do anti-capitalismo e do anti-totalitarismo. Não se limitou a uma “decisão ideológica”, impensada e cômoda; foi mais fundo e construiu uma complexa nova filosofia da História.
    Conhecedor de Platão e de Aristóteles, com sólida formação na história da Grécia antiga, Castoriadis não se preocupou a apenas em “desconstruir” (palavra da moda) a filosofia clássica ou o pensamento político – procurou renová-lo de um modo original, apesar da resistência que encontrou nos meios acadêmicos por ter uma cultura erudita, polivalente, e que não ignorou a prática política revolucionária.
     As referências de Castoriadis foram a Paidéia grega, a filosofia clássica, sobretudo Aristóteles; o marxismo do primeiro Marx (o chamado “jovem Marx”); Hegel; os economistas tradicionais e os contemporâneos; a psicanálise, que ele praticou desde os anos 60 até morrer. Em relação a essa última, dizia que era um “fervoroso freudiano”, mas se nota também duas influências importantes, que ele admitiu para mim pessoalmente: Melanie Klein e Lacan.
    Do lacanismo, dizia que aproveitou os erros e os exageros, sobretudo na questão da linguagem e também teria aprendido com Lacan “o que não fazer”. Criticava a “impostura” dos lacanianos ao exacerbar a importância do silêncio na análise e seu equívoco em confundir a lei simbólica com a Lei real, da sociedade efetiva. Curiosamente, há uma semelhança muito grande entre a teoria e a prática de Castoriadis com um autor pós-kleiniano jamais citado: Winnicott, que, como ele, dizia haver uma lacuna a ser preenchida na teoria freudiana da sublimação. Para ambos, a cultura não se explica exclusivamente por um deslocamento sublimatório dos indivíduos, mas há uma autonomia do cultural que interage com o individual, e vice-versa.
    Do ponto-de-vista castoriadiano, a imaginação e o imaginário são constitutivos do homem e da sociedade, cujas metas paralelas poderiam ser a autonomia e a democracia calcada na ação coletiva “de baixo para cima”. A sociedade é uma entidade (uma “mônada”, termo que emprestou de Leibniz) que se autocria organizando-se sobre o que se apresenta a ela em decorrência de um fundo comum de significações (o imaginário social, constituído por crenças, ideologias, mitos, etc.). O “projeto de autonomia” consiste naquilo que define a palavra autonomia: dar-se as próprias leis. Um sujeito é autônomo quando se emancipa das autoridades paternas e vai para o espaço público lidar com as instâncias e instituições de autoridade, legítimas ou não.
   Vivemos, dizia Castoriadis, sob as democracias liberais, sob as primitivas ou sob o totalitarismo, em sociedade heterônomas, onde a liberdade vem “de fora” e “de cima”. Dependemos de leis abstratas que não criamos, de deuses a que nos submetemos, de autoridades impostas. Apenas em alguns momentos da História, o projeto de autonomia prosperou: na Grécia, com a criação da democracia incipiente, nas revoluções antimonárquicas do século XVIII, nos movimentos operários nascentes do século XIX e nas suas sequências de lutas do século XX, como as revoluções russa de 1917 e a húngara, de 1956, autonomista e antitotalitária.
   Hoje, o projeto de autonomia humana consiste em revolucionar a política para tirar a humanidade da alternativa entre democracia liberal capitalista e regimes autoritários falsamente socialistas. A revolução, misto de utopia no sentido mais nobre e de reatualização das ideias do jovem Marx, não será necessariamente feita de sangue ou da tomada de palácios. Será a progressiva consciência de homens lúcidos e da vontade democrática dos povos diante dos abusos do poder: lucidez de que podem fazer suas próprias leis e modificá-las permanentemente. Será uma revolução permanente.
    
      



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