Reinaldo Lobo
Há 50 anos, aconteceu um milagre no mundo.
Não foi nada religioso nem um produto da fé. Foi um espantoso evento histórico,
inesperado por todos: uma brecha se abriu nos sistemas de poder mundiais. Por essa
fenda, passaram vietcongs, mulheres, negros e minorias, estudantes de Paris e
de São Paulo, de San Francisco, de Praga e de Tóquio, artistas, desempregados,
hippies e roqueiros. Atrás desse cortejo, entraram os operários e trabalhadores
em geral, puxados por antigos partidos comunistas e outras denominações
ideológicas.
Por um instante apenas, um grão na
história de civilização, a humanidade inteira se viu diante de uma revolução
diferente, inédita, que parecia mudar quase todos os valores, derrubar
preconceitos milenares e abrir um futuro mais brilhante dos que surgiram após
as revoluções francesa, de 1789, e russa, de 1917.
As mulheres, que vinham entrando para o
mercado de trabalho e para a cultura, passaram corajosamente por essa brecha e
começaram a transformação que o nosso escritor Tristão de Ataíde considerou a
única revolução exitosa do século XX, a feminina.
Os negros norte-americanos puseram-se em
marchas históricas, conquistaram os direitos civis e o sonho de Martin Luther
King, assassinado em abril desse ano luminoso e violento, começaria sua
realização na eleição de Barack Obama, décadas depois.
Nas ruas de Paris e de várias cidades europeias,
houve um surto de imaginação e elas se encheram de pichações criativas, como:
“É proibido proibir”; “A Imaginação ao Poder”; “Rompam as cadeias infernais”;
“Debaixo dos paralelepípedos, a praia”;
“Sejam realistas: peçam o impossível”.
Foi o tempo de Bob Dylan e de John Lennon,
que invocavam a paz e o amor. Foi o tempo da liberação sexual, da
anti-psiquiatria, da ascensão do respeito à diversidade e das comunidades alternativas--as “famílias”
formadas por jovens e adultos que se escolhiam para viver juntos.
Por um breve momento histórico, tudo
parecia possível: a queda das oligarquias liberais ocidentais e das burocracias
comunistas. No Ocidente e no Leste, surgiram fenômenos de massa como as
rebeliões em Berkeley, manifestações em Londres e Belfast, e a Revolução
Cultural chinesa, percebida por Mao Tsé-tung e canalizada em seu proveito. Na
Polônia, na Hungria, na então Tchecoslováquia, estudantes saíram às ruas e pediram
liberdade para todos. Pode-se dizer hoje, sem risco de errar, que a queda da
União Soviética começou no Ano da Graça de 1968, com a chama anti-burocrática
iniciada.
Na América Latina, na África e na Ásia, os
movimentos ocorreram principalmente guerrilhas de libertação nacional, para tentar
pôr abaixo ditaduras sangrentas e regimes corruptos. Os jovens
latino-americanos perceberam -- na esteira da Revolução Cubana e inspirados por
um ícone de 68, Che Guevara-- que era possível fazer uma revolução fora dos
partidos comunistas e até contra eles.
No sudeste da Ásia, no minúsculo Vietnã
o ano começou com a maior ofensiva guerrilheira contra mais de 400 mil soldados
ocupantes norte-americanos, a ofensiva do Ano Novo, temporada das chuvas e da
lama. Nesse momento, a guerra virou completamente a favor dos guerrilheiros
vietcongs e das tropas norte-vietnamitas e culminou com a primeira grande
derrota do império norte-americano desde o seu triunfo na Segunda Guerra
Mundial.
Os
conservadores costumam dizer que a guerra do Vietnã foi perdida no Ocidente, em
função dos movimentos a favor da paz dentro dos EUA . Talvez eles tenham razão,
em parte, pois houve mesmo uma onda mundial de protestos pacifistas e, nos EUA, as mortes dos jovens norte-americanos
foram transmitidas pela primeira vez na TV. Mães no Texas ou em Nova York chegaram a ver seus filhos mortos ou
mutilados, carregados nas macas de guerra.
Vários historiadores contemporâneos,
sobretudo os conservadores, fazem uma avaliação negativa de 1968, que, afinal,
não chegaria a se consumar integralmente como uma revolução. Alguns ressaltam o
fato de não ter surgido nenhum poder e nenhum regime derivado do movimento.
Ora, o objetivo dos vários levantes internacionais
de 1968 foi justamente o de negar os regimes existentes e de criticar as formas
clássicas de poder. Foram movimentos libertários, que desconstruíram a política
tradicional e propuseram novas relações no interior das sociedades existentes,
assim como novas formas de poder menos hierárquicas e mais participativas. Alguns
deles mostraram justamente que o poder está difundido na estrutura das
sociedades e que só a criação de contra poderes e de uma contracultura poderiam
fazer avançar a emancipação humana.
Intelectuais franceses de direita exaltam
1968 por sua crítica do totalitarismo e um pretenso elogio do individualismo,
que viriam desembocar no pós-modernismo e no neoliberalismo. Essa é uma
interpretação equivocada e uma distorção ideológica. Assim como os comunistas
tradicionais, que lamentam os movimentos daquele ano por não chegarem a tomar
nenhum Palácio de Inverno e por abrirem caminho para uma reação da direita, os
pensadores de direita confundiram com individualismo a busca pela emancipação,
des-alienação e autonomia.
1968 é mesmo um ano que não acabou--como
disse uma vez, com outro significado, o escritor brasileiro Zuenir Ventura. Foi
um período que, além de ter aberto a discussão sobre o sentido de uma
revolução, estimulou uma transvaloração de todos os valores existentes,
introduziu uma nova noção de luta social, abriu caminho para os movimentos
LGBT, feministas, ecológicos e antirracistas e deixa o futuro aberto para a
criação de novas maneiras de resolver as questões políticas e sociais.
Surgiu,
em consequência dele, uma disputa sobre os comportamentos e valores que--
pode-se dizer-- deu origem a uma esquerda e a uma direita que se digladiam na
esfera “comportamental”. Mas, sobretudo, o ano de 1968 representou a esperança
de liberdade para toda uma geração de seres humanos, inclusive para aqueles que
ainda estão por vir.