quinta-feira, 19 de abril de 2018

LULA LÁ



                                                   Reinaldo Lobo

      Na cadeia ou na Presidência da República? Num caixão, abatido a tiros, ou vivo nos braços da multidão? “Lá”, onde? Neste momento, Lula está preso, para gozo de todos os que o chamam de ladrão, criminoso, bandido que não merece o convívio social normal dos “cidadãos de bem”. Essa fatia da sociedade quer transformá-lo numa espécie de Fernandinho Beira Mar, justamente o oposto da imagem de um Nelson Mandela oferecida pelos petistas.
     Num momento de “simpatia” e de “generosidade”, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso soltou uma frase, quando pediam o impeachment de Lula em plena época do “mensalão”, em 2005 : “Não se pode impedir ou cassar um líder social e político como ele, com a adesão e a dimensão que tem. Ele não é um Collor nem um Maluf”. Não é mesmo.
     No ano seguinte, Lula seria reeleito com mais de 60% dos votos contra Geraldo Alckmin, do PSDB, que obteve 39%.
     Ao mesmo tempo, ainda em 2005, os tucanos começaram a campanha para fazê-lo “sangrar até morrer”, que culminaria no impeachment de Dilma Rousseff e ,agora, em sua prisão. Assim funciona a política, em particular no estilo dos  tucanos, hábeis em duplicidade.
    Lula merece estar preso? Será essa a questão ou tudo não passa de uma oportuna ação política destinada a remover o líder de sua dimensão , a fim de que se possa “resolver“ a crise econômica do capitalismo brasileiro pelas mãos conservadoras e neoliberais?
     O “timing” e a severidade da Operação Lava Jato, coincidência ou não, ajudaram muito a montar o quadro eleitoral deste ano, do qual Lula parece definitivamente excluído. Por enquanto, “Lá” significa a prisão, com doze anos e meio de sentença pela frente.
     Há quem diga que a prisão poderia ser relaxada após as eleições, quando estiver eleito um adequado presidente de “centro-direita”, ao gosto do “Mercado”, cujo perfil coincide notavelmente com o de Geraldo Alckmin, o “Santo” da Odebrecht, suspeito de vários desvios em São Paulo, e que acaba de ser salvo da Lava Jato pelo STJ.  
    Os que se prendem às regras formais e aos rituais da Justiça usam isso como argumento para justificar a prisão. Dizem: “Se foi condenado, então não pode deixar de ser preso”. Não há presunção de inocência, mas preconceito. Geralmente ignoram a campanha de difamação e de redução da pessoa a um corpo, a uma coisa destinada a ser presa, e ficam com os “fatos”, neste caso altamente discutíveis em matéria de provas. Há uma enorme quantidade de “fake news” e de mentiras programadas sobre Lula e sua família. No imaginário de inúmeros eleitores da direita, os filhos de Lula seriam as pessoas mais ricas do País, sendo que a maioria deles está desempregada.
       O processo de Lula foi isento e sem conotação política? Não. Os procuradores e juízes que o acusaram são pessoas comuns, sujeitas não só aos princípios e cânones da Lei, mas suscetíveis de ideologia implícita da sua condição social e pelo moralismo desencadeado com a revelação da corrupção localizada no Sistema Corrupto, esquema transformado em rotina, envolvendo Estado e empreiteiras.  Há que acrescentar como parte dessa operação a própria mídia, usada ostensiva e seletivamente pelo juiz Moro em suas revelações e vazamentos de frases atribuídas aos denunciados delatores.
     As investigações da Lava Jato foram estimuladas por Dilma, autora de uma “faxina” ministerial e fonte da legislação sobre delações premiadas que permitiram o avanço da Força Tarefa de Curitiba. Dilma queria barrar os abusos na Petrobrás, tentando mudar as diretorias. Isso pode ter-lhe valido o furor de personagens como Eduardo Cunha, que permaneceu na presidência da Câmara até cumprir a missão de derrubá-la.
     A prisão de Lula coincide com a culminância de um crescimento das forças de extrema direita, uma real onda conservadora, não só no Brasil, mas no continente americano, norte e sul, e na Europa. É como se um pêndulo oscilasse da esquerda para direita na tarefa de enfrentar a crise do capital. Os brasileiros não escaparam. Entramos com a pior parte nessa tarefa, a mais repressiva e turbulenta, com uma política de combate à recessão com mais recessão e retirada de direitos sociais.
     O impeachment de Dilma ficou conhecido como o golpe paraguaio, pois foi dado no Congresso, com apoio no Judiciário, como no Paraguai que teve seu presidente Fernando Lugo derrubado. A mesma fórmula foi usada em Honduras, o que faz pensar em uma sequência lógica e articulada.
     Esse desvio à direita pode ter consequências desastrosas para a própria economia. Certamente terá efeitos por um bom tempo na esfera do trabalho e das classes pobres, se uma solução de compromisso não for encontrada. Paradoxalmente, Lula era, e é, a liderança mais capaz de acordos e compromissos, às vezes até temerários.
     Sua prisão deixa os conservadores com uma tarefa difícil A direita quer governar isolada no poder, apesar de ser péssima de voto. É difícil saber como o fará. Ainda que hoje tenha público, formado no antipetismo e no ódio radical, a direita não tem lideranças capazes de empolgar ou de formar um bloco transparente e hegemônico.  O único personagem disponível, Bolsonaro, é fascista demais para ser palatável pela “centro direita”. Então, ela vai recorrer a um novo golpe ou permanecer aliada dos setores mais corruptos da política do PMDB, PP, PTB, DEM e um longo desfile de pequenos partidos de compra e venda?
     O mais provável é que tente pavimentar o caminho para um Alckmin, mas correndo o risco de perder para uma Marina -- a que come quieta e balança na sua rede para a direita e à esquerda. Seria um novo momento para a elite brasileira, despreparada para encarar de verdade o povo.
      Lula é o nosso político mais controverso, mas também o único capaz de fazer as ligações e alianças que não excluam o povo pobre. A direita sabe disso. Quando pediram ao general De Gaulle que prendesse Jean Paul Sartre na rebelião de iniciada em Maio de 1968, ele respondeu: ”Não se prende Voltaire.” De Gaulle era um conservador inteligente, não fez isso por generosidade ou piedade.
      Lula não é um Voltaire, mas merece respeito como ex-presidente e como a figura pública que definiu um lugar do Brasil no mundo. Por mais que insistam em manter a prisão de Lula, volta sempre a frase de Fernando Henrique Cardoso: “não se prende um líder social e político dessa dimensão”.
     

segunda-feira, 9 de abril de 2018

O MECANISMO




                                                                  Reinaldo Lobo

         O Brasil passa por uma aguda politização. Os que só enxergam os efeitos negativos da crise política, gostariam da volta a uma pasmaceira oligárquica onde quem tem poder, manda, e quem é prudente obedece. O principal mérito da investigação conhecida como Lava Jato, independente das intenções pessoais de quem a iniciou, foi expor aos olhos de todos o que tenho chamado aqui de Sistema Corrupto, que vem de longe, de bem longe na história do País.
         O resultado foi uma fissura política no Sistema, agravada pela presença de um partido político na aliança no poder, o PT, que era um estranho no ninho da oligarquia tradicional e uma ofensa ideológica às classes dominantes. A liberdade para investigar a corrupção, mudando a legislação, fortalecendo a Polícia Federal e a Procuradoria, partiu paradoxalmente desse mesmo partido que se tornaria o alvo predileto do núcleo inicial da Lava Jato. Os mais conservadores viram nisso uma oportunidade de se livrar do PT, empalmando um genérico combate à corrupção. O impeachment da presidente petista agravou a crise política, em lugar de resolvê-la, desestabilizando as fundações da instituição central, a própria Presidência.
        A consequência foi um presidencialismo de coalizão entre suspeitos e denunciados que desejavam encerrar ali a Lava Jato, mas a dinâmica judicial e policial desencadeada não parou nem “estancou a sangria”, segundo a célebre frase do Richelieu do Sistema, o senador Jucá. Essa coalizão tem funcionado a favor do chefe maior, o presidente sem votos populares, Michel Temer.
       Da fissura política, com quase todos os políticos dos principais partidos envolvidos e acusados, da cínica permanência do grupo de Temer no comando da Câmara e do Senado, bem como da sua interferência em áreas da Justiça e da Polícia, resultou uma feroz radicalização no seio da sociedade e os anti-petistas enfurecidos ganharam fôlego com as condenações e possível exclusão de Lula das eleições presidenciais.
       Um detalhe importante: entre os que pedem a rápida e imediata prisão de Lula não estão apenas os direitistas contumazes, os proto-fascistas, mas também uma gama de setores sociais politizados e semi-politizados que acreditam de boa-fé que isso abriria o caminho para a prisão e purgação de todos os políticos na República envolvidos em corrupção.
       Esse sentimento genérico, bastante ingênuo, que supervalorizou um simples juiz de primeira instância, Sérgio Moro, é o mesmo que parece animar a polêmica série de TV “O Mecanismo”, lançada perigosamente no contexto de um ano eleitoral de absoluta indefinição até agora.
       A discussão sobre se essa série mente ou não -- da qual o autor José Padilha se defende, neste caso malandramente, dizendo que é ficção--, não é a questão mais importante. A principal, a meu ver, é se Padilha não caiu na mesma crença genérica de que basta combater os criminosos para eliminar o crime.
      Os filmes desse diretor enfocam, geralmente, a realidade social e política sob a ótica e o estilo do policial, transformando a ação em uma luta entre o Bem e o Mal a ser vencida pelos “homens de bem”. Nessa luta, a força bruta é bem-vinda, como em qualquer filme de ação “B” norte-americano. Foi assim, inclusive, nos lançamentos sobre a “Tropa de Elite”. Agora, “O Mecanismo” parece até a continuação de uma trilogia.
      A complexidade do Sistema Corrupto -- suas entranhas empresariais e políticas no bojo do Estado, a longa promiscuidade histórica do Estado Patrimonial brasileiro, que vem desde a colônia, passando pelo autoritarismo do Estado Novo, da Ditadura civil-militar de 1964, atingindo a Nova República--, não pode ser reduzida a um caso de polícia. Não há mocinhos, nem apenas bandidos nesse quadro. Os policiais, promotores e juízes também não são santos, nem isentos.
     A própria ruptura jurídico-policial imposta pela Lava Jato, aproveitada politicamente por forças que queriam tomar o governo de assalto justamente para perpetuar o Sistema e promover sua autodefesa, foi uma avalanche com repercussões que aprofundaram não só a crise política, mas a econômica. O combate à recessão com mais recessão, seguido pelo atual governo, é uma consequência do ambiente de “terra arrasada” decorrente de uma brutal e repentina brecha na estrutura política, social e econômica do País.
     A emergência de um político simplório como Jair Bolsonaro no gosto de parte das classes médias e do lumpen, nesse ambiente de redução da política a um assunto policial, não deveria surpreender ninguém. Ele é um fruto dessa mentalidade policial expressa na série da TV.
     Num ponto, o diretor Padilha está certo e diz a verdade: há um mecanismo que dá forma à corrupção brasileira. Só que o acionamento e as funções desse sistema são de natureza histórico-social e institucional, muito mais complexos do que parecem a um juiz de primeira instância ou a um policial.
    O sonho de um herói ou de um grupo de heróis idealizados que enfrentem a corrupção criminosa ignora a dura realidade de uma sociedade constituída por setores mandonistas com o chicote na mão há séculos, acrescida de estratos que já naturalizaram a exploração, o oportunismo e as táticas de submissão e compadrio.
    Os políticos que hoje mandam no País já armaram, inclusive, sua própria autodefesa para as próximas eleições, com regras eleitorais que garantem a permanência dos grandes partidos na posse do dinheiro publicitário. E nada garante que, mesmo sem a permissão de financiamento empresarial, o fluxo da dinheirama não se dê pelo caixa dois já conhecido de todos.
     Como enfrentar, então, esse sistema? Há um impasse agudo nesse momento, dentro do seu próprio núcleo sistêmico e na sociedade. Contudo, é desse mesmo ponto sem retorno que pode fluir um conjunto de ações da sociedade civil, hoje mais politizada e atenta aos movimentos tanto dos políticos quanto do judiciário. Ainda existe um povo neste País, por mais viciado que esteja em ser apenas espectador (e telespectador), que se tem movimentado em manifestações, redes sociais e mesmo numa nova atitude quanto ao voto. Não há por que desesperar, nem contar apenas com a polícia.
    A intensa corrupção contemporânea -- dizem alguns sociólogos bem informados--, resulta, sobretudo, de um movimento interno de sociedades em desenvolvimento quando a mobilidade social se intensifica entre as classes, com alguns querendo cortar caminho para a ascensão via Estado e outros se revoltando com a própria exclusão. É uma dinâmica complexa, agravada por uma sociedade como a existente no Brasil, ainda marcada por valores em conflito entre o arcaico o moderno—um Sarney, coronelzão do Norte, convive com políticos sulistas, mais antenados no futuro.
    A engenharia política para desmontar o Sistema Corrupto ainda está sendo elaborada, mas não se resume certamente a prisões, delações e desmoralizações públicas, mesmo que estas possam fazer parte do quadro. Essa visão simplista é tão prejudicial quanto a própria corrupção. É preciso lembrar a frase lapidar de Antônio Carlos Jobim, nosso grande compositor: “O Brasil não é para amadores”.