Reinaldo Lobo
A inveja é um “monstro de
olhos verdes”, disse Shakespeare – no “Otelo”, descrevendo-a sem nomeá-la
exatamente e encarnada na personagem de Iago. Esse monstro é capaz de
atormentar, corroer por dentro e até matar. Tem tudo a ver com olhar: a palavra
“invidia” vem do latim, derivada do verbo “videor”, que quer dizer ver e,
curiosamente, também ser visto. O olhar possessivo de um ser humano – todos
nós—tomado pela inveja vê, vasculha, examina nos detalhes o que é do outro e
que deseja para si. E ataca. A inveja dá medo.
Não é por acaso que muitas pessoas, ao
se sentirem invejadas por possuir um bem ou qualidades que as distinguem,
fazem-se de humildes, como se pedissem desculpas. Têm medo de despertar ou
confirmar a inveja dos outros. Algumas portam-se, ao contrário, de forma
arrogante, mostrando seus bens e atributos admiráveis, defendendo-se pelo
reasseguramento e o exibicionismo.
Todos sabemos que ninguém quer se
sentir um invejoso contumaz, mas o sentimento é universal. O mais difícil para
contê-lo é quando está completamente mergulhado no inconsciente: a pessoa o
nega com insistência, mas atua de modo a expressá-lo na conduta.
No fundo, quem inveja se sente
inferiorizado, sofre no íntimo por isso, sem se dar conta de que a inveja é apenas
o desejo de possuir algo que pertence ao outro. Revela, é verdade, o mal-estar pela felicidade do outro e por
própria posição de inferioridade, por não ter o que o outro tem—e avaliar que
nunca terá--, mas é um sentimento demasiado humano. A inveja envolve cobiça,
voracidade e narcisismo ferido, isto é, orgulho atingido e sentimento de
humilhação. Se assumida conscientemente, torna-se mais benigna.
Não é uma emoção bonita, mas, no fundo,
a inveja é admiração por linhas tortas. Para que a inveja leve a uma ação
contra o objeto ou a pessoa admirada, depende do montante de raiva e de cobiça
que envolve esse desejo, assim como do sentimento de inferioridade de quem
cobiça. Daí os patuás de proteção, de “corpo fechado” contra o “olho gordo”, os
esconjuros e as imprecações das religiões e crenças primitivas.
É possível distinguir com certa
facilidade um olhar invejoso, bem como uma fala carregada de inveja. Os
jogadores mais famosos da Copa do Mundo são um alvo predileto dos comentários
invejosos dos chamados cronistas esportivos e das pessoas em geral. Idealizados
e admirados, são automaticamente invejados pelo público e, quando falham, é
descarregado um desprezo violento ou um rebaixamento de sua condição de ídolos.
O pavão é um bicho bonito de se ver,
de plumagem colorida e de porte altivo, desfila sua beleza, mas um invejoso vai
destacar um detalhe feioso: o pé do pavão. O pavão é lindo, mas o pé é feio –
dirá o invejoso meticuloso.
Há alguns dias, comentando uma
declaração de alguém da equipe técnica da Seleção, que dizia a respeito do
jogador Neymar que ele havia sofrido muito após uma cirurgia que o retirou dos
treinos e dos campos por três meses, um cronista esportivo não hesitou em dizer
na TV:
-- Ele diz que sofreu, mas foi
fotografado com a namorada Bruna Marquezine no colo em sua cadeira de rodas!
Seguiu-se um muxoxo de desprezo no
rosto do cronista. Ele ignorou o simples fato de que para um jogador de futebol
no auge da juventude e da carreira brilhante ficar fora de sua atividade por
três meses já é um sofrimento, além da cirurgia, da dor física, da difícil e
incerta recuperação.
E o cabelo de Neymar? Um capricho juvenil
dele, um toque na imagem para fixá-la chamando a atenção, provocou uma torrente
de ataques, de um tipo parecido com os dirigidos ao pé do pavão.
Lembro-me de um episódio do célebre
Ronaldo, o “Fenômeno”, que comprou certa vez uma Ferrari na Europa, no auge de
sua carreira vitoriosa, e trouxe para o Rio de Janeiro, onde fez um rápido
passeio à beira das praias. A imprensa caiu em cima dele com tal fúria, com afirmações
sobre a indiferença pelos pobres e a
miséria no País. Não havia jornalista, esportivo ou não, que não falasse do
assunto. Um cronista escreveu que Ronaldo não era lá essas coisas como jogador
para merecer uma Ferrari e, ainda mais, exibir-se acintosamente pelo Rio.
O tal cronista se esqueceu que só não
ganhamos, possivelmente, a Taça em 1998 porque Ronaldo não estava em campo na
final, acometido de uma doença, e que ele acabaria por vencer a Copa de 2002
com uma atuação que o consagrou como um dos maiores jogadores da história do
futebol.
Não deu outra: o coitado do Ronaldo
(sim, nesse caso coitado) livrou-se da Ferrari e, para recuperar sua imagem
desgastada, passou a mostrar as benemerências que fazia aos pobres e a visitar
crianças doentes em hospitais.
A frase do grande Tom Jobim --” No
Brasil, o sucesso é uma ofensa” -- não vale só para o Brasil, ainda que, aqui,
a desigualdade e a injustiça social tendam a
encobrir as manifestações invejosas com uma aura de respeitabilidade. É
como se a inveja se justificasse pelas condições do País. Como a bíblica ira
dos justos, a inveja dos cronistas esportivos e do público contra os ídolos do
futebol é bastante cruel.
Muitas
vezes, a inveja provém do desamparo que a pessoa sofreu na infância, num
ambiente que pode ter falhado com ela, levando-a a um sentimento de automenosprezo
e fragilidade. Isso a faz atacar os “mais fortes”. Impede também de ver o outro
em sua totalidade e a trajetória de vida que teve.
Ronaldo -- como Romário, Neymar e outros--
saiu de vila pobre da periferia e passou, por seu trabalho, a ganhar milhões
numa profissão que é uma das mais bem remuneradas do planeta. Não exploraram
ninguém, não roubaram, não usaram o caminho da corrupção. Só jogaram bem.
O contrário da inveja, dizia Melanie
Klein, é a gratidão. Quando atacamos a mão que nos alimenta – com comida, amor,
felicidade, prazer, alegria, identificação com o êxito, etc.—estamos sendo
ingratos e incapazes de reparação pelo que recebemos e que podemos destruir. Há
um ditado árabe que diz: “Por que me maltratas, se eu nunca te fiz bem”. Temos
uma inclinação a maltratar aqueles que nos fazem bem.
Por mais restrições que se faça a
Neymar, Messi, Cristiano Ronaldo e outros craques do esporte, alguém que goste
de futebol pode dizer, em sã consciência, que eles não deram aos torcedores
grande momentos de identificação no êxito e muita alegria?
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