quarta-feira, 10 de abril de 2019

VIVENDO NO IMAGINÁRIO




                                                        Reinaldo Lobo

    Imagine um adolescente que vê um filme de ação, digamos da Marvel, com aquelas violências repetidas e acrobáticas. Você estará vendo o presidente do seu País, Jair Bolsonaro, em Istrael, com uma metralhadora na mão, fazendo gestos de capitão América, matando inimigos imaginários no ar.
    A cena seria apenas uma brincadeira, pois, como disse o Rodrigo Maia, presidente da Câmara, o capitão está brincando de ser presidente. Mas  a gestualidade tem muitos significados bélicos, políticos e diplomáticos. Foi, por exemplo, uma provocação ao Hamas, que --gostemos ou não-- representa os palestinos, os quais , por sua vez, estão intrinsecamente ligados ao mundo árabe e muçulmano.
   Os palestinos são um símbolo de resistência ao “imperialismo norte-americano e israelense” no universo islâmico. São um xodó de quase todos os governos árabes e até do Irã, que não é árabe mas ultra muçulmano.  E, como todos sabem, essa parte do mundo é um dos mercados preferenciais da economia brasileira.
   Muitos brasileiros se escandalizam com as atitudes do governante do seu País, que mais parece um idiota dando tiros nos próprios interesses nacionais. Mas, antes, é preciso compreender que, desde a eleição presidencial de 2018, entramos numa nova era.
    Ainda que pareça uma viagem retrô aos anos 50/60, essa nova fase do Brasil é e será dominada pela irresolução de um problema político e ideológico revivido pelas nossas elites: como governar com apoio popular fazendo governos anti-populares calcados numa tradição escravista?
    Muitos recursos têm sido usados para operar esse milagre, que chamarei de opressão tolerável. O Brasil tem vivido nesse regime há muito tempo, pois o fundo determinante de suas políticas é sempre autoritário. Os que falam de “nossa frágil e jovem democracia” parecem responsabilizar a fraqueza do regime democrático por sua incapacidade de se impor. Ao contrário, a força de nossas elites dominantes, viciadas no mandonismo, na exclusão social e no poder discricionário, é o que impede a democracia de prosperar.
    O governo Bolsonaro, apoiado pelo Judiciário elitista e conservador na sua essência e agora recheado de militares por ocupação direta, é o ápice desse processo de ilusão ideológica que sustenta a necessidade inevitável da repressão sobre as classes populares. Essas classes são o perigo real e imediato que heróis em quadrinhos da família Bolsonaro precisam enfrentar.
   O imaginário da “família imperial”, como disse FHC, encarna essa necessidade de eliminar o “excedente” representado por frações da pobreza, culpabilizadas  e criminalizadas. Para alívio das elites e de boa parte da classe média branca, os gestos de “arminha” feitos pelos filhos do presidente amigos de milicianos assassinos e pelo próprio pai, sedento de poder bélico, são a síntese simbólica de uma nova fase excludente da história brasileira.
    A tradição autoritária é a mesma, mas a nova etapa é a do imaginário “norte-americano” da violência.
   Nossos heróis vivem num mundo hollywoodiano, onde a realidade se adapta às premissas dos autores do filme. É o processo de se isolar dentro de categorias ideológicas, criar um mundo falso à imagem dessas categorias e agir como se estivesse em guerra com um inimigo conhecido por todos.
   Alguns setores da esquerda padecem dessa mesma ideologia – retrô por natureza--, fantasiando que ainda estamos no tempo de Sierra Maestra e que todos deveriam largar seus celulares e partirem para as montanhas ou para as barricadas.
   Bolsonaro parece estar brincando de presidente, mas está fazendo algo pior: desejando impor um mundo falso à imagem do tempo da Guerra Fria e dos anos 50. Sua ideologia é melancólica, lastima a perda de um passado que precisaria se completar. A patética proposta de comemoração do golpe de Estado de 1964 expressa essa busca de um tempo perdido e o desejo  de retomada desse mesmo passado.
    O imaginário humano permite esse enclausuramento em símbolos, mitos e imagens de todo tipo. Na psicose, isso constitui a criação de um mundo à parte de fantasias onipotentes. Há formas ideológicas que se parecem muito com a loucura, tal o grau de distanciamento da experiência da vida concreta. Quem não se lembra do universo criado pelos regimes totalitários do século XX  : crianças dando loas com saudação fascista a Hitler e Mussolini, assim como na URSS homens adultos, barbados, vários na meia idade gritando: “Viva o paizinho Stálin,  guia genial do povos, viva!” ?
    Já se disse que a palavra “mito” aplicada a Bolsonaro é uma expl.oração do irracional e das emoções humanas para impedir o uso da razão, como nos regimes totalitários. Acho que há  nessa opinião uma admiração e um culto da razão separada das emoções. Não há política sem emoções humanas nem sem exploração das motivações inconscientes.
    A questão é se estamos diante de uma política infantilizadora e regressiva ou de uma política madura, que promova o desenvolvimento de personalidades democráticas, com  respeito ao outro e à opinião divergente. A política da “nova política” ,vingativa e persecutória, pode ser tudo, menos madura e democrática.

  


HOMO BOLSONARIANNUS



                                                                     Reinaldo Lobo
     O Brasil já produz o “homo bolsonariannus”. O major Olímpio, senador da República, é um exemplar da espécie. É um ser que gosta das soluções simples, violentas e estúpidas, como a idéia de armar bedéis, professores e merendeiras das escolas para reagirem a ataques de garotos suicidas e homicidas armados com armas de fogo. 
    Outro modelo da nova safra de brasileiros surgidos após a eleição de novembro de 2018, é o general Mourão, vice presidente da República, que foi capaz de diagnosticar o que houve na escola em Suzano, quando morreram pelo menos dez pessoas , incluindo os dois jovens suicidas. Achou a chave de tudo: o excesso de vídeo games violentos na praça, capazes de distorcer a mente dos garotos e garotas.
   O grande estrategista militar foi fiel ao pensamento da Escola Superior de Guerra, segundo o qual o controle das mentes é o instrumento para manipular populações de seres humanos como parte da guerra psicológica pelo poder e a dominação. Na época da Guerra Fria , quando o hoje general de divisão era jovem, esse pensamento visava a combater o comunismo, essa insidiosa ideologia capaz de lavar e submeter os cérebros das crianças e dos adultos. Hoje, o discurso é mesmo, ainda que não exista nenhuma potência comunista atrás de nossas crianças.
   A complexidade de uma tragédia como a de Suzano fica reduzida ao clique do gatilho de uma arma ou de um botão de videogame.
   O “homo bolsonariannus” não está interessado em complexidades nem em sutilezas psicossociais. Suas respostas são diretas e imediatas, na ponta da língua. Não lhe ocorre que a insegurança generalizada da população talvez não se possa resolver com mais armas ou com maior repressão paterna aos jogos das crianças.
    Tampouco passa pelas cabeças do major e do general que a educação de qualidade nas escolas, emprego para os pais, uma orientação preventiva de psicólogos competentes, confiança na seguridade social,  a assistência às famílias, difusão de valores democráticos, como respeito às diferenças e liberdade de manifestação, igualdade salarial entre homens e mulheres , promoção real dos professores, alimentação de qualidade, mais cuidado do Estado com as pessoas e sua saúde mental, sem fanatismo religioso ou reduções simplórias, talvez possam minorar a angústia das crianças e das famílias.
    No mundo inteiro, o reconhecido narcisismo ferido dos adolescentes, fonte de fúrias, às vezes assassinas e suicidas, costuma ser prevenido com trabalhos de dinâmica nas escolas e, sobretudo, evitando-se o acesso às armas de fogo. Não há dúvida de que vídeos e filmes podem inspirar a FORMA dos gestos violentos, mas só em alguns indivíduos cuja problemática no lar e nas suas mentes atormentadas os convida à violência.
    Crianças saudáveis podem perder o equilíbrio quando submetidas ao bullying nas escolas, muito freqüentes, mas não chegariam ao furor narcísico se tivessem assistência a tempo e não obtivessem acesso a armas de fogo. Uma cultura da paz e do diálogo pode ser implementada na vida escolar e, mesmo que os jovens tenham uma maior impulsividade, não é a maioria que chega ao desespero dos atiradores de Suzano. É possível um trabalho cuidadoso de prevenção ao suicídio – pois os franco atiradores geralmente são suicidas. Mas isso não ocorre ao “homo bolsonariannus” cuja regra consiste em usar a violência e a repressão para combater a violência.
    Vídeos e filmes violentos, ao contrário do que supõe o “homo bolsonariannus”, são uma forma de descarga de impulsos agressivos e caminho para uma forma de alguma sublimação. Só induzem à violência os que estão suscetíveis a ela, isto é, os mais perturbados ou traumatizados. Os estudos realizados nos EUA, onde as ocorrências são bem conhecidas, mostram que quem comete massacres em escolas são os vingadores, eles próprios vítimas de traumas prévios e de famílias inseguras na condução dos afetos. Não são afligidos apenas por questões morais e espirituais, como querem os religiosos, mas afetivas. 
    A busca dos jovens por atenção e reconhecimento, sua fome por olhares compreensivos e tolerantes em relação  às suas idiossincrasias e expectativas, às vezes exageradas, pode ser uma das bases complexas da violência, quando essa busca é frustrada.
    Famílias suficientemente amorosas e tolerantes não geram monstros, exceto em casos muito raros. Só que essas famílias, para existirem, também precisam do cuidado do Estado e da sociedade com as pessoas. Cuidados reais, não verbas para construções e promessas  de campanha.
    É o caso de perguntarmos que educação familiar e quais famílias produziram seres como Jair Bolsonaro, seus filhos pró milicianos, o major Olímpio e mesmo o general Mourão, politiqueiro e oportunista que não ousa contestar a idéia absurda de flexibilizar o uso de armas entre a população civil, como se estivéssemos em uma guerra permanente dentro de casa e fora dela. Isso é a consagração da estupidez, do femenicídio, da brutalidade e do desprezo pelo outro.
    Militares gostam de uma guerra, aprenderam a guerrear como se aprende a jogar videogames, temos problemas com os traficantes e matamos negros nos morros que são seres humanos excluídos e miseráveis. Mas será que a única solução que vislumbram é matar mais?
    O “homo blosonariannus” não deve ser o melhor modelo civilizatório para o Brasil, ainda que seja o produto de uma eleição carregada de expectativas de melhoria da economia e da sociedade.  Sua visão “hobbesiana”, sem conhecer Hobbes, é a de que o homem é o lobo do homem, e não tem outra saída. Esse tipo de homem se parece muito com um fascista. Pela simples razão de que suas soluções são iguais às daqueles garotos confusos que mataram uma dezena de pessoas, inclusive eles próprios
   

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

A MODA BOLSONARO



                                                                              Reinaldo Lobo

      Como todas as modas, terá seu tempo de duração. Um dia passa, como uma onda no mar, diria Lulu Santos. Várias teses sociológicas interessantes serão escritas sobre o assunto. Já apareceu até uma quase teoria sobre o “Mito”, sob a pena brilhante de Eliane Brum: o ex-capitão representa o homem comum ressentido (a palavra é minha), excluído do circuito moderno e culto em que imperam os Direitos Humanos e Civis. É quem está fora das rodas sofisticadas da classe média de esquerda, instruída e “antenada”.
     Esse sujeito teria sufocado um bom tempo seus velhos preconceitos machistas e antiquados e saiu do armário, com sinal trocado, despejando seus votos na caixa da extrema direita, sem nenhum pudor.
     Há verdade nessa interpretação, mas é possível dizer que houve mais complexidade nessa ascensão de uma moda, afinal, retrô, com forte nostalgia da época da Guerra Fria e de 1964. Ora, dirão, nada a ver: o passado já era, as circunstâncias são outras, hoje existem as redes sociais, habilmente explorados pelo candidato Bolsonaro e seus ricos apoiadores, além dos seguidores “medianos”.  Sem dúvida. Os tempos são outros, mas o fantasma de crise e de medo está presente como em 1964.
     A classe média daquela época apoiou a queda do trabalhismo e a intervenção militar para “restaurar a democracia” como se houvesse um verdadeiro “perigo comunista” no País. Hoje sabemos que era tudo “fake”, uma montagem de cenário com apoio norte-americano para desestabilizar o governo Goulart, que corria o risco de se tornar “neutro” (uma outra fantasia, pois Goulart cedeu em tudo o que pôde) no embate com a então União Soviética. O que os líderes norte-americanos temiam eram os votos do Brasil na OEA, então território quase exclusivo das ordens de Washington. Paradoxalmente, quem tentou virar “neutro” foi o conservador Jânio Quadros em 1961, e caiu rápido.
      Na dinâmica interna do Brasil, a classe média temia a ascensão das classes populares e, como consequência, sua própria proletarização. Outra fantasia ideológica difundida pela mídia da época pelos “institutos de defesa da democracia” financiados pelos ricos e os norte-americanos, que preparavam o golpe de Estado.  O País nunca esteve, apesar da crise política e inflação alta, à beira de engolir a classe média, que se expandia naquele momento. Os ministros e aliados, como Afonso Arinos e Santiago Dantas, eram notáveis liberais. Um ministro do Trabalho foi Franco Montoro, democrata cristão por filosofia. Até a reforma agrária proposta por Goulart era uma tentativa de criar uma classe média de pequenos proprietários no campo, e ampliar dessa forma o mercado interno para a economia em geral.
     As reformas eram  essencialmente capitalistas em sua maioria, ainda que houvessem pequenas concessões como 13º salário e manutenção da estabilidade no emprego para os trabalhadores. Tudo assustou não só a classe média tradicional, pouco afeita a mudanças inclusivas, mas também os ruralistas e industriais da época, que se comportavam reagindo mais à moda do esquema marxista da luta de classes – no que pareciam acreditar no clima ideológico de então.
     Hoje, a moda Bolsonaro tentou recuperar um fator semelhante ao daquela época, inventando cenários externo e interno fakes -- para usar a palavra tão atual. Foi uma estratégia política, em primeiro lugar, que começou atabalhoadamente, mas deu certo. Funcionou porque surgiu do mundo do baixo clero do Congresso um deputado medíocre, mas saudoso da ditadura militar onde localiza seus ídolos e que representava apenas um lobby das Forças Armadas e defendia causas adormecidas, como o uso da tortura e um furioso anticomunismo.
     Aos poucos, seu embate isolado com a esquerda estendeu seu interesse contra o “politicamente correto”, muito parecido com o que se difundira na camaradagem de caserna em todos os escalões militares. Foi a pólvora. Capturou o homem ressentido em toda a sociedade. De saída, 70% do eleitorado de Bolsonaro, segundo as pesquisas, era masculino. Por duas razões principais e uma derivada: o machismo, o anti-feminismo mais ou menos disfarçado entre os homens brasileiros; e o medo da insegurança nas ruas, na sociedade e no emprego. O tom anti-político, o discurso contra a corrupção do candidato, associando tudo ao PT, foi a outra razão decisiva.
     Houve fatores importantes, que não devem ser negligenciados para explicar a moda Bolsonaro. Por exemplo, a facada. Gerou uma onda de solidariedade, suspeita, polêmica e ódio anti-petista, como se o lulopetismo fosse o autor do atentado. Isso gerou uma dimensão imaginária perigosa. Lula ganhou uma espécie de espectro nefasto, apesar de preso e quase impossibilitado de coordenar ações políticas eficientes—tanto que seu candidato, para ganhar alguns votos do centro, teve de se afastar simbolicamente de Lula.
      O desafio para o novo governo empossado com um aparato militar espetacular e iniciado com muitos tropeços, com o silêncio obsequioso dos militares fora da administração civil, é conseguir governabilidade nã9o junto ao Congresso ou ao Judiciário, que parecem bastante submissos até agora á Nova Ordem. O maior obstáculo são seus próprios quadros e a falta de um programa nacional claro que não se restrinja ao discurso neoliberal para o mercado e à restauração de costumes antiquados, via religião evangélica e ataques “à ideologia de gênero”. Detalhe: até agora Bolsonaro não falou a palavra emprego.
       A começar pelo próprio presidente, o governo parece muito despreparado tecnicamente para a Política (justamente onde Bolsonaro mais insistiu, na “qualidade técnica”) e é incoerente, num vai-e-vem inquietante. Seu ministro mais popular, Sérgio Moro, continua a fingir que não é um político. Parece pretender uma política de despachos administrativos, como se ainda fosse um juiz, na base do “cumpra-se a sentença”.  Bolsonaro tropeça na língua quando se mete em economia e lá vem o Guedes para corrigir. Enrola-se em declarações políticas prematuras e lá vem o Ônix para tentar corrigir, falar demais e se enrolar também.
       Janaína Paschoal, que se elegeu com forte votação na onda da moda, já avisou que não quer um governo ideológico, um ”PT com sinal trocado”, pois é o que já está vendo. Está errada quanto ao PT, que foi sempre um partido de centro esquerda, nunca de extrema, como se montou no cenário da imaginação popular. Na política externa, por exemplo, o PT assinalou simpatias à esquerda, mas foi extremamente pragmático, privilegiando as relações com os EUA e a Europa. Nada semelhante à Teologia de Trump e da família Bolsonaro, que usa a bandeira de Israel como se fosse a nossa. Já brincaram: que tal mudar nossa capital para Jerusalém?
     Se a moda não passar de seu período agudo e se a realidade não se impuser, vamos ficar sem exportar carne de cordeiro, frangos e outros produtos para os países muçulmanos. Por puro preconceito, chave para entender esse modismo.