sexta-feira, 22 de maio de 2020

O PODER E A MORTE



 Reinaldo Lobo
      O poder e a morte andam sempre próximos e, muitas vezes, unidos intimamente em sua virtual destrutividade. A violência acompanha o poder como sua sombra ao longo da História. Não há poder sem uma boa dose de sangue.
      Um psicanalista francês, Eugène Enriquez, escreveu um livro instigante que nos ajuda a pensar um pouco mais a tragédia humana e política que atinge o Brasil atual: “As Figuras do Poder” (editora “Via Lettera”, 2007).
     Ao estudar de modo inovador as vertentes mais obscuras desse objeto de desejo --o Poder, seu enigma e seu alcance--, Enriquez postula uma hipótese central: “revelar a pulsão de morte que nele opera diretamente ou sob a máscara da fascinação, da manipulação ou da sedução’”.
   Nosso autor segue a tradição freudiana mais clássica, inaugurada com o conceito de pulsão de morte, que seria uma tendência do ser humana não apenas para a vida, Eros e ligação, mas também para o retorno em última instância ao estado mineral, uma espécie de busca pela imobilidade, a repetição e a morte. Os conflitos psíquicos, sobretudo na doença mental, seriam a expressão da pulsão de morte contra a pulsão de vida – é por isso que Freud diz que , para não adoecer, o sujeito precisa começar a amar.
    Esse conceito foi forjado após a I Guerra Mundial e a pandemia da “gripe espanhola”, quando Freud ficou chocado com a brutalidade do conflito e morte de sua filha Sofie pela doença, passando a opor Eros, deus da ligação erótica, a Tânatos, deus da morte. Postulou que a natureza humana é marcada por essas inscrições, expressas , por exemplo, no amor e no ódio.
   Alguns autores interpretam o conceito como uma “pulsão anárquica”, destrutiva, de puro ataque à vida. Outros veem essa pulsão (impulso, tendência) mais pelo seu aspecto conservador, como uma compulsão à repetição, à imobilidade e ao retrocesso.
  Ambas as visões contemplam o foco da morte como alvo último e sua finalidade como desligamento, ao contrário de Eros, que ata. Freud chamava esses e outros dos seus conceitos como “nossa mitologia”, pois se inspiravam na mitologia grega, por ele transformada em categoria de análise.
   O poder, para Enriquez, é constituído pela pulsão de morte. O que não significa que não seja desejado, almejado e sonhado pelos seres humanos. Ter poder, submeter-se ao poder, delegar poder, tomar o poder isso faz parte das nossas preocupações e obsessões do nascimento à morte, diz ele.  E completa afirmando: “Qualquer grupo social pode ser considerado um feixe de relações de poder. São poucos os termos, como por exemplo “amor”, que têm repercussão comparável e são tão centrais para o ser humano.”
    Concordo com boa parte das afirmações do nosso autor sobre a importância de estudar o poder como expressão do confronto do ser humano consigo mesmo e com o outro, o que provoca uma ressonância sobre nosso futuro e do mundo.
   Discordo dele quando centra toda a fundamentação do poder no conceito clássico freudiano de pulsão de morte, e ignora algumas outras dimensões complexas. Também dá a impressão de que todo poder é a encarnação do Mal. Faz isso claramente quando examina o “Mito do Bom Poder”.
   Ora, nem todo poder é a expressão exclusiva da malignidade. Os gregos antigos inventaram, já no alvorecer da nossa civilização, um método interessante de repartição do poder chamado democracia. Dá uma certa liberdade de escolha para os seus participantes e contrabalança os efeitos deletérios do poder, mesmo que não de forma definitiva  nem absoluta. Nem todo poder é despótico e pode ser removido periodicamente pela participação do “demos”(povo).
      Contudo,existem, sem dúvida, formas de poder comprometidas diretamente com a morte. São justamente os que buscam o despotismo e a concentração em poucas ou em uma única mão.
     No Brasil atual, estamos assistindo a um espetáculo da polarização entre os que expressam abertamente o desejo de morte e a violência, de um lado, e os que lutam – literalmente neste momento—pela vida. O esquema de Enriquez vale para este acaso extremo de batalha entre Eros e Tânatos.
     A ideologia neofascista que empolga o pequeno grupo de militares e de civis em torno do presidente Bolsonaro tem, de saída, uma vertente negativa e destrutiva. Não é por acaso que alguns a chamam de “necropolítica”.  Repousa sobre um raciocínio baseado no utilitarismo: quantos mortos são toleráveis para salvar a contabilidade econômica?
    Para “liquidar a esquerda” o presidente e seus ideólogos não hesitam em falar numa matança, agora já saindo da retórica, e na eliminação de qualquer traço esquerdista na cultura brasileira. Todos recordam a história daquele general fascista que gritava durante a Guerra Civil Espanhola: “Viva a morte, abaixo a inteligência!”.
    Essa política negativa não hesita em incluir na lista de seus alvos as minorias dos “diferentes”, como índios, negros, o grupo LGBTQ, as mulheres e tudo o que lembre liberdade de escolha.
     Do outro lado, estão os partidos políticos atarantados pela existência da pandemia, cuja realidade reconhecem e respeitam, e que paralisou qualquer resistência nas ruas, exceto pelas redes sociais. E, desse mesmo lado, está a população assustada com o perigo de morte, paralisada em casa ou, então, seguindo para o risco do matadouro.
     Muitos ainda não compreenderam que só há dois partidos no Brasil neste momento: o partido da morte e o que luta pela vida.
     Os militantes pela vida , que cultuam as artes, a ciência e o amor , procuram entender , perplexos, como o poder autoritário funciona, estupidamente  envolvido com a pulsão de morte, disposto a seguir avante com a violência, incêndios de florestas ,contaminação de comunidades de todos os tipos, ignorância,  anti-intelectualismo, e desrespeito aos direitos sociais e humanos.  O desprezo pela vida dos outros contamina toda sua ação.
    Se Gandhi pregasse a não-violência e o amor sob o governo de Hitler, provavelmente não duraria vivo uma semana.  Não há diálogo racional com o partido da morte.
     


sexta-feira, 8 de maio de 2020

O FUTURO DE UMA ILUSÃO


 Reinaldo Lobo*

     O capitalismo é uma religião, sugeriu uma vez o genial sociólogo Walter Benjamin. Para existir, é preciso que as pessoas acreditem nele. Milhões de pessoas no mundo não pensam muito nisso, estão imersas no sistema capitalista ou acreditam piamente. Outro gênio, Max Weber, informou que o espírito do capitalismo é protestante, privilegia o esforço e o trabalho em busca de recompensas terrestres, além de prometer também o céu.
     As pessoas continuam a acreditar no capitalismo, ainda que permaneçam nele e algumas gostem de possuir capital? Tenho minhas dúvidas. A maioria no mundo não usufrui dos privilégios do capital—apenas cerca de um por cento. As massas só pegam certas migalhas do consumo. A miséria é muito grande em toda a parte, inclusive em zonas sensíveis do Primeiro Mundo.
    A assim chamada globalização, na verdade uma ampliação sem precedentes da comunicação, só fez aumentar o número de crentes, sedentos de participar das benesses dos grandes centros de riqueza. As multidões de refugiados não vão apenas atrás de abrigo, mas dos polos fornecedores das migalhas para a sobrevivência.  Pode-se pensar que essas pessoas fogem de onde o capitalismo falhou ou não se implantou, mas o fato é que as áreas do mundo onde houve essa falha pode ser apenas o enorme reflexo de um mau funcionamento central.
    Dois mitos centrais que sustentam hoje a religião capitalista são o do “crescimento infinito” e o do “consumo infinito”. Fazer a máquina do capital funcionar é obter um crescimento econômico sem cessar (PIB, produtividade, etc.) O sistema exige isso automaticamente e, em consequência, decorre a demanda de um consumo infinito, em perfeito equilíbrio com as contas de cada economia. No registro imaginário das ideologias das sociedades capitalistas esses dois mitos foram naturalizados. Não pode haver economia sem crescimento e sem consumo em fluxo constante.
     Marx, um crítico, também acreditou no capitalismo. Tanto que sua visão de passagem para uma outra sociedade sairia, sobetudo , das virtudes do capital e seria uma transformação natural (dialética) em direção ao comunismo, o reino da liberdade.
    Sua ideia de revolução não tinha nada a ver necessariamente com violência física, ainda que registrasse a luta de classes e seus efeitos políticos, mas seria o resultado do desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, que encontraria barreiras nas relações sociais envelhecidas, provocando a mudança. Não falava de decadência econômica do sistema, mas de seu auge.
    Marx era um racionalista e, para ele, tudo tinha que ter uma lógica estrita e compreensível. Incomodava-o o fato de existir racionalidade nas fábricas e na produção, mas anarquia nos mercados e nas sociedades. No comunismo, supunha, não haveria contradições como essa. O comunismo seria a reconciliação da razão consigo mesma.
     Ao contrário dos otimistas, sejam eles os crentes do capitalismo, sejam os adeptos fervorosos da “razão histórica”, desconfio que a religião capitalista começa a ser alvo de ceticismo até por parte os seus maiores adoradores.
   A brutal desigualdade mundial das riquezas e de sua distribuição; as crises sucessivas, as revelações de que o mito do crescimento infinito é só isso mesmo, um mito, pois a destruição dos recursos da Terra coloca um limite real; a repetição de pandemias cada vez piores em devastação, decorrentes da divisão do trabalho na globalização do capital e na circulação internacional ; as massas de desempregados—tudo isso cria um quadro nada promissor para os seguidores do Mercado, essa espécie de Deus dos adoradores do bezerro de ouro.
    Os que acreditam na racionalidade do capitalismo chamam a atenção para a sua plasticidade e capacidade de se adaptar, achando soluções para suas diversas crises. Não fosse assim –dizem- o capitalismo já teria sucumbido, digamos, em 1929, mas achou a saída do New Deal norte-americano, pondo em ação o Estado protetor. Essa flexibilidade do sistema existe, de fato, pois torna tudo mercadoria: camisetas com estampas de Che Guevara viraram moda de consumo e o Vietnã se tornou uma economia de mercado.
    Tudo, porém, tem um limite.  É possível indagar se o capitalismo não estaria atingindo o seu ponto entrópico. Seu limite seria a destruição de seus recursos de adaptabilidade, ou seja, seu limite poderia ser a sua própria destruição.
    Freud escreveu uma crítica da religião intitulada “O Futuro de uma Ilusão”, talvez o seu texto mais duro sobre a sociedade. Mostra que a religião é uma necessidade para socorrer o desamparo das pessoas diante da vida e da morte, mas também um erro do tipo obsessivo , consistindo numa defesa contra a realidade e um fruto da ignorância. Sua esperança era de que , no futuro, os humanos pudessem prescindir da crendice e da religiosidade com o desenvolvimento da ciência e da educação.
   A única analogia que proponho aqui com a obra de Freud é a hipótese de que a humanidade possa prescindir da crença no capitalismo como única forma de progresso, não pela evolução da ciência e da educação, mas pela evidência de que a natureza destrutiva do capitalismo ameaça a própria existência do homem na Terra.