O poder e a morte andam sempre próximos
e, muitas vezes, unidos intimamente em sua virtual destrutividade. A violência
acompanha o poder como sua sombra ao longo da História. Não há poder sem uma
boa dose de sangue.
Um psicanalista francês, Eugène Enriquez,
escreveu um livro instigante que nos ajuda a pensar um pouco mais a tragédia
humana e política que atinge o Brasil atual: “As Figuras do Poder” (editora “Via
Lettera”, 2007).
Ao
estudar de modo inovador as vertentes mais obscuras desse objeto de desejo --o
Poder, seu enigma e seu alcance--, Enriquez postula uma hipótese central: “revelar
a pulsão de morte que nele opera diretamente ou sob a máscara da fascinação, da
manipulação ou da sedução’”.
Nosso autor segue a tradição freudiana mais
clássica, inaugurada com o conceito de pulsão de morte, que seria uma tendência
do ser humana não apenas para a vida, Eros e ligação, mas também para o retorno
em última instância ao estado mineral, uma espécie de busca pela imobilidade, a
repetição e a morte. Os conflitos psíquicos, sobretudo na doença mental, seriam
a expressão da pulsão de morte contra a pulsão de vida – é por isso que Freud
diz que , para não adoecer, o sujeito precisa começar a amar.
Esse conceito foi forjado após a I Guerra Mundial
e a pandemia da “gripe espanhola”, quando Freud ficou chocado com a brutalidade
do conflito e morte de sua filha Sofie pela doença, passando a opor Eros, deus
da ligação erótica, a Tânatos, deus da morte. Postulou que a natureza humana é
marcada por essas inscrições, expressas , por exemplo, no amor e no ódio.
Alguns autores interpretam o conceito como
uma “pulsão anárquica”, destrutiva, de puro ataque à vida. Outros veem essa
pulsão (impulso, tendência) mais pelo seu aspecto conservador, como uma
compulsão à repetição, à imobilidade e ao retrocesso.
Ambas as visões contemplam o foco da morte
como alvo último e sua finalidade como desligamento, ao contrário de Eros, que
ata. Freud chamava esses e outros dos seus conceitos como “nossa mitologia”,
pois se inspiravam na mitologia grega, por ele transformada em categoria de
análise.
O poder, para Enriquez, é constituído pela
pulsão de morte. O que não significa que não seja desejado, almejado e sonhado
pelos seres humanos. Ter poder, submeter-se ao poder, delegar poder, tomar o
poder isso faz parte das nossas preocupações e obsessões do nascimento à morte,
diz ele. E completa afirmando: “Qualquer
grupo social pode ser considerado um feixe de relações de poder. São poucos os
termos, como por exemplo “amor”, que têm repercussão comparável e são tão
centrais para o ser humano.”
Concordo com boa parte das afirmações do nosso
autor sobre a importância de estudar o poder como expressão do confronto do ser
humano consigo mesmo e com o outro, o que provoca uma ressonância sobre nosso
futuro e do mundo.
Discordo dele quando centra toda a
fundamentação do poder no conceito clássico freudiano de pulsão de morte, e
ignora algumas outras dimensões complexas. Também dá a impressão de que todo
poder é a encarnação do Mal. Faz isso claramente quando examina o “Mito do Bom
Poder”.
Ora,
nem todo poder é a expressão exclusiva da malignidade. Os gregos antigos inventaram,
já no alvorecer da nossa civilização, um método interessante de repartição do
poder chamado democracia. Dá uma certa liberdade de escolha para os seus
participantes e contrabalança os efeitos deletérios do poder, mesmo que não de
forma definitiva nem absoluta. Nem todo
poder é despótico e pode ser removido periodicamente pela participação do
“demos”(povo).
Contudo,existem, sem dúvida, formas de
poder comprometidas diretamente com a morte. São justamente os que buscam o
despotismo e a concentração em poucas ou em uma única mão.
No
Brasil atual, estamos assistindo a um espetáculo da polarização entre os que
expressam abertamente o desejo de morte e a violência, de um lado, e os que
lutam – literalmente neste momento—pela vida. O esquema de Enriquez vale para
este acaso extremo de batalha entre Eros e Tânatos.
A ideologia neofascista que empolga o
pequeno grupo de militares e de civis em torno do presidente Bolsonaro tem, de
saída, uma vertente negativa e destrutiva. Não é por acaso que alguns a chamam
de “necropolítica”. Repousa sobre um
raciocínio baseado no utilitarismo: quantos mortos são toleráveis para salvar a
contabilidade econômica?
Para
“liquidar a esquerda” o presidente e seus ideólogos não hesitam em falar numa
matança, agora já saindo da retórica, e na eliminação de qualquer traço
esquerdista na cultura brasileira. Todos recordam a história daquele general
fascista que gritava durante a Guerra Civil Espanhola: “Viva a morte, abaixo a
inteligência!”.
Essa política negativa não hesita em
incluir na lista de seus alvos as minorias dos “diferentes”, como índios,
negros, o grupo LGBTQ, as mulheres e tudo o que lembre liberdade de escolha.
Do outro lado, estão os partidos políticos
atarantados pela existência da pandemia, cuja realidade reconhecem e respeitam,
e que paralisou qualquer resistência nas ruas, exceto pelas redes sociais. E,
desse mesmo lado, está a população assustada com o perigo de morte, paralisada
em casa ou, então, seguindo para o risco do matadouro.
Muitos ainda não compreenderam que só há
dois partidos no Brasil neste momento: o partido da morte e o que luta pela
vida.
Os
militantes pela vida , que cultuam as artes, a ciência e o amor , procuram entender
, perplexos, como o poder autoritário funciona, estupidamente envolvido com a pulsão de morte, disposto a
seguir avante com a violência, incêndios de florestas ,contaminação de
comunidades de todos os tipos, ignorância,
anti-intelectualismo, e desrespeito aos direitos sociais e humanos. O desprezo pela vida dos outros contamina
toda sua ação.
Se
Gandhi pregasse a não-violência e o amor sob o governo de Hitler, provavelmente
não duraria vivo uma semana. Não há
diálogo racional com o partido da morte.