sexta-feira, 8 de maio de 2020

O FUTURO DE UMA ILUSÃO


 Reinaldo Lobo*

     O capitalismo é uma religião, sugeriu uma vez o genial sociólogo Walter Benjamin. Para existir, é preciso que as pessoas acreditem nele. Milhões de pessoas no mundo não pensam muito nisso, estão imersas no sistema capitalista ou acreditam piamente. Outro gênio, Max Weber, informou que o espírito do capitalismo é protestante, privilegia o esforço e o trabalho em busca de recompensas terrestres, além de prometer também o céu.
     As pessoas continuam a acreditar no capitalismo, ainda que permaneçam nele e algumas gostem de possuir capital? Tenho minhas dúvidas. A maioria no mundo não usufrui dos privilégios do capital—apenas cerca de um por cento. As massas só pegam certas migalhas do consumo. A miséria é muito grande em toda a parte, inclusive em zonas sensíveis do Primeiro Mundo.
    A assim chamada globalização, na verdade uma ampliação sem precedentes da comunicação, só fez aumentar o número de crentes, sedentos de participar das benesses dos grandes centros de riqueza. As multidões de refugiados não vão apenas atrás de abrigo, mas dos polos fornecedores das migalhas para a sobrevivência.  Pode-se pensar que essas pessoas fogem de onde o capitalismo falhou ou não se implantou, mas o fato é que as áreas do mundo onde houve essa falha pode ser apenas o enorme reflexo de um mau funcionamento central.
    Dois mitos centrais que sustentam hoje a religião capitalista são o do “crescimento infinito” e o do “consumo infinito”. Fazer a máquina do capital funcionar é obter um crescimento econômico sem cessar (PIB, produtividade, etc.) O sistema exige isso automaticamente e, em consequência, decorre a demanda de um consumo infinito, em perfeito equilíbrio com as contas de cada economia. No registro imaginário das ideologias das sociedades capitalistas esses dois mitos foram naturalizados. Não pode haver economia sem crescimento e sem consumo em fluxo constante.
     Marx, um crítico, também acreditou no capitalismo. Tanto que sua visão de passagem para uma outra sociedade sairia, sobetudo , das virtudes do capital e seria uma transformação natural (dialética) em direção ao comunismo, o reino da liberdade.
    Sua ideia de revolução não tinha nada a ver necessariamente com violência física, ainda que registrasse a luta de classes e seus efeitos políticos, mas seria o resultado do desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, que encontraria barreiras nas relações sociais envelhecidas, provocando a mudança. Não falava de decadência econômica do sistema, mas de seu auge.
    Marx era um racionalista e, para ele, tudo tinha que ter uma lógica estrita e compreensível. Incomodava-o o fato de existir racionalidade nas fábricas e na produção, mas anarquia nos mercados e nas sociedades. No comunismo, supunha, não haveria contradições como essa. O comunismo seria a reconciliação da razão consigo mesma.
     Ao contrário dos otimistas, sejam eles os crentes do capitalismo, sejam os adeptos fervorosos da “razão histórica”, desconfio que a religião capitalista começa a ser alvo de ceticismo até por parte os seus maiores adoradores.
   A brutal desigualdade mundial das riquezas e de sua distribuição; as crises sucessivas, as revelações de que o mito do crescimento infinito é só isso mesmo, um mito, pois a destruição dos recursos da Terra coloca um limite real; a repetição de pandemias cada vez piores em devastação, decorrentes da divisão do trabalho na globalização do capital e na circulação internacional ; as massas de desempregados—tudo isso cria um quadro nada promissor para os seguidores do Mercado, essa espécie de Deus dos adoradores do bezerro de ouro.
    Os que acreditam na racionalidade do capitalismo chamam a atenção para a sua plasticidade e capacidade de se adaptar, achando soluções para suas diversas crises. Não fosse assim –dizem- o capitalismo já teria sucumbido, digamos, em 1929, mas achou a saída do New Deal norte-americano, pondo em ação o Estado protetor. Essa flexibilidade do sistema existe, de fato, pois torna tudo mercadoria: camisetas com estampas de Che Guevara viraram moda de consumo e o Vietnã se tornou uma economia de mercado.
    Tudo, porém, tem um limite.  É possível indagar se o capitalismo não estaria atingindo o seu ponto entrópico. Seu limite seria a destruição de seus recursos de adaptabilidade, ou seja, seu limite poderia ser a sua própria destruição.
    Freud escreveu uma crítica da religião intitulada “O Futuro de uma Ilusão”, talvez o seu texto mais duro sobre a sociedade. Mostra que a religião é uma necessidade para socorrer o desamparo das pessoas diante da vida e da morte, mas também um erro do tipo obsessivo , consistindo numa defesa contra a realidade e um fruto da ignorância. Sua esperança era de que , no futuro, os humanos pudessem prescindir da crendice e da religiosidade com o desenvolvimento da ciência e da educação.
   A única analogia que proponho aqui com a obra de Freud é a hipótese de que a humanidade possa prescindir da crença no capitalismo como única forma de progresso, não pela evolução da ciência e da educação, mas pela evidência de que a natureza destrutiva do capitalismo ameaça a própria existência do homem na Terra.

2 comentários:

  1. Tbm compartilho desse-desejo-utopia que a humanidade consiga prescindir do capitalismo. Só espero que seja antes dele que é autofágico já não tenha destruído a tudo e a todos. Porque às vezes eu sinto que a pergunta é qual é o futuro da desilusão?

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