sexta-feira, 21 de agosto de 2020

O PODER E AS REDES SOCIAIS

 

 

 

                                                           Reinaldo Lobo

 

        Existem quatro tipos de hackers:

1. o ladrão, que invade os dados dos outros para roubar dinheiro, usar seu cartão ou levar sua identidade;

 2. o mercenário, especialista em espalhar fake news a serviço de Carluxo Bolsonaro, de Steve Bannon e de Donald Trump;

 3. o curioso, geralmente adolescente, que quer xeretar a vida alheia e bagunçar;

4.  o hacker militante, que quer revelar segredos de Estado para o povo, desmantelar o crime político e a corrupção, como Assange e Snowden. Estes, também são chamados de “hackers do bem”.

         Pode ser que talvez já exista um quinto grupo em formação, o dos cidadãos que querem se proteger da invasão e do roubo de dados sobre suas vidas. Nesse caso, os ladrões seriam os governos e as empresas que nos fazem colocar na rede nossos números de CPF, telefone e endereço. Como fazem uso disso, certamente é a favor deles, não do nosso lado, o povo.

       O hacker é um personagem da transição para o século XXI. Não existiria se não houvessem as redes sociais e a internet, que criou o especialista em eletrônica, filhos do Vale do Silício. Alguns desses jovens inteligentes viraram Bill Gates, Mark Zuckerberg, Eduardo Saverin, Jeff Bezos. Outros, estão por aí infernizando a vida do próximo.

       As relações e funções dos novos especialistas, incluindo aí os hackers, com a democracia e o poder político são bastante ambíguas. Podem ter um efeito positivo ou negativo. Políticos indianos, brasileiros e norte-americanos acusam o Facebook, o Whattsapp, o Instagram e o Twitter de provocarem uma deformação dos últimos resultados eleitorais nas eleições gerais de seus países.

      É difícil aferir a extensão do dano ao processo democrático, não só pela complexidade introduzida no sistema de comunicação, mas também porque as redes sociais são parte da criação da “Era da Pós Verdade” em que vivemos, quando os fatos se tornaram em muitos lugares puras versões, ou como se diz, narrativas.

      Um uso positivo dos novos meios de comunicação atuais , a favor da democratização, é quando se limitam a divulgar ideias políticas fora da publicidade paga ou oficial e apresentam alguém até então desconhecido do público, como Barak Hussein Obama, em 2008.

     Para quem não se lembra, foi uma equipe de jovens afeitos à Internet, principalmente de fora do Partido Democrata, que espalhou a boa nova de um candidato negro à presidência dos EUA. Até então, Obama era um jovem político, senador por Chicago, com boa votação em seu Estado, mas sem prestígio dentro do seu próprio partido e nada conhecido em escala nacional.

    O resultado todos conhecem: houve uma “onda Obama” no eleitorado jovem e negro que se espraiou para todas as áreas. A vitória nas primárias, contra Hilary Clinton, foi apertada e teve momentos ásperos de acusações, onde Obama chegou a ser apresentado como um esquerdista oportunista que teria “hackeado” fontes da adversária.

    Na eleição geral, contra o republicano John McCain, um candidato que parece ter jogado limpo nas redes, a vitória do democrata foi nítida. Mas, mesmo então, surgiram, por fora dos partidos, vindo da extrema direita que mais tarde encarnaria em Trump, insinuações de que Obama era um muçulmano a serviço do terrorista Osama Bin Laden.  A vida seguiu e, no poder, Obama coordenou o ataque que desmentiu essas insinuações, matando o terrorista, o que não fora conseguido pelo republicano George W. Bush.

    O potencial político dos hackers ficou evidente com a enxurrada de fake news orientadas pelo ultradireitista Bannon e as sucessivas equipes eleitorais, em 2017, na campanha e eleição de Trump. Até mesmo hackers russos, a essa altura cooptados em grande quantidade por Putin, teriam participado da destruição da imagem de Hilary Clinton.

    Na China, o governo totalitário capitalista-comunista (caso único no planeta) controla as redes e a mídia em geral. Se houver hackers, como na Rússia capitalista do Czar Putin, trabalham para o poder. O temor desses governos revela o potencial subversivo das redes e dos hackers.

    Certa vez, quando se discutia na esquerda como se posicionar diante das novas realidades-- uma vez que a classe operária foi ao paraíso sob o capitalismo de consumo, integrada e domesticada pelos sindicatos--, todos os presentes ao debate se perguntavam qual seria o grupo, classe ou categoria que poderia se rebelar ao ponto de iniciar uma mudança revolucionária. Alguns poucos mais ousados disseram: “os hackers”!

   Se for verdade que não estamos mais na era do social, mas das diferenças e conflitos culturais, não haverá dúvida de que os hackers e as redes sociais podem ter um papel decisivo na formação da opinião pública, inclusive impulsionando as mudanças.

   Quem for democrata irá preferir que essas mudanças derrubem instituições autoritárias e instituam uma democracia, mas de, qualquer modo, tudo depende da orientação dos líderes e dos hackers envolvidos. Isso implicaria num movimento prévio arrebanhando multidões de adeptos, o que não seria nada fácil, pois os agentes do status quo cuidariam de opor barreira tecnológicas, legais e politicas à mobilização. Estaria criada a guerra do hackers.

   Qualquer que seja o desenlace da nossa utopia, o fato é que hoje, no presente, já estão criando regras e leis de controle das mídias de modo a impedir sua maior democratização. Um dos perigos da democracia para o poder, seja ele qual for, é que além de ser representativa, ela permite a criação de novos direitos—culturais, sociais, biossociais e ambientais.

   A característica mais revolucionária do regime democrático é permitir a transparência das informações e restringir a área de segredo imposta pelo poder. A outra é justamente a de gerar novos direitos. Para isso, é necessário um fluxo de conteúdos pelas redes sociais e não apenas deputados, vereadores, senadores sensíveis às causas populares.

  Ao contrário do que muitos acreditam a respeito dos meios de comunicação do século XXI, que seriam um Big Brother repressivo e sua maior parte, pode ser que exista um aumento da participação decisória do povo em escala até mundial. Um exemplo de assembleia pode ser o “zoom” da internet, que pode escapar eventualmente ao controle do Estado, se for manejado por hackers ou especialistas em comunicação comprometidos com as causas populares.

  A nossa esperança democrática pode estar nas redes sociais e também nas mãos nos hackers militantes.

     

 

 

 

 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

 

     O FIM DO SEGREDO

 

                                               Reinaldo Lobo

    Uma psicanalista francesa brilhante, já falecida, Piera Aulagnier, escreveu um artigo que ganhou notoriedade nos anos 70 e 80, intitulado “O Direito ao Segredo – condição para poder pensar”. Nessa época, havia muitos regimes totalitários no mundo e alguns interpretaram seu escrito como um protesto contra a invasão da vida privada e da intimidade pessoal pelas ditaduras de plantão. Era isso em parte, mas sua ideia ia muito além e alcançava o futuro, que é hoje.

    Seu pensamento sugeria que, para poder pensar, o sujeito humano precisa ter uma área só sua, uma zona secreta, uma reserva de solidão. Ou seja, necessita de uma certa invisibilidade e intimidade não devassada pelos outros ou pelos meios de comunicação.

     Aulagnier ilustrava seu artigo com uma vinheta clínica curiosa, sobre um homem que lhe pediu uma consulta, não para ele, mas para indicar à sua mulher, que estaria “louca”.  Quando a psicanalista perguntou por que a julgava louca, ele respondeu:” Ela fala tudo o que lhe vem à cabeça, tudo o que pensa.”

    A loucura, comentou Aulagnier, pode ser vista como a loucura de um discurso. Poderíamos acrescentar: é possível vê-la também como a falta de continência do discurso e de limites para a psique. Se dizemos tudo o que nos vem à cabeça, podemos acabar levando um tiro. É um risco, mas as pessoas não param de devassar suas vidas, de se exibir por todos os meios eletrônicos e de tornar “transparentes” suas existências. Talvez Umberto Eco tivesse razão quando disse que a “internet deu a palavra a todos os idiotas”. Não só a eles, mas também a eles.

    A sociedade contemporânea sofre de algo paradoxal, contido em apenas em germe no artigo de Aulagnier: tudo tem tanta visibilidade que se torna invisível, impossível de interpretar ou de rastrear o significado mais profundo. A excessiva visibilidade nos tornaria cegos.

    Um autor espanhol bastante interessante, Daniel Innerarity, escreveu um ensaio premiado intitulado “La Sociedad Invisible” (publicado em 2004), em que mostra que a sociedade contemporânea se tornou invisível por excesso de visibilidade. Sua transparência a tornou opaca, sobretudo à interpretação de seu sentido profundo. Diz ele:

“Nossa cultura não dá a impressão de caracterizar-se pela intransparência, mas pela exaltação da imagem visual. Nenhuma geração esteve tão obcecada pelo visual como a nossa. Nos rendemos ante o visível e quase não podemos nos livrar do poder das imagens, tanto das fascinantes quanto das terríveis”.

    A televisão ajudou a sociedade a se constituir em torno da imagem, acostumada a crer só no que vê e a crer em tudo o que vê. Depois da TV, vieram os PCs, a internet, os celulares, as câmeras de segurança, os drones, as redes sociais – todos esses meios “atestam” o que é real e o que não é.

    Um outro autor, o famoso Régis Debray, sustentou já em 1994, em seu “Vida e Morte da Imagem”, que a era do visual parece supor a “desaparição do invisível”.

   Atribuímos --dizem esses pensadores-- à visibilidade um valor central, ao qual se associam outros, como a autenticidade, a sinceridade, a imediatez ou a transparência. É preciso desconfiar dessa certeza em torno da visibilidade. A hipótese de Innerarity é que essa visibilidade ou transparência da “sociedade da imagem” tornou-se, já faz tempo, fictícia ou problemática.

    Não é que o segredo desapareceu completamente na sociedade atual, mas ele está em outra parte, escondido pela excessiva visibilidade dos meios de comunicação e de exposição. Quando se pensa que tudo está exposto e visível, perde-se a noção de que, ao mesmo tempo, os poderes que determinam de verdade a nossa vida são cada vez mais invisíveis, mais difíceis de identificar.

   É possível ver claramente algumas partes, mas se perde o todo. Os sinais são mais difíceis de interpretar e, como diz Innerarity, por trás das aparências “se abre uma fossa indecifrável onde se ocultam os verdadeiros significados das coisas que nos passam”.

  Numa sociedade de massas tão complexa como a atual no Brasil -- e em muitas partes do mundo-- as evidências são escassas sobre quem comanda de verdade, quem decide os detalhes e o destino das decisões em geral.

    É preciso suspeitar sempre das falsas evidências oferecidas pela sociedade que alguém já chamou de “transparente” (Gianni Vattimo). Tudo o que se pode saber sobre esse tecido viscoso recoberto de camadas de conotações ideológicas deve ser buscado, dizem nossos autores, sob o estatuto da suspeição ou de suposições. Sob essas camadas de imediatez equívoca pode estar a trama de uma realidade construída e veiculada pelos meios de comunicação.

    O sociólogo alemão Theodor Adorno dizia que “quanto mais completo seja o mundo da aparência, tanto mais impenetrável a aparência como ideologia”.

    Um exemplo claro que se oferece é a televisão: dá a impressão de “proximidade” e até de “intimidade”, as coisas aparecem como verossímeis e reveladoras, mas tem “uma opacidade que funciona como imediatez social”. Um exemplo é a Rede Globo no nosso País, que manipula até mesmo resultados eleitorais sem cometer nenhuma fraude ostensiva. Apenas mostra a “sua realidade”, que passa a ser a de “todos”

     Talvez estejamos vivendo hoje numa sociedade “louca”, no mesmo estilo da loucura da esposa daquele homem que procurou Piera Aulagnier, expondo tudo sem filtro, mas certamente ocultando, como toda loucura, o sentido subterrâneo de seus atos.

    A novidade das novas formas do segredo pode estar na sua hipervisibilidade. Existe uma trama estrutural: não há mais segredo, porque ele está ainda mais oculto.