sexta-feira, 7 de agosto de 2020

 

     O FIM DO SEGREDO

 

                                               Reinaldo Lobo

    Uma psicanalista francesa brilhante, já falecida, Piera Aulagnier, escreveu um artigo que ganhou notoriedade nos anos 70 e 80, intitulado “O Direito ao Segredo – condição para poder pensar”. Nessa época, havia muitos regimes totalitários no mundo e alguns interpretaram seu escrito como um protesto contra a invasão da vida privada e da intimidade pessoal pelas ditaduras de plantão. Era isso em parte, mas sua ideia ia muito além e alcançava o futuro, que é hoje.

    Seu pensamento sugeria que, para poder pensar, o sujeito humano precisa ter uma área só sua, uma zona secreta, uma reserva de solidão. Ou seja, necessita de uma certa invisibilidade e intimidade não devassada pelos outros ou pelos meios de comunicação.

     Aulagnier ilustrava seu artigo com uma vinheta clínica curiosa, sobre um homem que lhe pediu uma consulta, não para ele, mas para indicar à sua mulher, que estaria “louca”.  Quando a psicanalista perguntou por que a julgava louca, ele respondeu:” Ela fala tudo o que lhe vem à cabeça, tudo o que pensa.”

    A loucura, comentou Aulagnier, pode ser vista como a loucura de um discurso. Poderíamos acrescentar: é possível vê-la também como a falta de continência do discurso e de limites para a psique. Se dizemos tudo o que nos vem à cabeça, podemos acabar levando um tiro. É um risco, mas as pessoas não param de devassar suas vidas, de se exibir por todos os meios eletrônicos e de tornar “transparentes” suas existências. Talvez Umberto Eco tivesse razão quando disse que a “internet deu a palavra a todos os idiotas”. Não só a eles, mas também a eles.

    A sociedade contemporânea sofre de algo paradoxal, contido em apenas em germe no artigo de Aulagnier: tudo tem tanta visibilidade que se torna invisível, impossível de interpretar ou de rastrear o significado mais profundo. A excessiva visibilidade nos tornaria cegos.

    Um autor espanhol bastante interessante, Daniel Innerarity, escreveu um ensaio premiado intitulado “La Sociedad Invisible” (publicado em 2004), em que mostra que a sociedade contemporânea se tornou invisível por excesso de visibilidade. Sua transparência a tornou opaca, sobretudo à interpretação de seu sentido profundo. Diz ele:

“Nossa cultura não dá a impressão de caracterizar-se pela intransparência, mas pela exaltação da imagem visual. Nenhuma geração esteve tão obcecada pelo visual como a nossa. Nos rendemos ante o visível e quase não podemos nos livrar do poder das imagens, tanto das fascinantes quanto das terríveis”.

    A televisão ajudou a sociedade a se constituir em torno da imagem, acostumada a crer só no que vê e a crer em tudo o que vê. Depois da TV, vieram os PCs, a internet, os celulares, as câmeras de segurança, os drones, as redes sociais – todos esses meios “atestam” o que é real e o que não é.

    Um outro autor, o famoso Régis Debray, sustentou já em 1994, em seu “Vida e Morte da Imagem”, que a era do visual parece supor a “desaparição do invisível”.

   Atribuímos --dizem esses pensadores-- à visibilidade um valor central, ao qual se associam outros, como a autenticidade, a sinceridade, a imediatez ou a transparência. É preciso desconfiar dessa certeza em torno da visibilidade. A hipótese de Innerarity é que essa visibilidade ou transparência da “sociedade da imagem” tornou-se, já faz tempo, fictícia ou problemática.

    Não é que o segredo desapareceu completamente na sociedade atual, mas ele está em outra parte, escondido pela excessiva visibilidade dos meios de comunicação e de exposição. Quando se pensa que tudo está exposto e visível, perde-se a noção de que, ao mesmo tempo, os poderes que determinam de verdade a nossa vida são cada vez mais invisíveis, mais difíceis de identificar.

   É possível ver claramente algumas partes, mas se perde o todo. Os sinais são mais difíceis de interpretar e, como diz Innerarity, por trás das aparências “se abre uma fossa indecifrável onde se ocultam os verdadeiros significados das coisas que nos passam”.

  Numa sociedade de massas tão complexa como a atual no Brasil -- e em muitas partes do mundo-- as evidências são escassas sobre quem comanda de verdade, quem decide os detalhes e o destino das decisões em geral.

    É preciso suspeitar sempre das falsas evidências oferecidas pela sociedade que alguém já chamou de “transparente” (Gianni Vattimo). Tudo o que se pode saber sobre esse tecido viscoso recoberto de camadas de conotações ideológicas deve ser buscado, dizem nossos autores, sob o estatuto da suspeição ou de suposições. Sob essas camadas de imediatez equívoca pode estar a trama de uma realidade construída e veiculada pelos meios de comunicação.

    O sociólogo alemão Theodor Adorno dizia que “quanto mais completo seja o mundo da aparência, tanto mais impenetrável a aparência como ideologia”.

    Um exemplo claro que se oferece é a televisão: dá a impressão de “proximidade” e até de “intimidade”, as coisas aparecem como verossímeis e reveladoras, mas tem “uma opacidade que funciona como imediatez social”. Um exemplo é a Rede Globo no nosso País, que manipula até mesmo resultados eleitorais sem cometer nenhuma fraude ostensiva. Apenas mostra a “sua realidade”, que passa a ser a de “todos”

     Talvez estejamos vivendo hoje numa sociedade “louca”, no mesmo estilo da loucura da esposa daquele homem que procurou Piera Aulagnier, expondo tudo sem filtro, mas certamente ocultando, como toda loucura, o sentido subterrâneo de seus atos.

    A novidade das novas formas do segredo pode estar na sua hipervisibilidade. Existe uma trama estrutural: não há mais segredo, porque ele está ainda mais oculto.

   

    

   

   

 

 

 

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