Reinaldo Lobo*
Os editorialistas, articulistas e ideólogos
da oposição empresarial e política ao governo sustentam que o decreto n° 8243
da presidente Dilma seria a criação de verdadeiros "sovietes" no
Brasil. Tomara que fosse assim!
Só a ignorância histórica , comum entre os
escribas das classes dirigentes , ou a ma fé também habitual, poderiam
confundir as coisas.
Os sovietes foram a mais democrática criação
na época da derrotada Revolução Russa de 1905 contra a monarquia czarista. Eram conselhos de representação direta nascidos espontaneamente de
baixo para cima no seio da sociedade civil russa. Reivindicavam trabalho, pão,
liberdade e, depois, paz, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914.
"Soviete" quer dizer conselho (do
russo: "Cobét"). Funcionava como um colegiado, sem um comando único.
Sua inspiração era muito mais libertária do que comunista. Existiam nas
fábricas, nos serviços em geral, em algumas comunidades rurais e nas Forças
Armadas. Ficaram famosos os "conselhos de fábricas" paralelos aos
sindicatos oficialmente aceitos e os "sovietes de camponeses". Os
sovietes de soldados tiveram participação direta na guerra civil revolucionária
e na sustentação do futuro governo.
Esses conselhos foram ampliados em número e
atuação em fevereiro de 1917, com uma inesperada nova onda revolucionária que
acabou por derrubar o Czarismo. Mantidos no início da Revolução de outubro de
1917, em seguida foram empalmados e esvaziados pelos bolcheviques, sob o
comando de Lênin e Trotsky, e, mais tarde por Stálin, após 1924. Os sovietes,
apesar de tolerados oficialmente pelos bolcheviques, eram, na verdade, um
obstáculo aos propósitos burocratizantes do stalinismo, virtuais e embrionários
durante o governo de Lênin (1917-1924).
Os sovietes surgiram paralelamente à Duma
-- o parlamento russo-- e tiveram função deliberativa e também participativa.
Muitas de suas decisões viravam leis e definiram o caráter democrático inicial
da Revolução.
Com a tomada do poder pelos bolcheviques em
outubro, engolfando vários grupos e
movimentos sociais, o Partido ganhou corpo e, aos poucos, foi fazendo
compromissos de poder, acabando por sufocar gradualmente os sovietes, impondo
uma ditadura. O Partido Bolchevique mudou então de nome, tornando-se Partido
Comunista.
Foi o começo de um Termidor no seio da
revolução russa, uma restauração de poderes imperiais e autocráticos e das
instituições como a Duma, o Judiciário e a divisão dos ministérios ao estilo
tradicional, além do férreo Executivo, agora exercido pelo Secretário Geral do
Partido. Essas instituições tornaram-se a fachada de uma caricatura de
República (chamada de "Soviética"), mas exercida por um outro poder
paralelo (e real), que era a nova classe dominante. O Partido era um
instrumento poderoso desses novos autocratas, mas foi, nesse momento, menos do
que um poder em si mesmo, pois os seus militantes também foram submetidos a uma
disciplina e a uma hierarquia rígidas.
No stalinismo, a expressão "união
soviética" tornou-se meramente simbólica. Os sovietes foram esmagados, a democracia de
baixo para cima acabou castrada e a hegemonia era exercida por uma férrea
burocracia que se constituiu na classe dominante. A supressão dos sovietes é
que levou ao famoso "socialismo real" de Leonid Brezhnev e outros,
comandado pelos "comissários do povo", os gerentes de empresas (que
hoje formam, em parte, a nova burguesia russa sob o capitalismo), o
estamento militar e os líderes políticos.
Não foi, portanto, o Partido o dono exclusivo do poder, mas os burocratas que
se valiam dele para ter salários altos, o comando das fábricas e do campo
"coletivizado", privilégios e luxos quase ao nível da Corte czarista.
Um
pouco mais de estudo da História ajudaria
a entender a diferença entre os sovietes e o decreto para regular a
participação do povo e dos chamados movimentos sociais.
Para começar, uma diferença fundamental : o
decreto abre a "possibilidade de criação de conselhos"
representativos da sociedade e lhes oferece um espaço público. Não cria nenhum;
abre caminho para que as comunidade os criem. Em segundo lugar, o diferencial
mais importante: esses conselhos, se criados, seriam um canal consultivo, mas
não deliberativo ( com exceção, parece, do Conselho da Criança e do
Adolescente).
O decreto da presidente não tem nada a ver
com sovietes, até porque não estamos em revolução. É uma tentativa, a segunda
em um ano, de responder positivamente às reclamações da sociedade civil nas
manifestações de junho de 2013. O que mais se pedia nas ruas, entre
reivindicações de salários, tarifas e melhoria das cidades, era uma Reforma
Política, que , uma vez realizada, seria a mãe de todas as reformas.
A palavra de ordem da sociedade era um
pedido para modificar a representação política, com maior participação popular
nas decisões. O sentido disso era que se contivesse de algum modo a voracidade
de políticos e de funcionários do Estado convertidos em lobistas de interesses,
às vezes, escusos. Em outras, em intermediários de interesses particulares e de
minorias.
Bem que a presidente tentou fazer um
plebiscito e até uma constituinte, aliando-se democraticamente ao clamor das
ruas, para tentar elaborar, enfim, a tão falada reforma política. Sua postura
foi elogiada até pela ex-secretária de Estado dos EUA, Hilary Clinton, que a
apresentou como um modelo mundial de democrata. Mas ela foi rapidamente barrada
pelo Congresso brasileiro, inclusive pelo
PMDB, da base governista, inteiramente comprometido com interesses
empresariais e eleitorais.
Agora, pode-se dizer que é a segunda
tentativa presidencial de falar direto com o povo, mas de uma maneira mais
sutil. O seu decreto possibilita legalmente a criação de conselhos nascidos no
interior da sociedade que ofereçam a sugestões populares. Fala também em
"movimentos sociais", o que aterroriza os ricos empresários,
banqueiros e beneficiários de grandes fundos de pensão.
O que os ideólogos dessa turma não
compreendem é que os tais movimentos sociais paralelos teriam, pelo decreto, um
canal legal para apresentar sugestões e
reivindicações, diminuindo a dose de conflitos. Esse processo faria com que os
conflitos fossem dirimidos em uma instância simbolicamente organizada. Além
disso, haveria a abertura para algo como existe nos EUA nas pequenas e até em
grandes cidades, os conselhos de cidadãos que , naquele caso, sugerem e , em
algumas, até deliberam sobre a construção de uma ponte, de uma estrada ou sobre
a utilização do dinheiro publico. Os norte-americanos, em que pesem todos os
seus problemas, não têm medo da democracia direta, pelo menos em algum nível.
Um representante inteligente das classes
dominantes brasileiras, Roberto Campos, definiu o seu ponto- de- vista na fase terminal da Ditadura, dizendo que a
democracia, quanto maior e ampla, seria "uma forma de disciplinar o protesto".
(Artigo publicado em "O Estado de
São Paulo", 1976).Ele e Golbery do Couto e Silva, o maquiavel de Geisel e
de outros generais, sem outras alternativas de poder bruto, foram mais espertos
do que boa parte do empresariado vindo do Baronato do Café, acostumados à
República democrática sem povo. Acolheram a chegada da democracia.
Nossos "liberais" com receio de
mexer nos moldes republicanos tradicionais, além de não muito espertos e nem
modernos, podem ser responsabilizados em grande parte pelo sistema
representativo corrupto e politicamente decadente do País. O que temem não é o
poder político de um Partido (que não seja o deles). Eles têm medo é do povo.
*Reinaldo
Lobo é psicanalista e articulista. Tem uma página pública:
facebook.com/reinaldolobopsi E também tem um blog:
imaginarioradical.blogspot.com
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