quarta-feira, 18 de junho de 2014

A BURRICE DOS PODEROSOS


                                
                                                                                    Reinaldo Lobo*

   Os editorialistas, articulistas e ideólogos da oposição empresarial e política ao governo sustentam que o decreto n° 8243 da presidente Dilma seria a criação de verdadeiros "sovietes" no Brasil. Tomara que fosse assim!

   Só a ignorância histórica , comum entre os escribas das classes dirigentes , ou a ma fé também habitual, poderiam confundir as coisas.

   Os sovietes foram a mais democrática criação na época da derrotada Revolução Russa de 1905 contra a monarquia czarista. Eram conselhos de representação direta nascidos espontaneamente de baixo para cima no seio da sociedade civil russa. Reivindicavam trabalho, pão, liberdade e, depois, paz, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914.

 "Soviete" quer dizer conselho (do russo: "Cobét"). Funcionava como um colegiado, sem um comando único. Sua inspiração era muito mais libertária do que comunista. Existiam nas fábricas, nos serviços em geral, em algumas comunidades rurais e nas Forças Armadas. Ficaram famosos os "conselhos de fábricas" paralelos aos sindicatos oficialmente aceitos e os "sovietes de camponeses". Os sovietes de soldados tiveram participação direta na guerra civil revolucionária e na sustentação do futuro governo.

   Esses conselhos foram ampliados em número e atuação em fevereiro de 1917, com uma inesperada nova onda revolucionária que acabou por derrubar o Czarismo. Mantidos no início da Revolução de outubro de 1917, em seguida foram empalmados e esvaziados pelos bolcheviques, sob o comando de Lênin e Trotsky, e, mais tarde por Stálin, após 1924. Os sovietes, apesar de tolerados oficialmente pelos bolcheviques, eram, na verdade, um obstáculo aos propósitos burocratizantes do stalinismo, virtuais e embrionários durante o governo de Lênin (1917-1924).

     Os sovietes surgiram paralelamente à Duma -- o parlamento russo-- e tiveram função deliberativa e também participativa. Muitas de suas decisões viravam leis e definiram o caráter democrático inicial da Revolução.

 Com a tomada do poder pelos bolcheviques em outubro, engolfando vários  grupos e movimentos sociais, o Partido ganhou corpo e, aos poucos, foi fazendo compromissos de poder, acabando por sufocar gradualmente os sovietes, impondo uma ditadura. O Partido Bolchevique mudou então de nome, tornando-se Partido Comunista.

    Foi o começo de um Termidor no seio da revolução russa, uma restauração de poderes imperiais e autocráticos e das instituições como a Duma, o Judiciário e a divisão dos ministérios ao estilo tradicional, além do férreo Executivo, agora exercido pelo Secretário Geral do Partido. Essas instituições tornaram-se a fachada de uma caricatura de República (chamada de "Soviética"), mas exercida por um outro poder paralelo (e real), que era a nova classe dominante. O Partido era um instrumento poderoso desses novos autocratas, mas foi, nesse momento, menos do que um poder em si mesmo, pois os seus militantes também foram submetidos a uma disciplina e a uma hierarquia rígidas.

   No stalinismo, a expressão "união soviética" tornou-se meramente simbólica.  Os sovietes foram esmagados, a democracia de baixo para cima acabou castrada e a hegemonia era exercida por uma férrea burocracia que se constituiu na classe dominante. A supressão dos sovietes é que levou ao famoso "socialismo real" de Leonid Brezhnev e outros, comandado pelos "comissários do povo", os gerentes de empresas (que hoje formam, em parte, a nova burguesia russa sob o capitalismo), o estamento  militar e os líderes políticos. Não foi, portanto, o Partido o dono exclusivo do poder, mas os burocratas que se valiam dele para ter salários altos, o comando das fábricas e do campo "coletivizado", privilégios e luxos quase ao nível da Corte czarista.

   Um pouco mais de estudo da História ajudaria  a entender a diferença entre os sovietes e o decreto para regular a participação do povo e dos chamados movimentos sociais.

   Para começar, uma diferença fundamental : o decreto abre a "possibilidade de criação de conselhos" representativos da sociedade e lhes oferece um espaço público. Não cria nenhum; abre caminho para que as comunidade os criem. Em segundo lugar, o diferencial mais importante: esses conselhos, se criados, seriam um canal consultivo, mas não deliberativo ( com exceção, parece, do Conselho da Criança e do Adolescente).

   O decreto da presidente não tem nada a ver com sovietes, até porque não estamos em revolução. É uma tentativa, a segunda em um ano, de responder positivamente às reclamações da sociedade civil nas manifestações de junho de 2013. O que mais se pedia nas ruas, entre reivindicações de salários, tarifas e melhoria das cidades, era uma Reforma Política, que , uma vez realizada, seria a mãe de todas as reformas.

   A palavra de ordem da sociedade era um pedido para modificar a representação política, com maior participação popular nas decisões. O sentido disso era que se contivesse de algum modo a voracidade de políticos e de funcionários do Estado convertidos em lobistas de interesses, às vezes, escusos. Em outras, em intermediários de interesses particulares e de minorias.

    Bem que a presidente tentou fazer um plebiscito e até uma constituinte, aliando-se democraticamente ao clamor das ruas, para tentar elaborar, enfim, a tão falada reforma política. Sua postura foi elogiada até pela ex-secretária de Estado dos EUA, Hilary Clinton, que a apresentou como um modelo mundial de democrata. Mas ela foi rapidamente barrada pelo Congresso brasileiro, inclusive pelo  PMDB, da base governista, inteiramente comprometido com interesses empresariais e eleitorais.

    Agora, pode-se dizer que é a segunda tentativa presidencial de falar direto com o povo, mas de uma maneira mais sutil. O seu decreto possibilita legalmente a criação de conselhos nascidos no interior da sociedade que ofereçam a sugestões populares. Fala também em "movimentos sociais", o que aterroriza os ricos empresários, banqueiros e beneficiários de grandes fundos de pensão.

    O que os ideólogos dessa turma não compreendem é que os tais movimentos sociais paralelos teriam, pelo decreto, um canal legal  para apresentar sugestões e reivindicações, diminuindo a dose de conflitos. Esse processo faria com que os conflitos fossem dirimidos em uma instância simbolicamente organizada. Além disso, haveria a abertura para algo como existe nos EUA nas pequenas e até em grandes cidades, os conselhos de cidadãos que , naquele caso, sugerem e , em algumas, até deliberam sobre a construção de uma ponte, de uma estrada ou sobre a utilização do dinheiro publico. Os norte-americanos, em que pesem todos os seus problemas, não têm medo da democracia direta, pelo menos em algum nível.

    Um representante inteligente das classes dominantes brasileiras, Roberto Campos, definiu o seu ponto- de- vista  na fase terminal da Ditadura, dizendo que a democracia, quanto maior e ampla, seria "uma forma de disciplinar o protesto".  (Artigo publicado em "O Estado de São Paulo", 1976).Ele e Golbery do Couto e Silva, o maquiavel de Geisel e de outros generais, sem outras alternativas de poder bruto, foram mais espertos do que boa parte do empresariado vindo do Baronato do Café, acostumados à República democrática sem povo. Acolheram a chegada da democracia.

    Nossos "liberais" com receio de mexer nos moldes republicanos tradicionais, além de não muito espertos e nem modernos, podem ser responsabilizados em grande parte pelo sistema representativo corrupto e politicamente decadente do País. O que temem não é o poder político de um Partido (que não seja o deles). Eles têm medo é do povo.

 

*Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem uma página pública: facebook.com/reinaldolobopsi E também tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com

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