Reinaldo Lobo
O pau-de-arara é genuinamente brasileiro, como
a jabuticaba e o doce brigadeiro. A palavra designa três coisas diferentes: a
condução que levava nordestinos para o Sul, a forma como esses migrantes se
penduravam nos caminhões improvisados e um instrumento de tortura. O
instrumento de tortura foi exportado, infelizmente, para muitos países. Mas
também exportamos inventos mais interessantes, como o "chapéu",o
"lençol" e o "drible da vaca', consagrados pelo futebol de Pelé.
O francês-argelino Zidane foi um dos que aprenderam tudo isso e quem deu um
"vareio" na nossa defesa em 1998.
O Brasil não é perfeito. Tem mazelas e
problemas graves há séculos. Falha, às vezes, no futebol e muitas na sociedade
e na cultura. Já Guimarães Rosa, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice
Lispector, Manoel de Barros são genuinamente brasileiros, como o genial
Garrincha. Quanto ao Paulo Coelho, decidiu que não é genuinamente brasileiro e
está torcendo contra. Bom para nós, bom para a cultura brasileira!
O fato é que estamos entrando divididos em um
dos maiores espetáculos da Terra, a Copa do Mundo.. Um verdadeiro
"acontecimento" midiático, como a morte da princesa Diana ou o ataque
da Al Qaeda às Torres Gêmeas, evento que "abriu" o século XXI --
diria o sociólogo francês Jean Baudrillard.
O mundo estará olhando para o Brasil, mas
vamos entrar em campo com uma cisão inédita entre os que apóiam a Copa e os que
são contra os gastos com a Copa. Parece que não terá tanto valor a metáfora do
genuinamente brasileiro Nelson Rodrigues,
"A Pátria de Chuteiras", que colocava todo o povo jogando com
a seleção. A esperança é que os relutantes também passem a engrossar a
"corrente prá frente", à medida em que a seleção avance na
classificação.
Os protestos contra a Copa originados nos
movimentos sociais como o MST e o dos Sem Teto, somados aos que reivindicam
tarifas e aumentos salariais, apresentam reivindicações conhecidas há muito
tempo. Mas dividem a própria esquerda, pois uma parte dela está com o governo
Dilma, que, paradoxalmente, esses movimentos apóiam..
Curiosamente, sempre foi uma ala do PT que
considerou o futebol uma espécie de "alienação", uma distração
destinada a desviar o olhar da população dos verdadeiros problemas sociais.
Agora, a maioria dos petistas defende a realização da Copa com bandeirinhas
verde-amarelas na mão. E apostam, em grande parte, nas chuteiras de Neymar e de
seus colegas o futuro eleitoral de Dilma.
Já a oposição está jogando duro, ao estilo
europeu, às vezes sem muita inventividade, fazendo o que pode para dar uma
conotação oposicionista aos protestos populares. Tudo virou culpa do PT e da
Dilma. Se o trânsito até o Itaquerão parar, o problema irá direto para a conta
do governo federal. Até a falta d'água em São Paulo, responsabilidade do governo
estadual do PSDB, é escondida e desviada para a lista de débitos do Palácio do
Planalto. A imprensa oposicionista -- a maioria dela-- não faz nenhuma
cerimônia em acentuar todas e quaisquer mazelas do País, relacionando-as com os
gastos da Copa.
Aliás, o governo Dilma deveria ter previsto
que isso aconteceria, mas não conseguiu
prevenir a ocorrência de alguns problemas nem acelerar obras de infra-estrutura
na velocidade que calaria a boca da oposição.
Um argumento
que apareceu, contudo, nas redes sociais petistas dizia que Lula seria
certamente acusado em 2007 pela imprensa oficial do PSDB por ter perdido a oportunidade de trazer a
Copa para cá e, em conseqüência, deixarmos de ganhar bilhões em investimentos. Como a Copa veio, as
acusações são ao contrário.
Quando a situação é dessa forma monopolizada
pelas grandes corporações da imprensa e TV, qualquer decisão governamental pode
ser revertida contra o próprio governo. O mais surpreendente nesse processo de
tentativa de liquidação do projeto petista é que a imprensa resolveu
ressuscitar o "complexo de vira-latas", que Nelson Rodrigues
diagnosticou. Esse complexo começou
a desaparecer a partir do governo
Juscelino Kubitschek, que coincidiu com nossa primeira Copa, em 1958. Agora,
voltou com tudo, pelo menos para uma parte da população.
O auto-desprezo, a descrição sistemática de
uma identidade brasileira como incompetente e corrupta, com certeza tende a
derrubar a auto-estima dos brasileiros. Não faltam pessoas que dizem:
"Nesta Copa não vou torcer". E outras não hesitam: "Desta vez,
vou torcer contra." Não foi por acaso que uma empresa brasileira
fabricante de roupas, a Ellus, lançou uma camiseta com os dizeres idiotas:
"Abaixo este Brasil atrasado". Há gente desejando um novo Maracanazo,
como em 1950.
Com esse processo de auto-difamação, a
identificação entre os êxitos da democracia e do desenvolvimento com as
vitórias no futebol, iniciada no período Juscelino, tende a desaparecer. Se isso acontecer, será uma pena.
Há toda uma geração de brasileiros que,
mesmo sob a Ditadura civil-militar de 64, continuaram a torcer pelo que é genuinamente brasileiro. Essa
geração cresceu na esperança de conquistar a democracia plena e um país melhor.
Mas boa parte dela também cresceu idealizando outras culturas e desprezando a
nossa. A sensibilidade das classes médias brasileiras tem sido formada por Hollywood--
como sempre foi-- e estabeleceu como padrões os valores da sociedade
norte-americana.
Muitos dizem que esse é um fenômeno antigo
herdado do Brasil Colônia, nascido sob a mentalidade dos colonizadores. Em
parte, é verdade. Porém, a integração induzida pela "globalização",
pela onda neoliberal dos anos 90 e pelas novas tecnologias trouxe para mais
perto valores que não nos pertencem e que são inoculados nas novas gerações.
Muito brasileiro gostaria de ser norte-americano. Essa geração acostumou-se a
se ver sob a ótica norte-americana.
Há uma crença difundida de que nossa
identidade é a de quem louva Macunaíma, o herói sem nenhum caráter.
Mentira. Nunca se combateu tanto a corrupção e o mau-caratismo como hoje em
nosso País. Além disso, quem ler Mário de Andrade, autor genuinamente
brasileiro, vai entender que o seu herói era um ser novo, precisando construir
um caráter e uma civilização originais, mesmo absorvendo o que vinha de fora.
É disso que precisamos e, apesar da disputa
eleitoral de 2014, também é necessário ganhar essa Copa, entrando em campo
junto com nossos jogadores. Nem que seja só para apagar a maldição de 1950.
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