quarta-feira, 4 de junho de 2014

A PÁTRIA DE CHUTEIRAS


                                                                      Reinaldo Lobo
     O pau-de-arara é genuinamente brasileiro, como a jabuticaba e o doce brigadeiro. A palavra designa três coisas diferentes: a condução que levava nordestinos para o Sul, a forma como esses migrantes se penduravam nos caminhões improvisados e um instrumento de tortura. O instrumento de tortura foi exportado, infelizmente, para muitos países. Mas também exportamos inventos mais interessantes, como o "chapéu",o "lençol" e o "drible da vaca', consagrados pelo futebol de Pelé. O francês-argelino Zidane foi um dos que aprenderam tudo isso e quem deu um "vareio" na nossa defesa em 1998.

      O Brasil não é perfeito. Tem mazelas e problemas graves há séculos. Falha, às vezes, no futebol e muitas na sociedade e na cultura. Já Guimarães Rosa, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Manoel de Barros são genuinamente brasileiros, como o genial Garrincha. Quanto ao Paulo Coelho, decidiu que não é genuinamente brasileiro e está torcendo contra. Bom para nós, bom para a cultura brasileira!

    O fato é que estamos entrando divididos em um dos maiores espetáculos da Terra, a Copa do Mundo.. Um verdadeiro "acontecimento" midiático, como a morte da princesa Diana ou o ataque da Al Qaeda às Torres Gêmeas, evento que "abriu" o século XXI -- diria o sociólogo francês Jean Baudrillard.

    O mundo estará olhando para o Brasil, mas vamos entrar em campo com uma cisão inédita entre os que apóiam a Copa e os que são contra os gastos com a Copa. Parece que não terá tanto valor a metáfora do genuinamente brasileiro Nelson Rodrigues,  "A Pátria de Chuteiras", que colocava todo o povo jogando com a seleção. A esperança é que os relutantes também passem a engrossar a "corrente prá frente", à medida em que a seleção avance na classificação.

    Os protestos contra a Copa originados nos movimentos sociais como o MST e o dos Sem Teto, somados aos que reivindicam tarifas e aumentos salariais, apresentam reivindicações conhecidas há muito tempo. Mas dividem a própria esquerda, pois uma parte dela está com o governo Dilma, que, paradoxalmente, esses movimentos apóiam..   

   Curiosamente, sempre foi uma ala do PT que considerou o futebol uma espécie de "alienação", uma distração destinada a desviar o olhar da população dos verdadeiros problemas sociais. Agora, a maioria dos petistas defende a realização da Copa com bandeirinhas verde-amarelas na mão. E apostam, em grande parte, nas chuteiras de Neymar e de seus colegas o futuro eleitoral de Dilma.

     Já a oposição está jogando duro, ao estilo europeu, às vezes sem muita inventividade, fazendo o que pode para dar uma conotação oposicionista aos protestos populares. Tudo virou culpa do PT e da Dilma. Se o trânsito até o Itaquerão parar, o problema irá direto para a conta do governo federal. Até a falta d'água em São Paulo, responsabilidade do governo estadual do PSDB, é escondida e desviada para a lista de débitos do Palácio do Planalto. A imprensa oposicionista -- a maioria dela-- não faz nenhuma cerimônia em acentuar todas e quaisquer mazelas do País, relacionando-as com os gastos da Copa.

    Aliás, o governo Dilma deveria ter previsto que isso aconteceria, mas  não conseguiu prevenir a ocorrência de alguns problemas nem acelerar obras de infra-estrutura na velocidade que calaria a boca da oposição.

   Um argumento que apareceu, contudo, nas redes sociais petistas dizia que Lula seria certamente acusado em 2007 pela imprensa oficial do PSDB  por ter perdido a oportunidade de trazer a Copa para cá e, em conseqüência, deixarmos de ganhar  bilhões em investimentos. Como a Copa veio, as acusações são ao contrário.

   Quando a situação é dessa forma monopolizada pelas grandes corporações da imprensa e TV, qualquer decisão governamental pode ser revertida contra o próprio governo. O mais surpreendente nesse processo de tentativa de liquidação do projeto petista é que a imprensa resolveu ressuscitar o "complexo de vira-latas", que Nelson Rodrigues diagnosticou.  Esse complexo começou a  desaparecer a partir do governo Juscelino Kubitschek, que coincidiu com nossa primeira Copa, em 1958. Agora, voltou com tudo, pelo menos para uma parte da população.

   O auto-desprezo, a descrição sistemática de uma identidade brasileira como incompetente e corrupta, com certeza tende a derrubar a auto-estima dos brasileiros. Não faltam pessoas que dizem: "Nesta Copa não vou torcer". E outras não hesitam: "Desta vez, vou torcer contra." Não foi por acaso que uma empresa brasileira fabricante de roupas, a Ellus, lançou uma camiseta com os dizeres idiotas: "Abaixo este Brasil atrasado". Há gente desejando um novo Maracanazo, como em 1950.

   Com esse processo de auto-difamação, a identificação entre os êxitos da democracia e do desenvolvimento com as vitórias no futebol, iniciada no período Juscelino, tende a desaparecer.  Se isso acontecer, será uma pena.

   Há toda uma geração de brasileiros que, mesmo sob a Ditadura civil-militar de 64, continuaram a torcer  pelo que é genuinamente brasileiro. Essa geração cresceu na esperança de conquistar a democracia plena e um país melhor. Mas boa parte dela também cresceu idealizando outras culturas e desprezando a nossa. A sensibilidade das classes médias brasileiras tem sido formada por Hollywood-- como sempre foi-- e estabeleceu como padrões os valores da sociedade norte-americana.

     Muitos dizem que esse é um fenômeno antigo herdado do Brasil Colônia, nascido sob a mentalidade dos colonizadores. Em parte, é verdade. Porém, a integração induzida pela "globalização", pela onda neoliberal dos anos 90 e pelas novas tecnologias trouxe para mais perto valores que não nos pertencem e que são inoculados nas novas gerações. Muito brasileiro gostaria de ser norte-americano. Essa geração acostumou-se a se ver sob a ótica  norte-americana.

     Há uma crença difundida de que nossa identidade é a de quem  louva  Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Mentira. Nunca se combateu tanto a corrupção e o mau-caratismo como hoje em nosso País. Além disso, quem ler Mário de Andrade, autor genuinamente brasileiro, vai entender que o seu herói era um ser novo, precisando construir um caráter e uma civilização originais, mesmo absorvendo o que vinha de fora.

   É disso que precisamos e, apesar da disputa eleitoral de 2014, também é necessário ganhar essa Copa, entrando em campo junto com nossos jogadores. Nem que seja só para apagar a maldição de 1950.

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