Reinaldo Lobo*
Passada a Copa, começa outro
torneio. A briga entre os neoliberais "versus" o Estado. É o pretenso
FlaXFlu dos que se apresentam como defensores da "livre iniciativa"
contra o monstruoso Leviatã. Esse é o maior falso problema que domina o debate
eleitoral brasileiro desde pelo menos a era FHC, iniciada em 1994 e encerrada
em 2002.
Um exemplo ridículo desse debate absurdo
ocorreu agora, no fim dos jogos do Mundial, após a derrota acachapante do
Brasil por 7x1 para a Alemanha. A presidente Dilma juntou-se aos clamores dos
torcedores e dos cronistas esportivos, declarando que seria preciso reorganizar
a estrutura do futebol brasileiro. Pronto,
foi o suficiente para que um dos candidatos da oposição, o neoliberal Aécio
Neves, caísse matando. Acusou-a de "estatista", pois ela pretenderia
criar a "Futebrás". Atribui-lhe intenções para justificar sua própria
pregação ideológica. E também por razões eleitorais, claro. Não adiantou a presidente explicar que não quis
dizer isso e nem falava de estatização da CBF, mas de uma simples sugestão, que
poderia ter força em se tratando de uma opinião presidencial. Ficou a
"acusação" um tanto patética.
Esse tipo de obsessão anti-estatal já havia
começado nos tempos da ditadura civil-militar brasileira sob o nome de
"desburocratização". A expressão era uma disfarce de políticos do
regime e de empresários "liberais" para clamar contra o "excesso
de Estado" na área econômica, ainda que nem sempre preferissem sua
diminuição na esfera política e institucional. Estavam interessados, como o
general Pinochet no Chile, no liberalismo econômico, jamais no político. E em
não pagar impostos.
Na fase terminal do autoritarismo
brasileiro, com a crise inflacionária e a estagnação da economia, quase todo
empresário se tornou democrata desde criancinha. Passou-se a equacionar
liberdade política com diminuição do peso do Estado. Começou-se, então, a falar
do "custo Brasil", a protestar contra a carga tributária e a repetir
outros clichês dos porta-vozes "do mercado". Não era suficiente
argumentar que o empresariado brasileiro sucumbiria a crises sistêmicas e
conjunturais sem o Estado e as intervenções keynesianas na esfera da regulação
geral, da geração de capital e mesmo da produtividade.Esses argumentos eram
imediatamente descartados e taxados de "marxismo" e
"populismo".
Houve um presidente da FIESP , ainda no
final da Ditadura, que foi um dos principais repetidores ideológicos do combate
ao Estado. Suas empresas prosperaram muito nesse período vendendo aço e implementos
siderúrgicos para obras estatais do "Brasil Grande".Os recursos para
seus investimentos vieram dos empréstimos subsidiados pelo Tesouro Nacional.
Não só no seu caso, a expressão "mamar nas tetas do governo" é até fraca para descrever a verdadeira
promiscuidade entre empresas privadas e o Estado.
Os neoliberais negam que temos entre nós,
na verdade, um Estado privatizado e abusado pelos conglomerados industriais, agropecuários, fundos de pensão, grandes
bancos e corporações. Um estranho animal, parecido com o Ornitorrinco, como
costuma dizer o sociólogo Chico de Oliveira.
Ao final do regime ditatorial, os
defensores de um papel para o Estado no desenvolvimento calaram-se por um bom tempo,
receosos de serem confundidos com antidemocratas. Esse período vai até 1989,
quando houve a primeira eleição presidencial democrática e ainda prevalecia uma
certa unidade de propósitos no sentido de recompor a sociedade e o Estado,
restaurando as liberdades civis.
A luta eleitoral abriu a temporada de caça
ao Estado, com Collor representando, então, as forças do "novo
liberalismo". Seguiram-se brigas ideológicas agudas, quando cada uma das
correntes políticas, que alegavam combater unidas o autoritarismo, já estava no
seu próprio galho.
Nessa
época, foram criadas as condições
internas para, além do advento do curto período Collor, a chegada posterior de
FHC. O discurso "moderno" do ex-governador de Alagoas foi buscar suas
justificativas para chegar ao poder no
velho tema da "desburocratização" e dos privilégios do funcionalismo.
O ex-embaixador brasileiro nos EUA, Roberto Campos, também chamado de "Bob
Fields" por sua paixão americanófila, ficou empolgado com a conversa de
Collor sobre os "marajás" instalados na burocracia estatal. Escreveu:
"O jovem político encontrou o "inimigo objetivo" a fim de
combater o distributivismo". Quer dizer, o perigo não era o "marajá"
usado como retórica eleitoral, mas uma possível distribuição de renda pela via
do Estado.
Se examinarmos o conflito por uma
perspectiva histórica, fica claro que o auge do sucesso da palavra
"desestatizar" veio com um movimento externo combinado com essas
condições internas, resultando nos oito anos de FHC. Houve no mundo a
"revolução" ultra-neoliberal de Margareth Thatcher e de Ronald Reagan
na Inglaterra e EUA, continuada pelo risonho inglês Tony Blair, e pelos
norte-americanos Bush (pai) e Bill Clinton.
Foram mais de duas décadas de
"pensamento único" no planeta.Cerca de 160 países aplicaram a fórmula
neoliberal da "escola de Chicago" sobre a primazia da "mão
invisível do mercado". Começou com o Chile do "grande liberal"
Pinochet, espalhou-se por toda parte e, na América Latina, incluiu os governos
de Menem na Argentina e FHC no Brasil.
O Estado virou o demônio a ser exorcizado
após a queda do regime do "socialismo real" da URSS. Tudo
"justificava" o horror a qualquer intervenção do Estado. O ciclo de
crise capitalista que vinha desde 1974 com a questão do petróleo e a escassez
de energia, achou um vilão-- o Estado do Bem Estar Social. Qualquer forma de
proteção aos trabalhadores e de segurança social virou "privilégio" e
"prejuízo".
A ordem era elogiar o empreendedorismo
possessivo e individualista. Todos conhecem essa história, que culminou nas
crises de 2002,2005 e 2008, cujos
efeitos ainda sofremos. O capitalismo "cassino" e
"globalizado" criou um caos na esfera internacional. O desemprego
europeu e norte-americano, a quebradeira
geral e a retração atingiram ,sobretudo,
aqueles países que mais levaram a sério o programa neoliberal. Sob FHC,
já se tornou um dado registrado na História que o País quebrou três vezes,
sendo salvo pelo FMI e pelos aliados como Clinton. Teve ainda um desemprego
crescente.
Um
paradoxo da posição dos neoliberais é que, mesmo favoráveis ao individualismo
econômico, conduziram o seu programa por meio de um poder de Estado centralizado.
Os casos de Thatcher e Pinochet são óbvios. Isso pode ser detectado inclusive
no governo FHC, cujo presidencialismo de medidas provisórias e de conchavos
oligárquicos promoveu, sim , privatizações, só que à custa de ignorar a
sociedade civil. Nossos neoliberais negam a realidade em três pontos
importantes: 1.a atual crise do capitalismo foi provocada pela própria política
deles; 2. a rede de proteção aos trabalhadores no Estado do Bem Estar na Europa
foi, até agora, o que reduziu o impacto da crise; 3. a saída dessa situação
atual não pode ser por meio do mesmo modelo que a produziu, mas por programas
alternativos.
Dizem
também que devemos almejar o mínimo de governo possível a fim de facilitar a
livre concorrência e ,assim, liberar a economia. Esse é o maior mito de todos. O "laissez faire" que visam é
imaginário. Como falar de uma liberdade
de mercado e de concorrência numa economia cada vez mais monopolizada e
cartelizada? O que a ideologia neoliberal esconde é a sua verdade mais íntima:
não é pela livre concorrência "pura", mas pela concentração cada vez
maior da propriedade e da renda nas mãos de uma minoria.
*
Reinaldo
Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: www.imaginarioradical.blogspot.
com.
Nenhum comentário:
Postar um comentário