quinta-feira, 17 de julho de 2014

O DEBATE FURADO


 

 

                                                                     Reinaldo Lobo*

 

     Passada a Copa, começa outro torneio. A briga entre os neoliberais "versus" o Estado. É o pretenso FlaXFlu dos que se apresentam como defensores da "livre iniciativa" contra o monstruoso Leviatã. Esse é o maior falso problema que domina o debate eleitoral brasileiro desde pelo menos a era FHC, iniciada em 1994 e encerrada em 2002.

    Um exemplo ridículo desse debate absurdo ocorreu agora, no fim dos jogos do Mundial, após a derrota acachapante do Brasil por 7x1 para a Alemanha. A presidente Dilma juntou-se aos clamores dos torcedores e dos cronistas esportivos, declarando que seria preciso reorganizar a estrutura do futebol brasileiro.  Pronto, foi o suficiente para que um dos candidatos da oposição, o neoliberal Aécio Neves, caísse matando. Acusou-a de "estatista", pois ela pretenderia criar a "Futebrás". Atribui-lhe intenções para justificar sua própria pregação ideológica. E também por razões eleitorais, claro.  Não adiantou a presidente explicar que não quis dizer isso e nem falava de estatização da CBF, mas de uma simples sugestão, que poderia ter força em se tratando de uma opinião presidencial. Ficou a "acusação" um tanto patética.

    Esse tipo de obsessão anti-estatal já havia começado nos tempos da ditadura civil-militar brasileira sob o nome de "desburocratização". A expressão era uma disfarce de políticos do regime e de empresários "liberais" para clamar contra o "excesso de Estado" na área econômica, ainda que nem sempre preferissem sua diminuição na esfera política e institucional. Estavam interessados, como o general Pinochet no Chile, no liberalismo econômico, jamais no político. E em não pagar impostos.

    Na fase terminal do autoritarismo brasileiro, com a crise inflacionária e a estagnação da economia, quase todo empresário se tornou democrata desde criancinha. Passou-se a equacionar liberdade política com diminuição do peso do Estado. Começou-se, então, a falar do "custo Brasil", a protestar contra a carga tributária e a repetir outros clichês dos porta-vozes "do mercado". Não era suficiente argumentar que o empresariado brasileiro sucumbiria a crises sistêmicas e conjunturais sem o Estado e as intervenções keynesianas na esfera da regulação geral, da geração de capital e mesmo da produtividade.Esses argumentos eram imediatamente descartados e taxados de "marxismo" e "populismo".

     Houve um presidente da FIESP , ainda no final da Ditadura, que foi um dos principais repetidores ideológicos do combate ao Estado. Suas empresas prosperaram muito nesse período vendendo aço e implementos siderúrgicos para obras estatais do "Brasil Grande".Os recursos para seus investimentos vieram dos empréstimos subsidiados pelo Tesouro Nacional. Não só no seu caso, a expressão "mamar nas tetas do governo"  é até fraca para descrever a verdadeira promiscuidade entre empresas privadas e o Estado.

     Os neoliberais negam que temos entre nós, na verdade, um Estado privatizado e abusado pelos conglomerados industriais,  agropecuários, fundos de pensão, grandes bancos e corporações. Um estranho animal, parecido com o Ornitorrinco, como costuma dizer o sociólogo Chico de Oliveira.

      Ao final do regime ditatorial, os defensores de um papel para o Estado no desenvolvimento calaram-se por um bom tempo, receosos de serem confundidos com antidemocratas. Esse período vai até 1989, quando houve a primeira eleição presidencial democrática e ainda prevalecia uma certa unidade de propósitos no sentido de recompor a sociedade e o Estado, restaurando as liberdades civis.

     A luta eleitoral abriu a temporada de caça ao Estado, com Collor representando, então, as forças do "novo liberalismo". Seguiram-se brigas ideológicas agudas, quando cada uma das correntes políticas, que alegavam combater unidas o autoritarismo, já estava no seu  próprio galho.

     Nessa época,  foram criadas as condições internas para, além do advento do curto período Collor, a chegada posterior de FHC. O discurso "moderno" do ex-governador de Alagoas foi buscar suas justificativas para chegar ao poder  no velho tema da "desburocratização" e dos privilégios do funcionalismo. O ex-embaixador brasileiro nos EUA, Roberto Campos, também chamado de "Bob Fields" por sua paixão americanófila, ficou empolgado com a conversa de Collor sobre os "marajás" instalados na burocracia estatal. Escreveu: "O jovem político encontrou o "inimigo objetivo" a fim de combater o distributivismo". Quer dizer, o perigo não era o "marajá" usado como retórica eleitoral, mas uma possível distribuição de renda pela via do Estado.

      Se examinarmos o conflito por uma perspectiva histórica, fica claro que o auge do sucesso da palavra "desestatizar" veio com um movimento externo combinado com essas condições internas, resultando nos oito anos de FHC. Houve no mundo a "revolução" ultra-neoliberal de Margareth Thatcher e de Ronald Reagan na Inglaterra e EUA, continuada pelo risonho inglês Tony Blair, e pelos norte-americanos Bush (pai) e Bill Clinton.

      Foram mais de duas décadas de "pensamento único" no planeta.Cerca de 160 países aplicaram a fórmula neoliberal da "escola de Chicago" sobre a primazia da "mão invisível do mercado". Começou com o Chile do "grande liberal" Pinochet, espalhou-se por toda parte e, na América Latina, incluiu os governos de Menem na Argentina e FHC no Brasil.

     O Estado virou o demônio a ser exorcizado após a queda do regime do "socialismo real" da URSS. Tudo "justificava" o horror a qualquer intervenção do Estado. O ciclo de crise capitalista que vinha desde 1974 com a questão do petróleo e a escassez de energia, achou um vilão-- o Estado do Bem Estar Social. Qualquer forma de proteção aos trabalhadores e de segurança social virou "privilégio" e "prejuízo".

    A ordem era elogiar o empreendedorismo possessivo e individualista. Todos conhecem essa história, que culminou nas crises de  2002,2005 e 2008, cujos efeitos ainda sofremos. O capitalismo "cassino" e "globalizado" criou um caos na esfera internacional. O desemprego europeu e norte-americano, a  quebradeira geral e a retração atingiram ,sobretudo,  aqueles países que mais levaram a sério o programa neoliberal. Sob FHC, já se tornou um dado registrado na História que o País quebrou três vezes, sendo salvo pelo FMI e pelos aliados como Clinton. Teve ainda um desemprego crescente.

       Um paradoxo da posição dos neoliberais é que, mesmo favoráveis ao individualismo econômico, conduziram o seu programa por meio de um poder de Estado centralizado. Os casos de Thatcher e Pinochet são óbvios. Isso pode ser detectado inclusive no governo FHC, cujo presidencialismo de medidas provisórias e de conchavos oligárquicos promoveu, sim , privatizações, só que à custa de ignorar a sociedade civil. Nossos neoliberais negam a realidade em três pontos importantes: 1.a atual crise do capitalismo foi provocada pela própria política deles; 2. a rede de proteção aos trabalhadores no Estado do Bem Estar na Europa foi, até agora, o que reduziu o impacto da crise; 3. a saída dessa situação atual não pode ser por meio do mesmo modelo que a produziu, mas por programas alternativos.

     Dizem também que devemos almejar o mínimo de governo possível a fim de facilitar a livre concorrência e ,assim, liberar a economia. Esse é o maior mito de todos.  O "laissez faire" que visam é imaginário.  Como falar de uma liberdade de mercado e de concorrência numa economia cada vez mais monopolizada e cartelizada? O que a ideologia neoliberal esconde é a sua verdade mais íntima: não é pela livre concorrência "pura", mas pela concentração cada vez maior da propriedade e da renda nas mãos de uma minoria.

 

* Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: www.imaginarioradical.blogspot. com.

Nenhum comentário:

Postar um comentário