quinta-feira, 30 de outubro de 2014

UMA DEMOCRACIA DE ESPECTADORES


                                 
                                                                                   Reinaldo Lobo*

 

     A cada quatro anos, temos o breve direito de escolher livremente.  Só no dia da eleição há liberdade de opção na democracia representativa. Depois, assistimos os outros governarem por nós. Mas, mesmo nesse dia , será que somos livres para escolher?

    A eleição já vem pré-marcada por decisões anteriores dos partidos, dos lobbies, das agências de propaganda, dos marqueteiros, dos interesses econômicos e políticos. As próprias pseudo-opções são predeterminadas pelas chefias partidárias e, muitas vezes, são vazias.

   Que são os chamados "programas" dos partidos políticos, hoje, no Brasil? No mais das vezes são colchas de retalhos dos resultados das pesquisas de opinião, das enquetes destinadas a sondar algumas preocupações do eleitorado e torná-las "propostas", como se atendessem à população. Em alguns outros casos, consistem em acomodações entre os partidos para  alianças temporárias.

   Os candidatos vêm embalados como um produto comercial que precisamos comprar para poder experimentar ou avaliar.

    Quando se levanta a questão da democracia hoje, trata-se sempre da democracia representativa, seja para elogiá-la ou para criticá-la. Mas não se avança mais que isso. Já no século XVIII, Rousseau a criticava dizendo sobre os ingleses que "eles só são livres no dia das eleições". Hoje, a situação não mudou muito, talvez tenha até piorado.

   A democracia contemporânea está organizada, concebida de tal modo que a participação dos cidadãos seja de fato impossível -- como dizia um outro filósofo, Castoriadis. Depois, os partidos e os políticos ficam lastimando sua própria falta de representatividade. Eles mesmos falam muito do vazio da política , da crise da representação e da pequena participação do povo na democracia atual.

    Dentro do regime atual, os cidadãos podem, de fato, fazer muito pouco. Quase nada, a não ser votar no dia da eleição ou protestar nas ruas. Há uma permanente alienação que é estrutural, pela forma do regime. Não é provocada apenas pelo fato de vivermos em sociedades que são verdadeiros convites ao alheamento, ao consumo desenfreado, ao prazer imediatista e à estupidificação promovida pelos meios de comunicação. Vivemos em sociedades viciadas em superficialidades e na privatização da vida, isto é, na retirada dos cidadãos da esfera pública para confiná-los nos espaços na frente do aparelho de TV, nas indústrias e nos escritórios ou, no melhor dos casos, nas academias de ginástica ou nos shows de entretenimento. Não é por acaso,  que vivemos em "sociedades de lobbies e hobbies", no dizer da Castoriadis. Isto, em países como os da Europa ou nos EUA. Nos mais pobres, há lobbies, mas poucos hobbies.

     Nos tempos de eleições, as questões que se apresentam para a coletividade parecem muitas vezes abstratas para o cidadão.Sem compreendê-las, ele acha muitas vezes que sua exclusão das decisões é inevitável.

    É a ilusão da "expertise", a miragem tecnicista. Mas não se fala nas decisões absurdas tomadas pelos peritos sobre o confisco da poupança do dinheiro dos cidadãos, sob o governo Collor, que resultaram apenas em mais crise e em inflação de 80 por cento ao mês. Não se fala da opção por uma estrada como a Transamazônica que, além de devastar as florestas, não levou a lugar nenhum.    

    Existem hoje peritos capazes ou em vias de modificar o genoma humano. Vamos deixar que eles decidam sobre isso sozinhos?--perguntou Castoriadis.

   O fato é que os "técnicos" ou tecnocratas estão quase sempre divididos , não são eles que decidem. Quando os dirigentes políticos querem que uma "perícia" vá em certo sentido, encontram sempre especialistas para produzirem um relatório coerente.

    É difícil acreditar que , num plebiscito, o povo dos Estados Unidos aprovaria a fabricação dos "drones" para usá-los como arma contra populações indefesas, a menos que esse povo estivesse manipulado de tal modo pela mídia, como na "guerra ao terror". Essa idéia só poderia sair originalmente da cabeça de engenheiros a serviço dos militares do governo norte-americano.

   Mesmo que seja possível falar em relevância da escolha eleitoral -- em casos como o da atual eleição no Brasil, em que questões essenciais serão decididas no domingo e onde haja diferença considerável entre as duas opções propostas-- não há dúvida de que a chamada democracia representativa precisa ser revista. Mesmo que seja a menos ruim que temos, como diziam Churchill e outros. E não se trata apenas de propor uma "democracia participativa" como têm feito o PT e algumas lideranças cristãs, sobretudo católicas.

   É preciso ter a coragem de defender uma desmontagem do sistema representativo típico, a democracia dos espectadores.. E de propor a  democracia direta, na qual o povo decida ao longo de todo o processo do período republicano.

   Essa forma direta de governo é possível de executar nos tempos dos meios de comunicação interativos e agregadores. Para isso, será necessário remover uma série de obstáculos, a começar por aqueles impostos pelos partidos políticos e pela resistência conservadora à própria democracia.

   Se o regime democrático é o "do povo, pelo povo e para o povo", por que será que exatamente ele, o povo, não pode decidir de perto o que lhe interessa, seja por meio de  referendos, plebiscitos, grupos de pressão,  de decisões e de sugestões, grupos de intervenções ou organizações de base e de bairro?

 

*Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot. com

  

    

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

SEGUNDO TURNO


 

 

                                                             Reinaldo Lobo*

 

 A maior parte das análises sobre o primeiro e o segundo turnos das eleições presidenciais negligencia o papel da imprensa e dos meios de comunicação. Na verdade, nega, conscientemente ou não, essa participação.

Os colunistas políticos dão por certo que a “realidade” que descrevem corresponde aos fatos e não aos fatos como são narrados e construídos. A mídia está totalmente implicada no trabalho de esculpir esses artifícios, ainda que as ocorrências, efetivamente, tenham uma mistura de manipulação própria da política e uma boa dose de acaso. A mídia fala, no entanto, do interior da realidade que habita e que ela mesma ajudou a criar.

 Todos sabem que o acidente que matou o candidato Eduardo Campos – o Acaso-- quase liquidou também a candidatura de Aécio Neves. Mas, assim que Marina Silva saiu da obscuridade de candidata a vice,passou a  ser inflada e mimada pelos chamados “formadores de opinião”, em geral instalados na imprensa mais conservadora do País.

Era a “anti-Dilma” por excelência. Os mercados, a bolsa, a imprensa e até os norte-americanos festejaram a possível retirada do PT do poder, com o consequente fim almejado da política desenvolvimentista, da distribuição de renda e da política externa independente, visando a um realinhamento quase total com os EUA.

   A ressurreição na reta final do primeiro turno de Aécio-- um neoliberal--, muda, paradoxalmente,tudo de novo.Aécio defende com mais frieza quasetudo o que o lançamento de Marina prometia, mas o quadro politico mudou.

Será um pouco mais fácil para Dilma conseguir a transferência de votos de Marina Silva do que seria conquistar os votos dos eleitores de Aécio Neves. Isso apesar da acachapante derrota de Dilma e do PT em São Paulo. Os eleitores de Marina são um misto de pobres, trabalhadores, jovens estudantes e intelectuais de mente mais aberta, além do contingente de classe média que migrou do tucano para a ecologista da “Nova Política”, seguindo a mídia e afetado pelo impacto emocional dodia 13 agosto, quando houve o acidente aéreo.

  Os eleitores típicos de Aécio, que se parecem um pouco com ele, acreditam no capitalismo como a via régia para o sucesso e odeiam o PT inclusivo e distributivista.  Dificilmente migrariam para a candidatura da presidenta.  Mas, por outro lado, é mais complicado enfrentar o candidato tucano fortalecido pelo impulso que recebeu com a votação ascendente no primeiro turno e com a paridade que terá no horário eleitoral (fiftyXfifty). Além disso,vai para o combate com previsível agressividade e com apoio suplementar da mídia, que provavelmente será maciço.

   Como Aécio estava na lanterna das pesquisas, foi poupado de críticas intensivas e severas. Na verdade, foi ele quem bombardeou Marina e Dilma com uma saraivada de denúncias. Agora que ressuscitou como Lázaro da morte, vai enfrentar na TV e nos debates o tiroteio petista destinado a devolvê-lo ao túmulo político tucano. Nessa fase, porém, Aécio deverá receber também o estímulo de verbas de campanha e apoio das empresas que o haviam abandonado quando ocupava o terceiro lugar.

    A desvantagem principal que Dilma terá nesta segunda fase da disputa eleitoral será a manipulação por parte da mídia conservadora. Já nas reportagens e comentários das apurações, a TV mostrou o espetáculo da participação ostensiva da opinião subjetiva dos comentadores. Muitos torciam abertamente por Aécio. Na Rede Globo, a alegria era geral a cada avanço de Aécio sobre Marina e a cada aproximação de Dilma. Havia quase uma festa “cívica”.

 É possível ressalvarcerta objetividade de alguns jornalistas, casos individuais, mas o grosso da tropa alinhava-se ostensivamente nas fileiras da campanha de Aécio. Não faltaram sequer aqueles que se esmeravam em dar dicas e conselhos à campanha de Aécio sobre a melhor estratégia para derrotar Dilma. Não faziam análises ou interpretações dos fatos, mas esforçavam-se para criá-los ou participar deles.

    Um dos primeiros jornalistas e intelectuais sérios que discutiram o fenômeno da “opinião publica” moderna, Walter Lippmann, já apontava em 1922 o perigo para a democracia constituído pela manipulação do pensamento das massas. Dizia que a opinião pública se forma por meio de estereótipos e de preconceitos, inevitáveis em todas as sociedades. Só que essas formações ideológicas podem ser corrigidas ou sedimentadas pelos meios de comunicação.

   Lippmann não hesitava,inclusive, em apontar uma espécie de “tirania” na manipulação dos fatos pela sua distorção subjetiva, quando ela é maciça e controlada por monopólios de poder, seja dos governos ou da iniciativa privada.

   A imprensa -- ou pelo menos a parte mais conservadora dela-- costuma apontar nos seus editoriais e artigos o poder do Estado como o único risco para a liberdade de expressão e de pensamento. Mas sempre esquece o poder econômico. Contudo, ele estará ativo como nunca no segundo turno da eleição. Não se pode esquecer que a grande imprensa brasileira é monopólio de algumas famílias, contando ainda com participação cada vez maior, hoje, do capital estrangeiro.

  Alguns desses grupos não hesitam em chamar esta eleição de “guerra” ou de cruzada “para extinguir o PT” da cena política. Daqui a alguns dias, saberemos não só quem vence, mas quais serão os sobreviventes dessa guerra de vida ou morte.