quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O BURACO FORA DO LUGAR


               

                                                                     Reinaldo Lobo

 

       Direita e esquerda brasileiras estão vivendo um momento delicado. O centro também. É que todos os lados estão desconfortáveis com a presença de Dilma na presidência. Alguns prefeririam removê-la. Por motivos e métodos diferentes, claro. Mas ocorre que essas forças políticas, que não seguem sequer cegamente a "opinião pública", estão supondo que o problema se localiza  na sua permanência no Executivo.

       Os mais conservadores adorariam ver Joaquim Levy livre da presidente para executar sua política econômica. Querem deixar  o Chicago Boy solto a fim de corrigir a "escorregadinha" brasileira na área, como ele próprio disse. Outros, mais radicais à direita, dizem que o País está sem governo mesmo, por incompetência sabem de quem. Então, tanto faz tirar a titular e colocar o reserva. É a turma do impeachment.

     Esses esquecem quem colocou o Levy no cargo, pois certamente não foi só "o mercado". A decisão presidencial foi política, refletiu o que  as urnas e metade do país disseram. Uma decisão democrática. O ex-presidente FHC chamou a atitude de Dilma de uma "cambalhota", talvez para não ter que elogiar. Pois ele bem que gostaria de ver o Aécio escolher um Joaquim desses.

      Quanto à esquerda, dentro e fora do PT, está perplexa há muitas semanas. O cacique José Dirceu foi quem deixou mais claro o descontentamento com a tomada de posição surpreendente de Dilma e com as medidas econômicas decorrentes. Quanto à esquerda fora do PT, já fazia franca oposição e até se alinhava com a direita em algumas denúncias. Apenas reiterou as críticas.

     Ocorre que a realidade é mais forte do que as ideologias e está impondo uma complexidade na situação que torna muito perigosa a simples remoção de Dilma da presidência. É preciso encarar essa complexidade de frente.

    Primeiro, Dilma fez um gesto em direção à direita ao montar o seu ministério, ignorando as sugestões vindas da esquerda. A direita não morre de amores por ela, mas derrubá-la, simplesmente, seria abrir uma crise institucional, afetando outras instâncias democráticas. Provocaria também uma reação dos sindicatos e dos trabalhadores em geral. Seria uma profunda crise política, da democracia e da sociedade, somada à crise econômica.

    Dilma , de fato, não é um Jânio nem um Collor. Tem 1,5 milhão de militantes do mais organizado partido atrás dela, além de boa parte das classes trabalhadoras.

    Segundo, a crise é mais profunda, exige continuidade e soluções cautelosas. Algumas medidas são mistas: "neoliberais", mas conservando as conquistas trabalhistas, em paralelo. Todo cuidado é pouco.

       Os próprios conservadores, incluindo aí o seu herói da competência do momento, estão temerosos de um processo de austeridade muito brutal, pois sabem o que está  acontecendo na Europa.

       Uma boa parte da confusão política atual deve-se aos ecos recentes do discurso eleitoral, reforçado pela presença de um congresso composto por deputados e senadores retrógrados e oportunistas ( os "300 picaretas" mais a "vanguarda do atraso"). Ocorre que o discurso eleitoral foi pautado ideologicamente nos moldes dos anos 60, dos dois lados. A dicotomia direita-esquerda foi exaltada por ambos os lados da disputa.

      A retórica anti-comunista da oposição era "vintage",   ao ponto de até surgir uma nova direita que pedia o retorno dos militares ao poder. O velho slogan duplo, contra a corrupção e o comunismo, era repetido até por políticos sérios dos partidos oposicionistas. Revivemos um pouco a era da Guerra Fria.

    Quanto à esquerda que apoiou Dilma, gastou até à exaustão o discurso contra o neoliberalismo e as medidas de ajuste fiscal, sendo obrigada agora a engolir desse amargo remédio, se quiser continuar apoiando o governo da distribuição de renda e de crescimento com justiça social.

     A crise atual não se deve apenas aos erros do governo ou à fraqueza da oposição, como querem os mais afoitos. São os mesmos que questionaram a legitimidade da eleição de Dilma. Como disse o ex-ministro da ditadura, o professor Delfim Neto, insuspeito de esquerdismo, o povo não votou por ser idiota, mas idiotas são os que pensam assim. As pessoas votaram em Dilma porque a vida de grande parte da população melhorou muito nos doze anos de governo "lulo-petista".

   Os críticos mais contumazes do governo Lula costumam repetir que o seu sucesso se deveu a uma "sorte", em função da conjuntura econômica internacional favorável (preços das commodities, baixa do dólar, mercado da China, etc.). Ora, o mesmo pode ser dito, em sentido contrário, sobre o governo Dilma, que pegou uma maré de "azar" internacional, com as baixas gerais das commodities, recuperação da economia dos EUA, alta do dólar,etc.)

     A realidade econômica e social não pode ser ignorada em função dos argumentos marcados ideologicamente e das crenças, sob pena de não sairmos da crise neste 2015. A confusão atual é , em grande parte, efeito da perda da embocadura na análise, substituída pelo foco único da ideologia. Está na hora de mirarmos no buraco certo, colocado no seu devido lugar.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

A ESTRELA VERMELHA OSCILA


   

 

                                                                         Reinaldo Lobo*

                                                                                          

             

    O PT não é mais aquele. Mudou muito nos seus 35 anos de vida. De movimento dos trabalhadores do ABC, dos  intelectuais de esquerda, de ex-guerrilheiros e de agentes das pastorais católicas, passou a ser um partido eleitoral e de massas. São 1,5 milhão de filiados, mais de doze anos no poder, várias crises internas e externas.

             Muitas rupturas depois, o partido da estrela vermelha e do programa de maior coerência ideológica no cenário democrático brasileiro, encontra-se numa encruzilhada ao mesmo tempo promissora e perigosa: seguir na trilha eleitoral vitoriosa ou voltar, mesmo eleitoralmente vencedor, às suas origens programáticas.       

            Hoje, a militância petista é composta por funcionários públicos, classes médias, antigos militantes socialistas e políticos com variados graus de interesses e de princípios. Houve uma alteração qualitativa em sua composição, mas sobretudo em sua estrutura burocrática.

           Dizia o célebre Robert Michels, sociólogo que estudou a natureza das organizações partidárias e sindicais já no início do século passado, que há nos partidos uma tendência à centralização e estratificação de poder. Do seu ponto de vista, isso não significa necessariamente um mal, mas tem o risco de desvitalizar a luta política e esvaziar o sentido original dos programas ideológicos.   Chamou essa tendência de "lei de ferro da oligarquização".

           A rotinização burocrática conduz à delegação de poder às chefias, que passam a tomar decisões em comissões e gabinetes. Funcionários, sobretudo quando o partido está no comando do Estado, podem ser pessoas que se valem dos pequenos poderes, que se encostam na estrutura partidária em busca de benefícios e que,às vezes, são tipos medíocres  e corruptos. No entanto, não devemos nos fiar no mito difundido de que "o poder corrompe". 

         O poder não corrompe, revela --como dizia um colega psicanalista, Fábio Herrmann, já falecido. O corrupto encarapitado em sinecuras pode usá-las, em seu favor e dos interesses particulares de alguns grupos, simplesmente por ser corrupto ou ter uma mente corruptível.

          O PT tem passado por essas vicissitudes, não por defeito de origem ou por defender princípios socialistas, mas por ter-se modificado em direção à política tradicional, às alianças eleitorais e de classe de um presidencialismo perverso. As chamadas bases de sustentação dos presidentes impõem alianças absurdas, que petistas e tucanos acusam-se mutuamente de cometer. Esse é um problema que a Constituição de 1988 não preveniu nem resolveu e que só a proverbial reforma política profunda poderia solucionar.

          A colaboração com governos de transição, a busca da chamada governabilidade, envolvendo um empresariado e um sistema social corruptos, levou-o a dissolver sua identidade revolucionária original e parte de sua natureza diferenciada.

          Sempre que criticam o PT, à direita ou à esquerda, é para dizer que o seu maior defeito foi ter ficado igual aos outros partidos. Ou seja, há uma desidealização do PT por deixar, em alguns momentos,  de representar uma genuína opção ética e política "ao que aí está".

        Talvez muitos não se dêem conta disso, mas quando essa crítica parte da direita é auto-contraditória, pois acusam o partido de deixar de ser diferente justamente daqueles que os conservadores apóiam: os partidos do sistema. No mínimo, está-se dizendo que temos um sistema político e uma sociedade corruptos -- o que, pelo menos em parte, é verdade.

          O maior desafio do PT neste momento, o seu dilema existencial, é sobreviver em meio a essa ambigüidade da nossa República, sem perder a chama que lhe deu força, confiança das massas e poder. Ninguém pode negar que o PT tem sido o único partido com consistência ideológica no seu DNA e, principalmente, o mais organizado do País, além de o mais ativo nas lides sociais.

          O seu principal drama é mesmo o pacto político pela governabilidade com forças muito diferentes dele mesmo. A aliança com o empresariado, que caracteriza sua moderação continuada e progressiva, é, ao mesmo tempo, o pólo de equilíbrio da governabilidade e também a fonte das crises e conflitos constantes repercutidas pela imprensa conservadora. A pressão é enorme. A mídia desempenha hoje um papel adicional na "desmoralização" do PT, como se ele fosse a única razão dos descompassos econômicos e da corrupção endêmica do Estado brasileiro. Sabemos todos que não é assim, e que a corrupção vem de longe e  sempre foi volumosa. No entanto, tudo "é culpa do PT".

          Uma outra característica do Partido dos Trabalhadores nestes 35 anos de vida foi ter rompido com preconceitos e mitos históricos em relação aos pobres, às mulheres, aos homossexuais e transgêneros , aos negros e aos excluídos em geral. Tem combatido o racismo, a homofobia e a violência contra os jovens. Representa com freqüência o melhor papel em relação aos Direitos Humanos, estando na origem da luta para a consecução da Comissão da Verdade, que vasculhou na medida do possível os crimes da Ditadura civil-militar de 1964.

         Se dependesse dos partidos que expressam os interesses e os pontos -de- vista da "oligarquia liberal", tudo seria varrido para o mesmo lixo em que muitos órgãos militares jogaram documentos do período ditatorial. 

         Não é preciso falar de Lula e de Dilma, ainda que façam parte da principal força política do PT, e simbolizem  sua existência. Nem dizer que é necessária uma autocrítica de todo o corpo desse partido, pois isso está óbvio.   Mas o alcance do PT vai além disso na sociedade brasileira e só será ainda mais vitorioso se der a devida relevância a um projeto maior do que suas lideranças -- o projeto  de uma sociedade cada vez mais democrática, inclusiva e justa.

         Se não for assim, a luz da estrela vermelha se apaga e, com ela -- não tenham dúvidas disso--  a principal e quase única esperança de milhões de brasileiros.