quarta-feira, 22 de abril de 2015

A OPINIÃO PÚBLICA


                                

                                                             Reinaldo Lobo*

 

 

     Havia um torturador no extinto DOI-CODI, durante a Ditadura civil-militar, que era conhecido como "Dr. José". Era um presumível capitão considerado o "intelectual" do grupo. Gostava de fazer --acreditem!-- entrevistas "científicas" e aplicava "testes psicológicos" em seus torturados. Às vezes, entabulava conversações sobre "teoria política" com seus inimigos, em sua maioria jovens estudantes ou professores universitários.

      Formulava assim a sua versão do que era a opinião pública:

     "Se você estiver no Viaduto do Chá, em São Paulo, e presenciar a cena de um ladrão roubando a bolsa de uma velhinha, verá a multidão que passa por ali  começar a gritar "pega ladrão!", revoltada. Mas se chegar a polícia --a autoridade legal--, e prender o ladrão dando-lhe umas cacetadas, logo descobrirá que a multidão vira a casaca e começa a vaiar a polícia. Isso é a opinião pública. Não sabe o que quer. Por isso, ela precisa ser manipulada pelos que sabem das coisas."

      Quem "sabia das coisas"? Os militares e seus aliados da "elite nacional". Simples assim.

      Essa não era a visão de um Platão, mas de um fascista e torturador. Foi também, espantosamente, o ponto-de-vista aproximado de um "liberal" histórico, o jornalista e pensador norte-americano Walter Lipmann (1889-1974).

     Libertário no início, quase um anarquista quando jovem jornalista, tornou-se um conservador e foi o criador do termo "Guerra Fria" para definir o quadro após a Segunda Guerra no mundo dividido entre URSS e EUA. Seu "liberalismo" distinguia um grupo de  cidadãos -- jornalistas, juristas e empresários, de preferência de sua escola, Harvard-- que deveria "orientar a multidão", pois esta poderia perder-se irracionalmente em meio às emoções e às muitas opiniões propiciadas pela democracia norte-americana. Não propunha censura, mas uma cuidadosa e ativa indução pedagógica.                 

     Em seu livro "Opinião Pública" defende a liberdade de opinião, mas também uma hegemonia das idéias que deveriam ser disseminadas pela elite entre a massa ignorante, através de vários órgãos, por exemplo, como o "The New York Times" e revistas "Time" e "Life", capazes de infundir o "american way". Enfim, uma democracia livre, mas dirigida. O papel dos monopólios de comunicação, inclusive das TVs, seria crucial na missão de modelar a opinião nacional e, quem sabe, internacional.

      Surgido  no século XVIII, o conceito de opinião pública ainda é muito vago. É o resultado de manifestações públicas? A massa emitindo os sinais de uma opinião consensual? Uma espécie de "onda" do imaginário coletivo que ganha proporções em certos períodos? O simples efeito daquilo que aparece nas eleições, fruto do voto das multidões? Algo a ser aferido por pesquisas? O conjunto dos preconceitos e dos valores de um determinado povo ou de parte dele? A expressão das ideologias secretadas por segmentos da sociedade?

      Os filósofos da política sugerem que opinião pública não deve ser confundida com soberania. O eventual clamor da "opinião" é circunstancial e não representa o direito de escolher governantes ou de proclamar sua deposição. A soberania é o direito que o povo tem de escolher seus dirigentes, suas leis e a preservação do respeito ao seu território-- daí, soberania nacional. A soberania é, portanto, fundante da democracia. A opinião é passageira.

     O erro do torturador do DOI-CODI foi, portanto, o de fazer maliciosamente essa confusão, a fim de defender o seu "direito" de manipular e de reprimir. A soberania não se confunde sequer com maioria, pois é constitutiva de um sistema de convivência e de governo. As eleições servem para consultar periodicamente a maioria, promover a alternância ou permanência no poder, mas não para destituir a própria soberania ou eliminar os fundamentos do regime democrático.

     As ditaduras tentam justificar sua existência alegando a volubilidade da opinião pública, muitas vezes motivada pelo medo infundido pelos próprios agentes e defensores da exceção.

    Na democracia, o direito de dissentir e de constituir minorias não é apenas para garantir a existência de uma oposição, de indivíduos ou pequenos grupos, mas também -- e principalmente-- para sustentar a democracia, mesmo indo contra o desejo de maiorias.

    Na Argentina, quando o ex-ditador Perón voltou do exílio e se candidatou à presidência, foi eleito com oito milhões de votos. Foi a maior votação até então na história do país, obteve mais de 90% dos eleitores. Um repórter entrevistou alguém que não votou em Perón, o escritor Jorge Luis Borges, velho adversário do peronismo, e perguntou : " O senhor não se sente estranho e isolado, sabendo que oito milhões de argentinos discordam do senhor? . Borges respondeu: "Não tenho culpa se  existem na Argentina oito milhões de idiotas".

    Borges exerceu, apesar do tom arrogante, o direito de ir contra a corrente, de não seguir o impulso da opinião pública. A existência da minoria está nos fundamentos da democracia, desde a Grécia antiga. Sabe-se que no Brasil atual cerca de 90% dos brasileiros-- segundo as pesquisas de opinião-- são favoráveis à diminuição da maioridade penal, mas existem uns 10% contrários a isso. Estes 10% que  não querem seguir a maioria não estão desrespeitando à democracia. Ao contrário, fazem o que Borges teve a coragem de enunciar, isto é, dissentir. Nesse sentido, a presença dos 10% é o que garante a democracia.

     A opinião publica não é garantia de nada; nesse ponto o torturador "filósofo" tinha razão. Ela pode mudar. Mas o direito legal de escolha e de discordância-- e de não ser torturado por isso-- são a própria essência da democracia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário