Reinaldo Lobo*
Havia
um torturador no extinto DOI-CODI, durante a Ditadura civil-militar, que era
conhecido como "Dr. José". Era um presumível capitão considerado o
"intelectual" do grupo. Gostava de fazer --acreditem!-- entrevistas
"científicas" e aplicava "testes psicológicos" em seus
torturados. Às vezes, entabulava conversações sobre "teoria política"
com seus inimigos, em sua maioria jovens estudantes ou professores
universitários.
Formulava
assim a sua versão do que era a opinião pública:
"Se você estiver no Viaduto do Chá,
em São Paulo, e presenciar a cena de um ladrão roubando a bolsa de uma
velhinha, verá a multidão que passa por ali começar a gritar "pega ladrão!",
revoltada. Mas se chegar a polícia --a autoridade legal--, e prender o ladrão
dando-lhe umas cacetadas, logo descobrirá que a multidão vira a casaca e começa
a vaiar a polícia. Isso é a opinião pública. Não sabe o que quer. Por isso, ela
precisa ser manipulada pelos que sabem das coisas."
Quem "sabia das coisas"? Os
militares e seus aliados da "elite nacional". Simples assim.
Essa não era a visão de um Platão, mas de
um fascista e torturador. Foi também, espantosamente, o ponto-de-vista aproximado
de um "liberal" histórico, o jornalista e pensador norte-americano
Walter Lipmann (1889-1974).
Libertário no início, quase um anarquista
quando jovem jornalista, tornou-se um conservador e foi o criador do termo "Guerra
Fria" para definir o quadro após a Segunda Guerra no mundo dividido entre
URSS e EUA. Seu "liberalismo" distinguia um grupo de cidadãos -- jornalistas, juristas e
empresários, de preferência de sua escola, Harvard-- que deveria "orientar
a multidão", pois esta poderia perder-se irracionalmente em meio às
emoções e às muitas opiniões propiciadas pela democracia norte-americana. Não
propunha censura, mas uma cuidadosa e ativa indução pedagógica.
Em
seu livro "Opinião Pública" defende a liberdade de opinião, mas
também uma hegemonia das idéias que deveriam ser disseminadas pela elite entre
a massa ignorante, através de vários órgãos, por exemplo, como o "The New
York Times" e revistas "Time" e "Life", capazes de
infundir o "american way". Enfim, uma democracia livre, mas dirigida.
O papel dos monopólios de comunicação, inclusive das TVs, seria crucial na
missão de modelar a opinião nacional e, quem sabe, internacional.
Surgido
no século XVIII, o conceito de opinião pública ainda é muito vago. É o
resultado de manifestações públicas? A massa emitindo os sinais de uma opinião
consensual? Uma espécie de "onda" do imaginário coletivo que ganha
proporções em certos períodos? O simples efeito daquilo que aparece nas
eleições, fruto do voto das multidões? Algo a ser aferido por pesquisas? O
conjunto dos preconceitos e dos valores de um determinado povo ou de parte
dele? A expressão das ideologias secretadas por segmentos da sociedade?
Os filósofos da política sugerem que
opinião pública não deve ser confundida com soberania. O eventual clamor da
"opinião" é circunstancial e não representa o direito de escolher
governantes ou de proclamar sua deposição. A soberania é o direito que o povo
tem de escolher seus dirigentes, suas leis e a preservação do respeito ao seu
território-- daí, soberania nacional. A soberania é, portanto, fundante da
democracia. A opinião é passageira.
O erro do torturador do DOI-CODI foi,
portanto, o de fazer maliciosamente essa confusão, a fim de defender o seu
"direito" de manipular e de reprimir. A soberania não se confunde
sequer com maioria, pois é constitutiva de um sistema de convivência e de
governo. As eleições servem para consultar periodicamente a maioria, promover a
alternância ou permanência no poder, mas não para destituir a própria soberania
ou eliminar os fundamentos do regime democrático.
As ditaduras tentam justificar sua
existência alegando a volubilidade da opinião pública, muitas vezes motivada
pelo medo infundido pelos próprios agentes e defensores da exceção.
Na democracia, o direito de dissentir e de
constituir minorias não é apenas para garantir a existência de uma oposição, de
indivíduos ou pequenos grupos, mas também -- e principalmente-- para sustentar
a democracia, mesmo indo contra o desejo de maiorias.
Na Argentina, quando o ex-ditador Perón
voltou do exílio e se candidatou à presidência, foi eleito com oito milhões de
votos. Foi a maior votação até então na história do país, obteve mais de 90%
dos eleitores. Um repórter entrevistou alguém que não votou em Perón, o
escritor Jorge Luis Borges, velho adversário do peronismo, e perguntou : "
O senhor não se sente estranho e isolado, sabendo que oito milhões de
argentinos discordam do senhor? . Borges respondeu: "Não tenho culpa se existem na Argentina oito milhões de
idiotas".
Borges exerceu, apesar do tom arrogante, o
direito de ir contra a corrente, de não seguir o impulso da opinião pública. A
existência da minoria está nos fundamentos da democracia, desde a Grécia
antiga. Sabe-se que no Brasil atual cerca de 90% dos brasileiros-- segundo as
pesquisas de opinião-- são favoráveis à diminuição da maioridade penal, mas
existem uns 10% contrários a isso. Estes 10% que não querem seguir a maioria não estão
desrespeitando à democracia. Ao contrário, fazem o que Borges teve a coragem de
enunciar, isto é, dissentir. Nesse sentido, a presença dos 10% é o que garante
a democracia.
A opinião publica não é garantia de nada;
nesse ponto o torturador "filósofo" tinha razão. Ela pode mudar. Mas
o direito legal de escolha e de discordância-- e de não ser torturado por isso--
são a própria essência da democracia.
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