Reinaldo Lobo*
A metáfora da esquizofrenia tem
sido usada e abusada para descrever o atual governo brasileiro. É um equívoco e
um diagnóstico apressado. Em primeiro lugar, é preciso perguntar: o que se
define hoje como o governo brasileiro.
Há vários, com identidades independentes. Mas há um laço de sobrevivência
política que os une.
Na esquizofrenia -- a doença
mental -- existe uma cisão de personalidade de um único indivíduo. Suas partes
-- é verdade-- agem isoladas umas das outras e se ignoram mutuamente . Com
Brasília, não é bem assim. Há vários elementos distintos , cada um agindo de
modo mais ou menos desorganizado do seu
lado. Cada um trabalhando como se
tivesse identidade, autonomia e direção própria , porém contrária aos outros. Cada um na sua, como se diz. E uns contra os
outros, só até certo ponto. No fundo, há um fio de união.
Há um governo que se imagina de
esquerda -- bem moderada, diga-se-- , relativamente acuado e sob pressão dos
adversários. É representado pela figura presidencial e alguns poucos ministros
de sua confiança, como José Eduardo Cardoso e Aloísio Mercadante. Na base
aliada, conta com o PCdoB, e com alguns membros do PDT, do PSB e pouquíssimos
independentes do PMDB. É pouco, para uma base que reúne cerca de 22 partidos.
Um outro é de direita, encarnado por amplos
setores do PMDB, sintetizados em figuras
como Kátia Abreu, da Agricultura, sem excluir o vice presidente Michel Temer.
Acrescente-se aliados do PP, PR e outras legendas mais ou menos fisiológicas. A direita se amplia até toda a base
governista, onde estão personagens de alta respeitabilidade como os presidentes
da Câmara, Eduardo Cunha, e do Senado,
Renan Calheiros.
Há mais um governo, terceirizado do
tucanismo, figurado pelo ministro Joaquim Levy, com uma ideologia de ultra direita na área econômica. A grande
polêmica é a carta branca dada pela presidente Dilma a este governo à parte,
que age com desenvoltura, desmentindo completamente a idéia de um "governo
voltado para os trabalhadores" propagada e articulada pelo PT.
Ainda há um resquício de uma virtual
representação do lulismo agindo nos bastidores, apoiado nos remanescentes do
PT.
Talvez
seja melhor perguntar: qual dos governos governa o Brasil hoje?
Dilma está vivendo o drama da esquerda que
optou pelo caminho democrático e deixou para trás o velho processo de
radicalização revolucionária. Não oferece o socialismo, mas uma coligação de
partidos e orientações ideológicas em direção a graduais avanços de distribuição de renda. Estão errados -- ou só de ma fé-- os que
acenam com o espantalho de Cuba ou do bolivarianismo da Venezuela. Isso é a maior bobagem que circula
na imprensa brasileira. O pior é que alguns saudosistas do socialismo real ou da opção guerrilheira
entraram também nessa história.
É preciso dizer com todas as letras de
uma vez por todas: Dilma entregou a hegemonia para a direita, não por
ingenuidade, mas por estratégia. Ampliou o pacto de coalizão com o empresariado
, os banqueiros e os latifundiários.
Em parte, foi para sobreviver politicamente sem
a retaguarda paternal de Lula, após uma vitória apertada nas urnas e a pressão
das classes médias e de vários setores populares, inclusive trabalhadores levados pela onda de moralismo
e fervor evangélico que assola o país.
Por outro lado, em grande parte a
presidente Dilma vive o "dilema grego" que afeta toda a esquerda que
veio de setores mais radicais pela via democrática e teve que adotar governos
de coalizão com as classes dirigentes. Por não saber agir num ambiente
tipicamente negociador, oportunista, em busca de sucessivas soluções de
compromisso com as forças do capitalismo mundial e nacional -- e sem um forte
programa alternativo estratégico--, essa
esquerda exagera na dose da aliança e da concessão, perdendo a mão sobre o processo político.
O
drama de José Dirceu foi exemplar : perdeu a mão na dose de compromisso,
escorregando na ilusão de imitar o "pragmatismo" da direita. Acabou
por virar uma figura de lobista, maltratado até injustamente pela mídia. .Atuou
na mesma "zona cinzenta da política" de que falava um ilustre
filósofo tucano. Só que, ao contrário dos vários espertos tucanos que meteram à vontade o bico
na cumbuca, foi apanhado numa armadilha sem a proteção da mídia conservadora.
Restou-lhe a condição de "consultor".
A direita nacional, composta por quase
todos os partidos existentes, é como aquela velha dona de bordel que conhece
cada uma das fraquezas de suas
profissionais e de seus fregueses. E as explora todas com eficiência. Eduardo
Cunha é a personagem símbolo dessa direita esperta. É uma dessas donas do
bordel. Na verdade, a sua turma está governando mais do que os outros vários
"governos", pois tem obtido cinicamente , na calada da noite, mais
resultados regressivos e conservadores do que a oposição tucana bem falante e inepta.
A
direita governa o País e mantém Dilma na defensiva. Há um pacto de
governabilidade envolvendo todos os partidos, inclusive a oposição -- com
hegemonia da direita, sobretudo dos banqueiros. A oposição finge se opor, de
olho nas eleições futuras, mas não tem
nada de louca ou de esquizofrênica . Louco é quem rasga dinheiro.
Reinaldo Lobo é psicanalista
e articulista,. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com
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