quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A DOR DA CRISE

                             
                                                         Reinaldo Lobo*

         O custo de uma crise econômica não se mede em cifras, números ou diagnósticos econômicos. Por mais que o empresariado e os governos apresentem as crises como fatos inevitáveis, quase naturais,  dos quais todos parecem vítimas de uma estranha "racionalidade" do sistema financeiro e industrial, o seu cálculo deve ser avaliado em sofrimento humano.
      Uma crise impõe às pessoas dor mental e física. A banalização das tormentas provocadas pelos ciclos do capitalismo esconde uma face sinistra, que é a incidência da insegurança e precariedade sobre os seres humanos. Depressão, suicídios , doenças psicossomáticas, impotência sexual e perda de sentido na vida -- são algumas das conseqüências mais freqüentes dos períodos de recessão.
     Durante a devastadora crise argentina de 2001/2002, quando ocorreram inúmeros suicídios, saques e violência,  uma psicanalista já falecida,Silvia Bleichmar, bastante conhecida  e respeitada na época, propôs num artigo de jornal que  as autoridades parassem de falar apenas em PIB, Índices de Preços, Taxas de Juros, e considerassem a elaboração de  uma espécie de ISH,  Índice de Sofrimento Humano . A idéia é sugestiva.
      Fala-se da crise como se fosse uma fatalidade, algo como um  terremoto que se abate  de tempos em tempos sobre todos nós. Sabemos que as crises econômicas não são um acidente, mas o resultado de um sistema econômico existente e o efeito de políticas públicas. Implicam em escolhas, decorrem também de erros dos governantes e do caminho selecionado para conduzir uma sociedade.
    A cruel política de "austeridade" que está sendo imposta ao Brasil neste momento não é algo "racional", mas uma estratégia de conseqüências destrutivas, sobretudo, para as pessoas.
   O capitalismo orienta-se pela lógica do Capital, mas na crise os seres humanos perdem muito mais do que dinheiro. Perdem a segurança, muitas vezes dissolve-se  a estrutura familiar, perdem a dignidade e até a identidade. Desabam certos mecanismos de defesa justificadores que fazem os trabalhadores terem resiliência ou tolerância ao sofrimento implícito no processo produtivo. A racionalização, a negação, as compensações de lazer, as válvulas de escape para a humilhação cotidiana e o stress -- tudo isso cai por terra e o que aparece na vida psíquica é  o medo, em alguns casos desespero, a violência e os "actings outs" (atuações fora de conflitos internos).




     Perder o emprego é humilhante. Para qualquer trabalhador, seja da classe  média ou operário, significa uma ameaça à sua dignidade pessoal e ao seu reconhecimento público como cidadão.  Ao ocupar um lugar na cadeia produtiva ninguém pretende "servir ao patrão", mas está em busca de uma "realização pessoal" e também do reconhecimento pessoal na intimidade dos mais próximos, da família, bem como da sociedade.
    Há toda uma psicopatologia do trabalho, tão bem estudada por autores como o francês Christophe Dejours, assim como existem as doenças decorrentes da perda do trabalho. São freqüentes os casos, inclusive entre executivos, de homens e mulheres que chegam aos consultórios médicos e psiquiátricos com sintomatologias difusas, que não entendem --como alheamento, perda de identidade e distúrbios sexuais--, desencadeadas depois que "saíram do mercado".
    Ao perderem o emprego de uma empresa com a qual estavam acostumadas ou se identificavam, as pessoas não deixam apenas de ganhar  dinheiro ou  de "vestir a camisa" do seu time de atividade. Em muitos casos em que há algum grau de desequilíbrio que fora disfarçado pela própria atividade, essas pessoas são levadas a uma perturbação  esquizóide,  paranóide ou de desrealização. Em outros casos, homens passam a se sentir "castrados".Há situações nas quais a identidade dos indivíduos está tão colada ao papel que ocupa no trabalho que, ao serem postos para fora (mesmo em eventual demissão coletiva por crise), sentem que perderam a própria individualidade.  Simplesmente passam a sentir que não são nada. Ninguém. E se "defendem" com mais mecanismos patológicos e sintomas.
    As crises econômicas destinam-se não à destruição de riquezas, mas á sua redistribuição. Em cada crise existem sempre alguns que ganham mais em detrimento de outros. Como lembra o sociólogo Zygmunt Bauman, estudioso da modernidade, após a crise de 2008 nos EUA, após a lenta recuperação da economia produziu-se  um PIB adicional, do qual 93% dele beneficiaram somente 1% da população.
    O ápice da crise não é um sintoma, mas a própria doença do sistema econômico  em ação. O capitalismo precisa de crises periódicas para poder funcionar , abrindo constantemente novas "áreas virgens" de mercado. Na fase de implantação do grande capital monopolista, as guerras mundiais cumpriram esse papel de reordenação dos mercados.  Hoje, o capital financeiro e de serviços recicla-se como se fora uma "revolução permanente", destruindo muitos recursos e criando novos.Estimula o mito do crescimento infinito e do consumo irrefreável. Tudo fica rapidamente obsoleto e os objetos se renovam.    

     Só que , no meio disso tudo, estão os seres humanos. 

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