quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A GUERRA PELO PODER


  
                                                                    Reinaldo Lobo*

       Foi um norte-americano, Thomas Skidmore, quem estudou o autoritarismo brasileiro a partir do esquema: "os que estão dentro" e os que "são de fora". Esse cientista político viveu vários anos no Brasil, acompanhou todo o período ditatorial e também o advento da Nova República, e descobriu um sistema inteiro de poder implícito, informal, quase invisível, mas muito operativo entre nós. A fórmula é interessante para entender nossa atual - e grande- crise política.
      Ao longo de nossa história desde, pelo menos, o Império, Skidmore detectou um bloco interno da oligarquia dominante, que impede solavancos  e instabilidade no seu domínio. E auxilia sua recuperação das crises.Esse grupo é representado de forma variável por diferentes partidos e líderes. Na República Velha, antes de 1930, eram os governadores provinciais e presidentes nacionais sucessivos sob a égide dos barões do café e fazendeiros, aos quais foram acrescidos, aos poucos,os emergentes industriais e, claro, os banqueiros.  O grupo dominante "de dentro" eram os políticos mineiros e paulistas, a fórmula do "café com leite".
     O gaúcho Getúlio Vargas, revolucionário de 30, veio "de fora" ao lado de gente como o convertido ao comunismo Luiz Carlos Prestes. Ambos, além da burguesia e da pequena burguesia ascendentes, trouxeram a questão do trabalho e dos trabalhadores.
   Getúlio, que pertencia a um filão da oligarquia rural, aliou-se  a setores "de dentro", mas surrupiou dos comunistas e socialistas a bandeira do trabalho e criou o "trabalhismo", inspirado em parte no fascismo e também na social democracia européia. Procurou conciliar o empresariado, então ascendente, e a classe trabalhadora, mostrando um traço sociológico característico do populismo. Populismo, aliás, que é uma forma de dominação e não de transformação.
     O trabalhismo foi apenas tolerado pelos  "de dentro" do núcleo férreo da oligarquia dominante. A presença de Getúlio foi combatida com vigor por várias frações oligárquicas, durante décadas. E todos conhecem a história que culminou  no "mar de lama" criado pelos militares e Carlos Lacerda na República golpista do Galeão, com processos investigativos que inspirariam os sumários IPMs da Ditadura Militar, que foi o Estado Novo udenista.
     Após a morte de Getúlio, o bloco dominante "de dentro" , constituído politicamente pela UDN, o oportunista PSD mineiro e vários partidos satélites, não parou de perseguir o caminho do golpe contra qualquer resquício de trabalhismo. Até o liberal Juscelino Kubitschek, ao aliar-se a João Goulart no caminho da presidência e aos militares nacionalistas que impediram o cancelamento de sua posse, foi posto para fora do bloco dos "virtuosos" conservadores brasileiros -- que nada tinham de virtuosos em suas ações entre amigos no interior de seu núcleo.
      O trabalhismo e a tomada de posição pelos trabalhadores passaram a ser o sinal maldito que deixava "de fora" das elites oligárquicas qualquer político ou partido. Por outro lado, os trabalhistas do PTB e alguns do seus aliados circunstanciais,  o populismo ademarista, os comunistas e outros, cuidaram de formar seu próprio bloco. Chegaram ao poder com Jango em meio a uma crise violenta, provocada pelo populista que se aliara aos poderosos "de dentro", Jânio, e que tentou um golpe bonapartista, acima das classes e das diferenças ideológicas. Queria-- megalomaniacamente, diga-se-- ser uma espécie de Nasser ou de Nehru, líderes autoritários "neutralistas" na Guerra Fria. Jânio fracassou porque emitiu uma mensagem ambígua para os "de dentro" e os "de fora" do sistema dominante.
      Quando Lula foi eleito em 2002, acenou com concessões políticas e econômicas para os poderosos, a fim de passar por dócil o seu "novo sindicalismo", uma versão pós-ditadura e pós-modernista do trabalhismo. Lula começou combatendo o peleguismo getulista, estava ,portanto, com autoridade para negociar não só com o patronato, mas com as raposas políticas herdeiras do bloco anti-trabalhista, como os do DEM, do PMDB e -- last but not...-- a nova face da UDN, o PSDB.
      Lula tinha plena consciência de que fariam de tudo para varrê-lo para fora do bloco de poder, assim como sua sucessora, Dilma, pelos mesmos meios da desmoralização e dos IPMs. Agora, ao modo da Nova República.
       A caça a Lula e ao PT  foi adiada uma década em função do sucesso do modelo econômico duplo, de inclusão social e de crescimento econômico, que deixou satisfeitos a burguesia, as multi, os ruralistas e os banqueiros. Somadas às práticas "informais" rotineiras no sistema dos "de dentro", adotadas pelo PT para ser aceito, sobreviver e fazer sua política dupla de mudança e acomodação, o trabalhismo "lulopetista"  (como o chamam seus inimigos) até que tem durado bastante, com manobras cada vez mais conciliatórias.
      O PT aderiu, de várias formas, ao sistema que não o quer e adotou todos os métodos de ação da rotina de relação incestuosa entre poder político e empresariado, sobretudo desde a Ditadura Militar, que, neste sentido, prossegue na Nova República.
      A crise política, agravada por uma crise econômica real e pelo terrorismo econômico do empresariado ameaçado pelas investigações apoiadas por Dilma, que lhes tirou a "imunidade" histórica, chegou ao seu ponto máximo, ao paroxismo. A onda conservadora latino-americana (e norte-americana) que avança contra todos os governos populares da última década empurra ainda mais o governo Dilma para a defensiva na guerra de vida e de morte.
     Nos últimos dias, os combates se aguçaram, Dilma tenta as últimas táticas, chamou Ciro Gomes, mais ativo e agressivo que seus ministros, para se aconselhar e partiu para o ataque contra a tropa de choque de Eduardo Cunha e seu chefe no PMDB, Temer. Não vai ser fácil, a imprensa cuida para não deixar de enfocar as denúncias em Lula e pedir que a classe média participe nas ruas. Mas a população parece enojada também com os métodos dos representantes do bloco hegemônico dos "de dentro", que se tornaram públicos demais. A guerra não é moral, mas política. Só que a classe média está perplexa com o que tem descoberto. Pode estar dividida politicamente por isso.
      O golpe, se consumado, virá por cima partindo  em bloco dos "de dentro" da oligarquia neoliberal, incluída aí a mídia conservadora.Foi como aconteceu no Paraguai, ainda que mais sorrateiramente e nas suas proporções. Nossa oligarquia tem vergonha de seguir o "modelo" do Paraguai -- que dominam, estão imitando e,ao mesmo tempo, desprezam.

    Só não somos parecidos com o Paraguai por termos um movimento social, sindicatos, militâncias e  lideranças no Nordeste suficientemente fortes e grandes para reagir a um golpe...paraguaio. Quem viver, verá.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

UM PAÍS DE DELATORES



                                                               REINALDO LOBO*

       Delator, dedo-duro, traíra, informante, alcagüete, silvério dos reis, colaborador, rato, "snitch" e herói.  Herói?!
        Houve um tempo em que a delação era abjeta, quase um crime dentro do crime, algo de causar vergonha ao seu autor. Era só motivo de punição entre detentos, às vezes, por meio de rápida e simples "execução". Além da condenação moral da sociedade, é claro.
        Foi exageradamente banalizada na cena brasileira atual, de denúncia da corrupção generalizada. Hoje impera um clima  de total falta de confiança, inclusive nas instituições.Como confiar numa Justiça que não investiga quem for da oposição? Como acreditar na imprensa que toma partido e pede ostensivamente que se ignore o resultado das urnas? E numa Polícia Federal que tem alguém que "vende" informações? O governo fez ou não acordo tácito com Eduardo Cunha, aquele que sempre escapa?
       Não se espera mais de nenhum setor uma investigação normal, dentro das regras, mas deve haver inevitavelmente algo "por debaixo dos panos".  A delação já passou de "natural", algo como um jogo necessário,  a uma "ação positiva", quase um feito a ser dignificado. Não é por acaso que se denomina "delação premiada". A palavra é ambígua, designa  uma troca de informações por menos tempo e benefícios na pena,  mas  significa, ao mesmo tempo, um "prêmio".
      O traíra virou herói da "limpeza moral" da nação. O "convertido" em cidadão  exemplar. Um patriota!
      O primeiro grande delator premiado, o ex-deputado Roberto Jefferson, chegou a ser aplaudido nas ruas e restaurantes pelos caçadores de cabeças e mesmo pela opinião pública em sintonia com a imprensa. Não tinha importância que fora apanhado com a boca na botija nos Correios, nem que fosse um ex-apresentador de programa "mundo cão" na TV ("O Povo na TV"), onde houve até gente morrendo ao vivo no palco, por  humilhação e pânico. Era o herói da hora no "Mensalão". Entregou nada menos do que a cabeça do  ex-ministro José Dirceu, que Jefferson imaginava tê-lo cercado na operação dos Correios.
      O Brasil passa por um momento de maccartismo moral.  O quadro tem alguns traços semelhantes com o que aconteceu nos EUA.  A desconfiança,  o dedo-durismo e uma certa paranóia são a tonalidade e o centro da atual crise política.
      Para quem não se lembra, um senador fanático anti-comunista, Joseph McCarthy , dos EUA, inaugurou um período de delação premiada durante a Guerra Fria, que teve o seu auge mais ou menos entre 1947 até quase o final dos anos 50. Qualquer pessoa denunciada como comunista, ou mesmo como simpatizante, poderia ser julgada  traidor da pátria. O FBI , a polícia federal norte-americana, encarregou-se de procurar delatores, e de acusá-los para obter confissões. Procurou-os no meio artístico, nas universidades e onde quer que se imaginasse haver dissidentes. Isso se tornou um meio de vida e uma forma de fazer carreira para muitos cidadãos medíocres nas áreas culturais. Houve muitos suicídios, desemprego e humilhação pública de várias pessoas. O delator, ex-suspeito ou não, não só escapava à prisão como subia na vida e  era exaltado com alguém que estava prestando serviços cívicos.
      Aqui entre nós, temos atualmente  a caça aos corruptos. Em nome da excelência moral, verdadeiros corruptos virtuais ou consagrados apontam com muita facilidade o dedo em direção aos outros. Basta uma suspeita e o nome aparece na lista dos promotores de Justiça e, o que é muito grave, nas páginas da imprensa. Até a pessoa limpar seu nome, já foi investigada, julgada e condenada pela "opinião pública"
    O fanatismo moral pode ser equacionado pela psicanálise como uma espécie de ausência de ego e uma  exclusiva predominância de superego repressivo e impulsos primitivos (como ocorre naqueles jihadistas do terror e nos pastores extremistas de almas). É uma fonte constante de ódio, violência e medo. Também é uma raiz de inúmeras injustiças, muitas delas fatais. A crença moralista vem colada com uma potência destrutiva sem igual.
    A hipocrisia e a mentira fazem parte do quadro. As meias-verdades exaladas pelos fanáticos, assim como as insinuações e a malícia, criam uma espécie de circuito de afetos negativos, do qual faz parte ainda a inveja. Muitos denunciantes da corrupção não participaram da festa e do bolo do dinheiro e poder. Supõem em sua fantasia que foram excluídos, então atacam quem estiver por perto ou se destacando na esfera pública. Queriam estar lá, dividindo o butim.
    Neste momento nacional, o senso de humor é suspeito. Qualquer metáfora, ironia ou observação bem humorada pode ser mal compreendida pelos paladinos da moral. De repente, o Brasil ficou cheio de vestais, muitas delas...corruptas. A ética , para elas, não é uma questão de escolhas, mas de limites estreitos e fixos. Não importa que sejam limites arbitrários, contanto que sejam pertencentes ao seu próprio quadro de valores -- geralmente simplista.
    O maniqueísmo não tolera a complexidade nem a análise compreensiva. Não suporta a ambigüidade das ações humanas. A negação do que não é simples e bidimensional costuma acobertar áreas sinistras da mente individual e, muitas vezes, das multidões uníssonas.
   Não é de surpreender que pessoas com trajetórias no mínimo duvidosas em suas vidas profissionais e pessoais -- carreiristas, malandros , oportunistas e mesmo corruptos explícitos--sejam os primeiros a acusar ou a insinuar.
    Foi considerável o número de pessoas que saíram às ruas nas passeatas moralizadoras na Avenida Paulista e no País inteiro, carregando faixas,  cartazes,  pedindo aos gritos o combate severo à corrupção e , inclusive, a  volta da Ditadura.  Entre elas, havia gente mergulhada até o pescoço nos episódios mais escabrosos de "malfeitos", como se diz . Algumas foram  indiciadas logo após as manifestações, pois recebiam  ou forneciam propinas em seus cargos ou empresas.

    Vivemos uma triste época no País, onde os canalhas não estão só nas manchetes das denúncias, mas se escondem também por trás dos dedos em riste. A cultura do alcagüete-herói pode disseminar-se ao ponto de servir como ideal do ego, exemplo para as novas gerações. Um modelo de cidadania. Quem uma criança vai querer ser quando crescer: Silvério dos Reis?