quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

UM PAÍS DE DELATORES



                                                               REINALDO LOBO*

       Delator, dedo-duro, traíra, informante, alcagüete, silvério dos reis, colaborador, rato, "snitch" e herói.  Herói?!
        Houve um tempo em que a delação era abjeta, quase um crime dentro do crime, algo de causar vergonha ao seu autor. Era só motivo de punição entre detentos, às vezes, por meio de rápida e simples "execução". Além da condenação moral da sociedade, é claro.
        Foi exageradamente banalizada na cena brasileira atual, de denúncia da corrupção generalizada. Hoje impera um clima  de total falta de confiança, inclusive nas instituições.Como confiar numa Justiça que não investiga quem for da oposição? Como acreditar na imprensa que toma partido e pede ostensivamente que se ignore o resultado das urnas? E numa Polícia Federal que tem alguém que "vende" informações? O governo fez ou não acordo tácito com Eduardo Cunha, aquele que sempre escapa?
       Não se espera mais de nenhum setor uma investigação normal, dentro das regras, mas deve haver inevitavelmente algo "por debaixo dos panos".  A delação já passou de "natural", algo como um jogo necessário,  a uma "ação positiva", quase um feito a ser dignificado. Não é por acaso que se denomina "delação premiada". A palavra é ambígua, designa  uma troca de informações por menos tempo e benefícios na pena,  mas  significa, ao mesmo tempo, um "prêmio".
      O traíra virou herói da "limpeza moral" da nação. O "convertido" em cidadão  exemplar. Um patriota!
      O primeiro grande delator premiado, o ex-deputado Roberto Jefferson, chegou a ser aplaudido nas ruas e restaurantes pelos caçadores de cabeças e mesmo pela opinião pública em sintonia com a imprensa. Não tinha importância que fora apanhado com a boca na botija nos Correios, nem que fosse um ex-apresentador de programa "mundo cão" na TV ("O Povo na TV"), onde houve até gente morrendo ao vivo no palco, por  humilhação e pânico. Era o herói da hora no "Mensalão". Entregou nada menos do que a cabeça do  ex-ministro José Dirceu, que Jefferson imaginava tê-lo cercado na operação dos Correios.
      O Brasil passa por um momento de maccartismo moral.  O quadro tem alguns traços semelhantes com o que aconteceu nos EUA.  A desconfiança,  o dedo-durismo e uma certa paranóia são a tonalidade e o centro da atual crise política.
      Para quem não se lembra, um senador fanático anti-comunista, Joseph McCarthy , dos EUA, inaugurou um período de delação premiada durante a Guerra Fria, que teve o seu auge mais ou menos entre 1947 até quase o final dos anos 50. Qualquer pessoa denunciada como comunista, ou mesmo como simpatizante, poderia ser julgada  traidor da pátria. O FBI , a polícia federal norte-americana, encarregou-se de procurar delatores, e de acusá-los para obter confissões. Procurou-os no meio artístico, nas universidades e onde quer que se imaginasse haver dissidentes. Isso se tornou um meio de vida e uma forma de fazer carreira para muitos cidadãos medíocres nas áreas culturais. Houve muitos suicídios, desemprego e humilhação pública de várias pessoas. O delator, ex-suspeito ou não, não só escapava à prisão como subia na vida e  era exaltado com alguém que estava prestando serviços cívicos.
      Aqui entre nós, temos atualmente  a caça aos corruptos. Em nome da excelência moral, verdadeiros corruptos virtuais ou consagrados apontam com muita facilidade o dedo em direção aos outros. Basta uma suspeita e o nome aparece na lista dos promotores de Justiça e, o que é muito grave, nas páginas da imprensa. Até a pessoa limpar seu nome, já foi investigada, julgada e condenada pela "opinião pública"
    O fanatismo moral pode ser equacionado pela psicanálise como uma espécie de ausência de ego e uma  exclusiva predominância de superego repressivo e impulsos primitivos (como ocorre naqueles jihadistas do terror e nos pastores extremistas de almas). É uma fonte constante de ódio, violência e medo. Também é uma raiz de inúmeras injustiças, muitas delas fatais. A crença moralista vem colada com uma potência destrutiva sem igual.
    A hipocrisia e a mentira fazem parte do quadro. As meias-verdades exaladas pelos fanáticos, assim como as insinuações e a malícia, criam uma espécie de circuito de afetos negativos, do qual faz parte ainda a inveja. Muitos denunciantes da corrupção não participaram da festa e do bolo do dinheiro e poder. Supõem em sua fantasia que foram excluídos, então atacam quem estiver por perto ou se destacando na esfera pública. Queriam estar lá, dividindo o butim.
    Neste momento nacional, o senso de humor é suspeito. Qualquer metáfora, ironia ou observação bem humorada pode ser mal compreendida pelos paladinos da moral. De repente, o Brasil ficou cheio de vestais, muitas delas...corruptas. A ética , para elas, não é uma questão de escolhas, mas de limites estreitos e fixos. Não importa que sejam limites arbitrários, contanto que sejam pertencentes ao seu próprio quadro de valores -- geralmente simplista.
    O maniqueísmo não tolera a complexidade nem a análise compreensiva. Não suporta a ambigüidade das ações humanas. A negação do que não é simples e bidimensional costuma acobertar áreas sinistras da mente individual e, muitas vezes, das multidões uníssonas.
   Não é de surpreender que pessoas com trajetórias no mínimo duvidosas em suas vidas profissionais e pessoais -- carreiristas, malandros , oportunistas e mesmo corruptos explícitos--sejam os primeiros a acusar ou a insinuar.
    Foi considerável o número de pessoas que saíram às ruas nas passeatas moralizadoras na Avenida Paulista e no País inteiro, carregando faixas,  cartazes,  pedindo aos gritos o combate severo à corrupção e , inclusive, a  volta da Ditadura.  Entre elas, havia gente mergulhada até o pescoço nos episódios mais escabrosos de "malfeitos", como se diz . Algumas foram  indiciadas logo após as manifestações, pois recebiam  ou forneciam propinas em seus cargos ou empresas.

    Vivemos uma triste época no País, onde os canalhas não estão só nas manchetes das denúncias, mas se escondem também por trás dos dedos em riste. A cultura do alcagüete-herói pode disseminar-se ao ponto de servir como ideal do ego, exemplo para as novas gerações. Um modelo de cidadania. Quem uma criança vai querer ser quando crescer: Silvério dos Reis?

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