REINALDO LOBO*
Delator, dedo-duro, traíra, informante,
alcagüete, silvério dos reis, colaborador, rato, "snitch" e
herói. Herói?!
Houve um tempo em que a delação era abjeta,
quase um crime dentro do crime, algo de causar vergonha ao seu autor. Era só motivo
de punição entre detentos, às vezes, por meio de rápida e simples
"execução". Além da condenação moral da sociedade, é claro.
Foi exageradamente banalizada na cena
brasileira atual, de denúncia da corrupção generalizada. Hoje impera um
clima de total falta de confiança,
inclusive nas instituições.Como confiar numa Justiça que não investiga quem for
da oposição? Como acreditar na imprensa que toma partido e pede ostensivamente
que se ignore o resultado das urnas? E numa Polícia Federal que tem alguém que
"vende" informações? O governo fez ou não acordo tácito com Eduardo
Cunha, aquele que sempre escapa?
Não se espera mais de nenhum setor uma
investigação normal, dentro das regras, mas deve haver inevitavelmente algo
"por debaixo dos panos". A
delação já passou de "natural", algo como um jogo necessário, a uma "ação positiva", quase um feito
a ser dignificado. Não é por acaso que se denomina "delação
premiada". A palavra é ambígua, designa uma troca de informações por menos tempo e
benefícios na pena, mas significa, ao mesmo tempo, um
"prêmio".
O traíra virou herói da "limpeza
moral" da nação. O "convertido" em cidadão exemplar. Um patriota!
O primeiro grande delator premiado, o
ex-deputado Roberto Jefferson, chegou a ser aplaudido nas ruas e restaurantes
pelos caçadores de cabeças e mesmo pela opinião pública em sintonia com a
imprensa. Não tinha importância que fora apanhado com a boca na botija nos
Correios, nem que fosse um ex-apresentador de programa "mundo cão" na
TV ("O Povo na TV"), onde houve até gente morrendo ao vivo no palco,
por humilhação e pânico. Era o herói da
hora no "Mensalão". Entregou nada menos do que a cabeça do ex-ministro José Dirceu, que Jefferson imaginava tê-lo cercado na operação dos
Correios.
O Brasil passa por um momento de
maccartismo moral. O quadro tem alguns
traços semelhantes com o que aconteceu nos EUA.
A desconfiança, o dedo-durismo e
uma certa paranóia são a tonalidade e o centro da atual crise política.
Para quem não se lembra, um senador fanático
anti-comunista, Joseph McCarthy , dos EUA, inaugurou um período de delação
premiada durante a Guerra Fria, que teve o seu auge mais ou menos entre 1947
até quase o final dos anos 50. Qualquer pessoa denunciada como comunista, ou
mesmo como simpatizante, poderia ser julgada
traidor da pátria. O FBI , a polícia federal norte-americana,
encarregou-se de procurar delatores, e de acusá-los para obter confissões. Procurou-os
no meio artístico, nas universidades e onde quer que se imaginasse haver
dissidentes. Isso se tornou um meio de vida e uma forma de fazer carreira para
muitos cidadãos medíocres nas áreas culturais. Houve muitos suicídios,
desemprego e humilhação pública de várias pessoas. O delator, ex-suspeito ou
não, não só escapava à prisão como subia na vida e era exaltado com alguém que estava prestando
serviços cívicos.
Aqui entre nós, temos atualmente a caça aos corruptos. Em nome da excelência
moral, verdadeiros corruptos virtuais ou consagrados apontam com muita
facilidade o dedo em direção aos outros. Basta uma suspeita e o nome aparece na
lista dos promotores de Justiça e, o que é muito grave, nas páginas da imprensa.
Até a pessoa limpar seu nome, já foi investigada, julgada e condenada pela
"opinião pública"
O fanatismo moral pode ser equacionado pela
psicanálise como uma espécie de ausência de ego e uma exclusiva predominância de superego
repressivo e impulsos primitivos (como ocorre naqueles jihadistas do terror e
nos pastores extremistas de almas). É uma fonte constante de ódio, violência e
medo. Também é uma raiz de inúmeras injustiças, muitas delas fatais. A crença
moralista vem colada com uma potência destrutiva sem igual.
A hipocrisia e a mentira fazem parte do
quadro. As meias-verdades exaladas pelos fanáticos, assim como as insinuações e
a malícia, criam uma espécie de circuito de afetos negativos, do qual faz parte
ainda a inveja. Muitos denunciantes da corrupção não participaram da festa e do
bolo do dinheiro e poder. Supõem em sua fantasia que foram excluídos, então
atacam quem estiver por perto ou se destacando na esfera pública. Queriam estar
lá, dividindo o butim.
Neste momento nacional, o senso de humor é
suspeito. Qualquer metáfora, ironia ou observação bem humorada pode ser mal
compreendida pelos paladinos da moral. De repente, o Brasil ficou cheio de
vestais, muitas delas...corruptas. A ética , para elas, não é uma questão de
escolhas, mas de limites estreitos e fixos. Não importa que sejam limites
arbitrários, contanto que sejam pertencentes ao seu próprio quadro de valores
-- geralmente simplista.
O maniqueísmo não tolera a complexidade nem
a análise compreensiva. Não suporta a ambigüidade das ações humanas. A negação
do que não é simples e bidimensional costuma acobertar áreas sinistras da mente
individual e, muitas vezes, das multidões uníssonas.
Não é de surpreender que pessoas com
trajetórias no mínimo duvidosas em suas vidas profissionais e pessoais --
carreiristas, malandros , oportunistas e mesmo corruptos explícitos--sejam os
primeiros a acusar ou a insinuar.
Foi
considerável o número de pessoas que saíram às ruas nas passeatas moralizadoras
na Avenida Paulista e no País inteiro, carregando faixas, cartazes, pedindo aos gritos o combate severo à
corrupção e , inclusive, a volta da
Ditadura. Entre elas, havia gente
mergulhada até o pescoço nos episódios mais escabrosos de
"malfeitos", como se diz . Algumas foram indiciadas logo após as manifestações, pois
recebiam ou forneciam propinas em seus
cargos ou empresas.
Vivemos uma triste época no País, onde os
canalhas não estão só nas manchetes das denúncias, mas se escondem também por
trás dos dedos em riste. A cultura do alcagüete-herói pode disseminar-se ao
ponto de servir como ideal do ego, exemplo para as novas gerações. Um modelo de
cidadania. Quem uma criança vai querer ser quando crescer: Silvério dos Reis?
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