sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O CHARME CONSERVADOR

                             
                                    
                                                         Reinaldo Lobo
        O pensamento conservador namorou o autoritarismo fascista durante o século XX. Agora também. Mas é mais um flerte distraído, um jogo cheio de disfarces. A direita está pop e se pretende pós-moderna, faz-se passar por democrática, mas seus argumentos, seus truques dialéticos expressam o fundo de sua ideologia, sempre o mesmo.
        O truque mais frequente é parecer que representa as Luzes contra a escuridão da barbárie. Todos os que não compartilham suas doutrinas estão mancomunados com o terrorismo muçulmano ou com o totalitarismo que afundou com a União Soviética. Os mesmos intelectuais que justificam as ditaduras militares dos anos 60/70/80 na América Latina, hoje denunciam qualquer elevação de impostos ou medida estatal como “totalitária”.
      O pensamento conservador quer passar por tolerante e chama as cotas para o resgate da opressão racista de...racismo ao contrário. A defesa do meio ambiente, a ecologia, o feminismo, o ensino de Marx ou de Foucault nas escolas são formas de controle, de constrangimento das mentes e tecnologia de imposição de valores à sociedade.
      Alguns intelectuais que nunca protestaram contra a proibição de livros “subversivos”, a expulsão de professores de suas escolas, a tortura e a morte de estudantes sob o autoritarismo, são os atuais paladinos do “livre pensar”.
      Não enganam ninguém. O seu pensamento revela cinismo. Seus ídolos são os filósofos mais pessimistas, como Cioran, e “pós modernos”, como John Gray, para os quais a “natureza humana” é uma causa perdida e não existiria o progresso histórico. Não se dão ao trabalho sequer de reivindicar Hobbes, cuja obra é mais complexa do que parece aos ideólogos desse tipo e que já foi usada no passado, contudo, para justificar o poder discricionário do Estado.
     Para os conservadores, a “natureza humana” --se é que isso existe--, é invariavelmente egoísta, violenta, incapaz de incluir o outro, belicista, entregue a impulsos inconfessáveis e assassinos. Os ideólogos nazistas tinham essa visão negativa, daí idealizarem um “guerreiro” que subjugaria os perdedores dessa luta sem trégua pela supremacia. O modelo de ser humano desses pessimistas é o do individualista sedento por lucro, preocupado com a competição e o sucesso. O resto é “utopia”.
     Poderão perguntar: Freud não pensava assim? Não. A psicanálise não pode ser usada nesse sentido unidimensional e redutor, por ignorância ou deformação. Freud falava de conflitos subjacentes aos seres humanos, de amor, de ódio, de gula e contenção, de narcisismo e social-ismo, que não se resolveriam numa só direção e nem se limitariam a uma expressão automática de uma “natureza humana” caricatural.
    Quando esses ideólogos citam Freud e a psicanálise em geral é para mutilá-la em benefício da manutenção de um esquema que se pretende baseado na rivalidade e competição. A figura humana que traçam é a de um indivíduo cobiçoso e invejoso, frequentemente projetada fora e identificada com o adversário, isto é, com aquele que critica o capitalismo.
    O sonho do operário tem de ser invariavelmente o de se tornar um capitalista. E um socialista seria, na melhor hipótese, um iludido e, na pior, um candidato a ganhar dinheiro e poder.
   O pensamento conservador vê a sociedade organizada apenas por idéias e qualidades abstratas. Assim, quando alguém propõe uma crítica da própria sociedade é porque quer controlá-la ou destruí-la. Não é por acaso que fascistas e totalitários em geral queimam e proíbem livros. Acreditam que neles está tudo o que determina a vida social e política. Com esse fetiche das idéias, homenageiam involuntariamente os autores. É que desprezam a prática e não enxergam nada no trabalho, na vida  material e na estrutura econômica de uma sociedade que possa ser basicamente determinante.
    Os conservadores atuais são contra qualquer controle legal ou moral das ações que possam ferir a natureza ou mesmo os seres humanos. Impedir a discriminação, por exemplo, seria para eles, uma forma impositiva de atitude controladora. Impedir pela lei que os homens batam nas mulheres ou que homossexuais sejam ameaçados, constituiria uma forma de totalitarismo e de intolerância.
    Essa inversão dialética proposta pelos conservadores ignora que a democracia, desde a Grécia antiga, é o regime da limitação. Regula e limita o poder, as instâncias e as ações. Democracia significa autogoverno e este impõe a si mesmo limites. É por isso que a direita não entende que é preciso impedir a liberalidade de bater numa mulher ou de escravizar alguém mais frágil, seja por raça, nacionalidade ou circunstância.
   O filósofo Cioran sugeria que não há determinações livres de contingências, isto é, azares do acaso, mas é possível perguntar: alguém pode ser humilhado, preso ou torturado pela contingência de ter nascido com a cor, a religião ou a sexualidade errada?

    A democracia exige no mínimo, se não uma moral particular, o respeito público à lei.

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