Reinaldo Lobo*
O fanático é um virtuoso. Moralmente
perfeito, um puro. Não quer saber de contaminação. Está acima do mal, é
portador exclusivo do bem. Conhece a verdade, anda de nariz para o alto. Só
disfarça quando teme que descubram suas certezas mais secretas. Sério,
extremamente sério, não brinca. No máximo, é sarcástico com as falhas e
fraquezas alheias. Condena o outro com muita facilidade, não tolera deslizes.
Apresenta-se como juiz da humanidade. É um forte candidato ao terrorismo.
Nos anos 70, vários jovens assim pareciam
livres e soltos, mas continham uma crença na purificação geral e foram parar
nas Brigadas Vermelhas, nos Baader Meinhoff, no Setembro Negro e outros grupos.
Conheci nessa época um casal que tinha a meta de educar ele próprio os filhos
em casa, sem contato com as escolas instituídas, sem tomar Coca Cola ou
assistir TV. Não conseguiram realizar sua utopia, é claro. Hoje, suprema
ironia, um membro da dupla está na extrema direita, ostentando o mesmo brilho
fanático, sangue nos olhos e a mesma superioridade ética e crítica dos tempos
de esquerda guerrilheira.
O fanatismo provoca exclusão entre
extremos e estreiteza. Acho que uma boa receita de antídoto contra essa doença
arrogante é fornecida por Amós Oz, esse excelente escritor israelense que já
deveria ter levado o Prêmio Nobel, no seu livro recente, que acaba de ser
traduzido pela Companhias das Letras: “Como Curar Um Fanático”.
Dono de uma escrita fina e superior, de um
senso de humor e de uma compaixão pelos seres humanos raros hoje em dia, esse
sabra que passeia às quatro da manhã pelo deserto para curar as feridas
causadas por uma era de terror e incompreensão, ri quando ouve verdades
definitivas ditas por políticos de extrema direita em Israel ou líderes
palestinos cegos pela crendice.
Ri silenciosamente, diz ele, “como as
pedras do deserto e as estrelas sobre o parque da cidade” quando um político
usa palavras do tipo “para todo o sempre”, “por toda a eternidade”, “jamais, em
um milhão de anos”, para descrever a percepção tola que tem do tempo.
Esse é um modelo de linguagem e de visão
generalizante, messiânica, que conduz ao fanatismo. Amós Oz propõe que se pare
de falar em “guerra santa” para descrever o conflito entre israelenses e
palestinos. Sugere que os dois lados se sentem a uma mesa para resolver a
simples “questão imobiliária” que divide a região. Sim, porque o problema na
Palestina é uma questão imobiliária, ainda que recheada de significados
históricos, políticos e religiosos.
O
mais difícil é remover o vocabulário e seus significados inflacionados, a não
ser que se mude a percepção e a perspectiva.
Para que qualquer solução seja possível é preciso um movimento psíquico
de ambos os lados, que consiste em se perguntar o que o outro pensa e deseja,
colocar-se no lugar do outro, na pele do outro.
É impossível não se identificar com os argumentos
humanos de Oz, ao afirmar: quando, depois do passeio matinal no deserto, “volto
para casa, ainda antes do nascer do sol, preparo uma xícara de café, sento à
minha escrivaninha e começo a me fazer perguntas. Não pergunto a que ponto está
chegando o mundo, ou qual será o caminho certo a seguir. Eu me pergunto: “E se
eu fosse ele? E se eu fosse ela? O que sentiria, desejaria, temeria e
esperaria? Do que teria vergonha,
esperando que ninguém jamais soubesse? ”
Para curar um fanático, sustenta ele, é
necessário começar se colocando no lugar dele, considerar o outro como um
igual, conhecer seus desejos e necessidades.
Pessoalmente, identifico-me bastante com
Oz, guardadas as devidas proporções, quando escreve:
“Meu trabalho consiste em me pôr no
lugar de muitas pessoas. Ou mesmo estar em suas peles. A força que me impele é
a curiosidade. Eu fui uma criança curiosa. Quase toda criança é curiosa. Mas
pouca gente continua curiosa em sua idade adulta e em sua velhice. Agora, todos
sabemos que a curiosidade é condição necessária, até mesmo a primeira das
condições, para todo trabalho intelectual ou científico. Mas quero acrescentar
que em minha opinião a curiosidade também é uma virtude moral. Uma pessoa
interessada é uma pessoa um pouco melhor, um progenitor melhor, um parceiro,
vizinho e colega melhor do que uma pessoa não curiosa. Um amante melhor
também”.
Ao situar a curiosidade como um valor
ético, Oz está apresentando o primeiro antídoto contra o fanatismo. O segundo
melhor remédio é o humor. Fanáticos não possuem senso de humor e raramente são
curiosos. O humor destrói as estruturas do fanatismo, e a curiosidade, diz ele,
agride o fanatismo “ao trazer à baila o risco da aventura, questionando, e às
vezes até descobrindo que suas próprias respostas estão erradas”.
Ele sugere algo que vale não só para os
indivíduos, mas para a sociedade. Sociedades alegres e curiosas podem ser menos
fanáticas do que sistemas fechados e sisudos, geralmente baseados em crenças.
As ditaduras não têm senso de humor. Basta
verificar como funcionam as extremas direitas, daquelas dos tempos de Pinochet,
o nazismo, os regimes dos aiatolás, o Estado Islâmico e as ortodoxias.
Comparem o clima “decadente” das democracias
europeias, por exemplo, com a Coréia do Norte. O humorismo dos ditadores é
involuntário. São ridículos em sua prepotência. Chaplin ajudou os Aliados a
ganharem a Segunda Guerra ao pintar com seu humor cheio de humanismo o regime e
a personalidade de Hitler, desmontando-os com mais eficácia do que qualquer
discurso ideológico.
O pensar, que está aliado obviamente à
curiosidade, deve ser acrescentado aos antídotos contra o fanatismo. A
racionalidade, que instaura as dúvidas, não deve ser desprezada como um remédio
eficiente. Um bom raciocínio ofende, dizia Stendhal. Os arrogantes e estúpidos
se irritam com o pensamento, mas sucumbem diante dele. Podem ser conduzidos a
uma maior flexibilidade e a soluções negociadas para situações que parecem
extremas e impossíveis de compromisso.
O Brasil assiste neste momento a uma
ascensão do fanático. Ele cresce com a onda de moralismo e de radicalização que
vem com essa guerra jurídica pela limpeza política. A imitação cabocla da
Operação Mãos Limpas italiana traz com ela, além de alguns atos de justiça, a
figura do fanático vingador e perseguidor. O País está cheio de vestais e de almas
puras. Esse é um ovo da serpente.
Até a Bíblia nos adverte contra a “ira
dos justos”, pois é a pior de todas. A Inquisição da própria Igreja, a caça às
bruxas, o macarthismo foram momentos históricos que tiveram os seus Savonarolas
da superioridade moral e da seriedade. Todos escondiam propósitos de poder puro
e simples. Desconfio que, às notícias das gazetas sensacionalistas e às sentenças
dos juízes da honra alheia, seja preferível ler o heterodoxo Amós Oz.
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