Reinaldo Lobo
Uma interpretação psicanalítica clássica
bastante frequente sobre o ódio que muitas pessoas sentem em relação à
homossexualidade afirma que elas têm um desejo homossexual latente,
inconsciente. Projetam e identificam no outro o seu próprio impulso proibido,
passam a rejeitar ou a temer defensivamente essa pessoa rotulada. Isso é
verdade em muitos casos encontrados na clínica e na vida. Mas a explicação não
esgota o assunto e exclui aspectos mais amplos.
As raízes do ódio homofóbico parecem
estar em duas fontes principais, uma individual e outra social. Tudo indica que
uma reforça a outra. A primeira é bastante profunda: é a tendência fundamental
da mente a rejeitar e, assim, odiar o que não é ela mesma. A segunda é uma lei
quase férrea das instituições sociais para o seu “fechamento”, isto é, em torno
de seus valores ou das significações imaginárias que sustentam e buscam impor a
todos os seus membros.
Há uma onipotência nos inícios da psique,
no mais arcaico, que é constitutiva dos seres humanos e que permanece ativa ao
longo de toda nossa vida, em maior ou menor escala nas várias pessoas. Essa
onipotência não pode ser ameaçada por aquilo que lhe parece diferente ou
alheio. A inclinação é rejeitar ou anexar como seu o que soa “estranho” ou
“estrangeiro”.
Quando surge esse “outro”, que pode ser um comportamento
ou mesmo um ser humano semelhante cuja presença ameaça a nossa estabilidade
perceptiva, então a reação pode variar da mais radical intolerância a uma
readaptação necessária da própria percepção. Do ponto de vista psíquico e
identitário, essa é a mesma base do racismo e da xenofobia.
A explicação disso é um pouco paradoxal,
complexa, mas fácil de entender. “O ódio é mais velho que o amor”, dizia Freud.
Isso é verdadeiro quando falamos do amor no sentido da relação habitual, como
se diz tecnicamente em psicanálise, o “amor de objeto”. No entanto, o ódio não
é mais velho do que um tipo de amor primitivo, originário do próprio “Eu”, que
costuma ser chamado de modo inadequado de “narcisismo primário”. É o fechamento
“representacional” “afetivo” e “desejante” em si mesma da cápsula psíquica
original. Freud viu esse fechamento em si mesmo do sujeito humano. Usou o termo
“autismo”, tomado de Bleuler, para designá-lo. Comparou esse estado primário autocentrado
do ser humano, incluindo a função alimentadora da mãe, a um ovo de pássaro.
Esse fechamento é o que se transforma
para a mente, no dizer do filósofo e psicanalista Cornelius Castoriadis, na
matriz do sentido. Sentido do pensar, das coisas, da vida. Explicando melhor, é
aquilo que o núcleo da psique “compreenderá” ou tomará em “consideração” daí em
diante, e para sempre, é esse estado tendente ao “unitário”, no qual “sujeito”
e “objeto” são idênticos e desejos, representação e afetos são a mesma e única
coisa. Desejo é, afinal, representação (posse psíquica) do desejado e, pois,
afeto de prazer – que é a forma mais pura e mais poderosa de onipotência do
pensamento. Esse é o sentido que a mente sempre buscará e que nunca poderá ser
atingido no mundo real. Seus substitutos serão mágicos e místicos, crenças
fanáticas e radicais.
O ódio homofóbico parece ser,
portanto, a reação de uma mente temporária ou permanentemente regredida,
primitiva, investida “narcisicamente”, a uma ameaça contra a sua economia
interna. Essa presença agride seu equilíbrio, muitas vezes precário, provocado
pelo que é diferente, novo e difícil de ser pensado ou de se atribuir um
sentido conhecido. A homossexualidade para um indivíduo cuja identidade está
definida como heterossexual é uma ameaça à sua segurança, se não puder dar um
sentido pensado à própria percepção do que vê, sente ou ouve. De certo modo, é
uma espécie de queda da sua cidadela, constituída pela afirmação de sua
identidade, tida como unívoca e certa.
Assim como o ódio racista pode ser
uma defesa contra a perda de parâmetros do sujeito e a sua simultânea afirmação
da própria identidade, a hostilidade homofóbica pretende ser uma afirmação do
indivíduo heterossexual. Não é feita pela via do pensamento e da reflexão, mas
por meio de recursos primários e reativos. Nestas condições, geralmente falha e
se torna violência explícita.
A relação entre a fonte psíquica do
ódio e a social é fácil de compreender. No caso do ódio homofóbico, como em
vários outros, é o processo de socialização imposto à mente, por meio do qual é
obrigada a aceitar a sociedade , seus valores dominantes e a “realidade”, desde
que a sociedade forneça o “sentido” do
qual a psique necessita e demanda. A socialização se baseia na necessidade
biológica, como a fome, mas também na de sentido. Ser socializado significa
incorporar os valores, os mitos, as crenças, as ideologias de uma determinada
organização social. Karl Manheinn, o sociólogo estudioso da ideologia, dizia
que todo indivíduo possui dentro de sua mente, consciente ou não, um esqueleto
representativo da sociedade em que vive.
Há uma violência ética na socialização humana
em que certos tipos de conduta são aceitos e outros não. Quando aparece uma
forma “mutante” ou “aberrante” de conduta, ela é rejeitada até acabar, ou não,
por ser incorporada ao corpo identitário da sociedade. Até há pouco tempo, o
casamento entre pessoas do mesmo sexo era considerado “estrangeiro” ao corpo
social e, em certa medida ainda é, mas já foi incorporado juridicamente em
vários países e lugares. Foi um avanço resultante dos movimentos LGBT e de
camadas mais esclarecidas e pensantes das respectivas sociedades.
Por todas essas dimensões do fenômeno
do ódio homofóbico -- que pode ser considerado uma patologia social do
reconhecimento humano, uma espécie de inaceitação terrorista do outro e que
contém uma tal violência ética que chega a ser uma ameaça à evolução social--,
ele não pode ser reduzido a uma simples somatória de casos individuais de
defesa em face de uma homossexualidade latente.
A ideia de reduzir a homofobia a uma
defesa individual tem o inconveniente de conter uma armadilha perigosa, pois
aponta como a causa eficiente desse ódio a própria ... homossexualidade.
Em outras palavras carregadas de carga
moral, a culpa pela rejeição à homossexualidade estaria no desejo implícito
nela mesma.
Ora,
a pergunta essencial é: quem decretou para as sociedades que o desejo por
alguém do mesmo sexo seria, em si mesmo, perigoso?
Foram
elas próprias as autoras do decreto e podem mudar, tornando-se mais tolerantes
à diversidade.