quarta-feira, 22 de junho de 2016

ÓDIO E HOMOFOBIA


                                                          Reinaldo Lobo

       Uma interpretação psicanalítica clássica bastante frequente sobre o ódio que muitas pessoas sentem em relação à homossexualidade afirma que elas têm um desejo homossexual latente, inconsciente. Projetam e identificam no outro o seu próprio impulso proibido, passam a rejeitar ou a temer defensivamente essa pessoa rotulada. Isso é verdade em muitos casos encontrados na clínica e na vida. Mas a explicação não esgota o assunto e exclui aspectos mais amplos.
       As raízes do ódio homofóbico parecem estar em duas fontes principais, uma individual e outra social. Tudo indica que uma reforça a outra. A primeira é bastante profunda: é a tendência fundamental da mente a rejeitar e, assim, odiar o que não é ela mesma. A segunda é uma lei quase férrea das instituições sociais para o seu “fechamento”, isto é, em torno de seus valores ou das significações imaginárias que sustentam e buscam impor a todos os seus membros.
     Há uma onipotência nos inícios da psique, no mais arcaico, que é constitutiva dos seres humanos e que permanece ativa ao longo de toda nossa vida, em maior ou menor escala nas várias pessoas. Essa onipotência não pode ser ameaçada por aquilo que lhe parece diferente ou alheio. A inclinação é rejeitar ou anexar como seu o que soa “estranho” ou “estrangeiro”.
     Quando surge esse “outro”, que pode ser um comportamento ou mesmo um ser humano semelhante cuja presença ameaça a nossa estabilidade perceptiva, então a reação pode variar da mais radical intolerância a uma readaptação necessária da própria percepção. Do ponto de vista psíquico e identitário, essa é a mesma base do racismo e da xenofobia. 
     A explicação disso é um pouco paradoxal, complexa, mas fácil de entender. “O ódio é mais velho que o amor”, dizia Freud. Isso é verdadeiro quando falamos do amor no sentido da relação habitual, como se diz tecnicamente em psicanálise, o “amor de objeto”. No entanto, o ódio não é mais velho do que um tipo de amor primitivo, originário do próprio “Eu”, que costuma ser chamado de modo inadequado de “narcisismo primário”. É o fechamento “representacional” “afetivo” e “desejante” em si mesma da cápsula psíquica original. Freud viu esse fechamento em si mesmo do sujeito humano. Usou o termo “autismo”, tomado de Bleuler, para designá-lo. Comparou esse estado primário autocentrado do ser humano, incluindo a função alimentadora da mãe, a um ovo de pássaro.
         Esse fechamento é o que se transforma para a mente, no dizer do filósofo e psicanalista Cornelius Castoriadis, na matriz do sentido. Sentido do pensar, das coisas, da vida. Explicando melhor, é aquilo que o núcleo da psique “compreenderá” ou tomará em “consideração” daí em diante, e para sempre, é esse estado tendente ao “unitário”, no qual “sujeito” e “objeto” são idênticos e desejos, representação e afetos são a mesma e única coisa. Desejo é, afinal, representação (posse psíquica) do desejado e, pois, afeto de prazer – que é a forma mais pura e mais poderosa de onipotência do pensamento. Esse é o sentido que a mente sempre buscará e que nunca poderá ser atingido no mundo real. Seus substitutos serão mágicos e místicos, crenças fanáticas e radicais.
          O ódio homofóbico parece ser, portanto, a reação de uma mente temporária ou permanentemente regredida, primitiva, investida “narcisicamente”, a uma ameaça contra a sua economia interna. Essa presença agride seu equilíbrio, muitas vezes precário, provocado pelo que é diferente, novo e difícil de ser pensado ou de se atribuir um sentido conhecido. A homossexualidade para um indivíduo cuja identidade está definida como heterossexual é uma ameaça à sua segurança, se não puder dar um sentido pensado à própria percepção do que vê, sente ou ouve. De certo modo, é uma espécie de queda da sua cidadela, constituída pela afirmação de sua identidade, tida como unívoca e certa.
           Assim como o ódio racista pode ser uma defesa contra a perda de parâmetros do sujeito e a sua simultânea afirmação da própria identidade, a hostilidade homofóbica pretende ser uma afirmação do indivíduo heterossexual. Não é feita pela via do pensamento e da reflexão, mas por meio de recursos primários e reativos. Nestas condições, geralmente falha e se torna violência explícita.
          A relação entre a fonte psíquica do ódio e a social é fácil de compreender. No caso do ódio homofóbico, como em vários outros, é o processo de socialização imposto à mente, por meio do qual é obrigada a aceitar a sociedade , seus valores dominantes e a “realidade”, desde que a sociedade forneça o  “sentido” do qual a psique necessita e demanda. A socialização se baseia na necessidade biológica, como a fome, mas também na de sentido. Ser socializado significa incorporar os valores, os mitos, as crenças, as ideologias de uma determinada organização social. Karl Manheinn, o sociólogo estudioso da ideologia, dizia que todo indivíduo possui dentro de sua mente, consciente ou não, um esqueleto representativo da sociedade em que vive.
        Há uma violência ética na socialização humana em que certos tipos de conduta são aceitos e outros não. Quando aparece uma forma “mutante” ou “aberrante” de conduta, ela é rejeitada até acabar, ou não, por ser incorporada ao corpo identitário da sociedade. Até há pouco tempo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo era considerado “estrangeiro” ao corpo social e, em certa medida ainda é, mas já foi incorporado juridicamente em vários países e lugares. Foi um avanço resultante dos movimentos LGBT e de camadas mais esclarecidas e pensantes das respectivas sociedades.
         Por todas essas dimensões do fenômeno do ódio homofóbico -- que pode ser considerado uma patologia social do reconhecimento humano, uma espécie de inaceitação terrorista do outro e que contém uma tal violência ética que chega a ser uma ameaça à evolução social--, ele não pode ser reduzido a uma simples somatória de casos individuais de defesa em face de uma homossexualidade latente.
       A ideia de reduzir a homofobia a uma defesa individual tem o inconveniente de conter uma armadilha perigosa, pois aponta como a causa eficiente desse ódio a própria ... homossexualidade.
      Em outras palavras carregadas de carga moral, a culpa pela rejeição à homossexualidade estaria no desejo implícito nela mesma.
     Ora, a pergunta essencial é: quem decretou para as sociedades que o desejo por alguém do mesmo sexo seria, em si mesmo, perigoso? 

    Foram elas próprias as autoras do decreto e podem mudar, tornando-se mais tolerantes à diversidade. 

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