Reinaldo Lobo*
A inquieta câmera cinematográfica nos
coloca dentro do campo de concentração de Auschwitz, em 1944. Enfocando o rosto
e as costas de Saul marcadas com um X, tendo silhuetas e ruídos aterradores
como um pano de fundo levemente difuso, nós acompanhamos a personagem em sua atividade
mecânica de morto-vivo dentro da fábrica da morte.
O
movimento da câmera faz com que sintamos a náusea e o horror ao acompanhar os
gestos do judeu Saul Aüslander, identificados com ele em sua atividade como um
dos membros do “Sonderkommando”, na sua rotina de executar as tarefas mais
terríveis e sujas do campo, evitadas pelos alemães. A sua função era limpar as
câmaras de gás, recolher as roupas e “processar” os corpos dos mortos. A equipe
era selecionada entre os que chegavam nos comboios e, por saber o “segredo” da
extinção de milhares de pessoas, seus próprios membros eram assassinados após alguns
meses de uso.
A técnica de filmagem de “O Filho de
Saul”, fazendo-nos perambular dentro do campo, experimentando tudo pelos olhos
e ouvidos da personagem na fase de maior matança nazista, lembra muito a
adotada pelo grupo dinamarquês Dogma 95, dos diretores Lars von Trier e Thomas
Vintenberg. Como eles, o diretor húngaro Lazlo Nemes conduz o espectador, pela
mobilidade da filmagem, aos limites mais assustadores da condição humana. Ao
ponto de chegar quase à desumanização e à condição robótica imposta pelo terror
e a maldade. Não há o espetáculo obsceno dos detalhes da morte, mas existem os funestos
e nítidos sinais dela.
Digo “quase” porque Saul, imerso na
brutal ausência de representação, ressuscita para o simbólico quando, no
trabalho num dos crematórios, reconhece ou assume como seu filho morto um
menino prestes a ser submetido a uma autópsia e depois cremado. A partir daí
luta desesperadamente para enterrar clandestinamente o garoto numa cerimônia
judaica, o Kadish. Sua busca interminável inclui achar um rabino entre os
condenados à morte.
A frenética e apavorante trajetória para
realizar a consagração religiosa constitui a restauração do significado humano.
Sair do estado de morto pela via simbólica.
Há uma cena expressiva em que Saul é
advertido por um outro “Sonderkommando” de que insistir em enterrar o menino
seria o mesmo que ser apanhado e morto. Saul responde: “Já estamos todos
mortos! ”
A semelhança com os filmes de Lars Von
Trier e Vintenberg não tira nada do brilho dessa obra extraordinária de 2015,
primeiro longa-metragem do diretor Nemes. O filme tem uma força de denúncia não
só capaz de obter os prêmios mais cobiçados em Cannes e a indicação ao Oscar de
2016, mas também de destaque entre todas as principais realizações sobre o
Holocausto, como Kapó” (1961), do italiano Gillo Pontecorvo, o magnífico
“Shoah” (1985), do francês Claude Lanzman e “A lista de Schindler” (1993), do
norte-americano Steven Spielberg.
Pode-se
dizer que “O Filho de Saul” é o mais impactante e o mais original de todos os
filmes sobre o assunto. Uma obra como essa acontece só de vez em quando. O
filósofo Theodor Adorno disse uma vez que, depois do Holocausto, a poesia e a
arte não seriam mais possíveis. O evento seria irrepresentável, como chama a
atenção a crítica de cinema Ilana Feldman. Há, sem dúvida uma dimensão difícil
de representar na grande tragédia histórica, mas o vaticínio retórico de Adorno
é desmentido pela reflexividade da arte -- neste caso como nos exemplos dos
filmes anteriores, ou de escritores como o italiano Primo Levi ou o espanhol
Jorge Semprun.
Depois de assistir a “O Filho de Saul”
uma pergunta é inevitável: como é possível que ainda existam neonazistas e
fascistas no planeta, ao ponto de quase vencerem as eleições na Áustria há
alguns dias e de o neofascismo deter cerca de 40% das intenções de voto na
França?
Não é um fenômeno apenas europeu, como
nos lembra reportagem recente da revista “Carta Capital”. Aparece até ---
pasmem! — em Israel, onde o general Yair Golan, vice-chefe do Estado Maior, advertiu
no dia israelense de lembrança do Holocausto (5 de maio) que vê em seu país
sinais evidentes das mesmas “tendências revoltantes” da Alemanha dos anos 30.
Neonazismo em Israel? Sim, é bem
possível. A extrema direita ligada a Benjamin Netanyahu alimenta-se do
militarismo e do temor extremo em relação aos palestinos e árabes. Também criou
o seu “bode expiatório”, o fundamentalista islâmico, assim como os terroristas
muçulmanos o criaram em relação à figura odiada do “sionista”.
Não custa lembrar que já houve
historicamente uma tendência fascista dentro do movimento judaico, antes e nos
inícios da constituição do Estado de Israel, liderada pelo radical Jabotinsky e
por Menahen Begin, cujas milícias faziam a saudação com braço erguido à moda
mussolinista e hitlerista.
Não é a simples ignorância histórica o
que faz reviver o nazi-fascismo. A onda de direita que avassala o mundo revela,
isto sim, a crise das significações imaginárias na sociedade contemporânea,
afetadas pelo consumo e o espetáculo. O espetáculo a que nos referimos é a
exibição da própria alienação. Podemos falar de uma espécie de cisão, de
autoengano e de “emburrecimento” atuais.
A estupidez nazista retorna pela
superficialização da vida e pelo temor de sermos destruídos pelo outro, seja
ele muçulmano, refugiado do mundo subdesenvolvido, de raça ou cultura diferente.
Existe hoje um mundo fragmentado,
falsificado, pelo espetacular. O espetáculo é o sequestro da vida e a divisão
do mundo em realidade e imagem. Há uma simplificação grosseira entre “eles e
nós”. Existe um distanciamento do curso da realidade histórica. É como se
vivêssemos num eterno presente de gozo ou de dor.
A banalização ou o fetiche das imagens na
mídia, inclusive da morte, leva a uma contemplação passiva e robotizante, onde
os vivos podem parecer mortos e os mortos vivos. Não é por acaso que zumbis e “walking
deads” povoem a cultura pop e o imaginário das massas.
Muitos acreditam que o neonazismo é
resultado direto de crises econômicas, como causas automáticas, ou como se
vivêssemos situação idêntica aos anos 30. Isso é verdadeiro até certo ponto.
Tem havido crises sucessivas em escala mundial, além de ameaças bélicas. Mas
nossa época é diferente e passa por essa sociedade da insignificância, onde os
prisioneiros das coisas e do consumo estão perdendo a vida nas ruas, num
cotidiano vazio de sentido, nas prisões e mesmo sob o terrorismo. É como se
existissem muitos ”filhos de Saul” a serem resgatados da anomia e da
in--significância.
Somos constrangidos até à perda do
simbólico, pela ausência de mediação entre as coisas e o seu sentido. Estamos
hoje também bombardeados por uma propaganda enganosa que faria inveja a
Goebbels. Vários sinais indicam que há um caldo de cultura facilitador do ódio,
do preconceito, da violência e da estupidez.
O neonazismo oferece um falso conjunto de
símbolos para quem perdeu as significações humanas, alienou-se passivamente ou
está sob o domínio do medo.
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