quarta-feira, 8 de junho de 2016

OS MUITOS FILHOS DE SAUL


                                                                                Reinaldo Lobo*
        A inquieta câmera cinematográfica nos coloca dentro do campo de concentração de Auschwitz, em 1944. Enfocando o rosto e as costas de Saul marcadas com um X, tendo silhuetas e ruídos aterradores como um pano de fundo levemente difuso, nós acompanhamos a personagem em sua atividade mecânica de morto-vivo dentro da fábrica da morte.
       O movimento da câmera faz com que sintamos a náusea e o horror ao acompanhar os gestos do judeu Saul Aüslander, identificados com ele em sua atividade como um dos membros do “Sonderkommando”, na sua rotina de executar as tarefas mais terríveis e sujas do campo, evitadas pelos alemães. A sua função era limpar as câmaras de gás, recolher as roupas e “processar” os corpos dos mortos. A equipe era selecionada entre os que chegavam nos comboios e, por saber o “segredo” da extinção de milhares de pessoas, seus próprios membros eram assassinados após alguns meses de uso.
       A técnica de filmagem de “O Filho de Saul”, fazendo-nos perambular dentro do campo, experimentando tudo pelos olhos e ouvidos da personagem na fase de maior matança nazista, lembra muito a adotada pelo grupo dinamarquês Dogma 95, dos diretores Lars von Trier e Thomas Vintenberg. Como eles, o diretor húngaro Lazlo Nemes conduz o espectador, pela mobilidade da filmagem, aos limites mais assustadores da condição humana. Ao ponto de chegar quase à desumanização e à condição robótica imposta pelo terror e a maldade. Não há o espetáculo obsceno dos detalhes da morte, mas existem os funestos e nítidos sinais dela.
        Digo “quase” porque Saul, imerso na brutal ausência de representação, ressuscita para o simbólico quando, no trabalho num dos crematórios, reconhece ou assume como seu filho morto um menino prestes a ser submetido a uma autópsia e depois cremado. A partir daí luta desesperadamente para enterrar clandestinamente o garoto numa cerimônia judaica, o Kadish. Sua busca interminável inclui achar um rabino entre os condenados à morte.
      A frenética e apavorante trajetória para realizar a consagração religiosa constitui a restauração do significado humano. Sair do estado de morto pela via simbólica.
        Há uma cena expressiva em que Saul é advertido por um outro “Sonderkommando” de que insistir em enterrar o menino seria o mesmo que ser apanhado e morto. Saul responde: “Já estamos todos mortos! ”
        A semelhança com os filmes de Lars Von Trier e Vintenberg não tira nada do brilho dessa obra extraordinária de 2015, primeiro longa-metragem do diretor Nemes. O filme tem uma força de denúncia não só capaz de obter os prêmios mais cobiçados em Cannes e a indicação ao Oscar de 2016, mas também de destaque entre todas as principais realizações sobre o Holocausto, como Kapó” (1961), do italiano Gillo Pontecorvo, o magnífico “Shoah” (1985), do francês Claude Lanzman e “A lista de Schindler” (1993), do norte-americano Steven Spielberg.
      Pode-se dizer que “O Filho de Saul” é o mais impactante e o mais original de todos os filmes sobre o assunto. Uma obra como essa acontece só de vez em quando. O filósofo Theodor Adorno disse uma vez que, depois do Holocausto, a poesia e a arte não seriam mais possíveis. O evento seria irrepresentável, como chama a atenção a crítica de cinema Ilana Feldman. Há, sem dúvida uma dimensão difícil de representar na grande tragédia histórica, mas o vaticínio retórico de Adorno é desmentido pela reflexividade da arte -- neste caso como nos exemplos dos filmes anteriores, ou de escritores como o italiano Primo Levi ou o espanhol Jorge Semprun.
       Depois de assistir a “O Filho de Saul” uma pergunta é inevitável: como é possível que ainda existam neonazistas e fascistas no planeta, ao ponto de quase vencerem as eleições na Áustria há alguns dias e de o neofascismo deter cerca de 40% das intenções de voto na França?
       Não é um fenômeno apenas europeu, como nos lembra reportagem recente da revista “Carta Capital”. Aparece até --- pasmem! — em Israel, onde o general Yair Golan, vice-chefe do Estado Maior, advertiu no dia israelense de lembrança do Holocausto (5 de maio) que vê em seu país sinais evidentes das mesmas “tendências revoltantes” da Alemanha dos anos 30.
       Neonazismo em Israel? Sim, é bem possível. A extrema direita ligada a Benjamin Netanyahu alimenta-se do militarismo e do temor extremo em relação aos palestinos e árabes. Também criou o seu “bode expiatório”, o fundamentalista islâmico, assim como os terroristas muçulmanos o criaram em relação à figura odiada do “sionista”.
      Não custa lembrar que já houve historicamente uma tendência fascista dentro do movimento judaico, antes e nos inícios da constituição do Estado de Israel, liderada pelo radical Jabotinsky e por Menahen Begin, cujas milícias faziam a saudação com braço erguido à moda mussolinista e hitlerista.
      Não é a simples ignorância histórica o que faz reviver o nazi-fascismo. A onda de direita que avassala o mundo revela, isto sim, a crise das significações imaginárias na sociedade contemporânea, afetadas pelo consumo e o espetáculo. O espetáculo a que nos referimos é a exibição da própria alienação. Podemos falar de uma espécie de cisão, de autoengano e de “emburrecimento” atuais.
      A estupidez nazista retorna pela superficialização da vida e pelo temor de sermos destruídos pelo outro, seja ele muçulmano, refugiado do mundo subdesenvolvido, de raça ou cultura diferente. 
     Existe hoje um mundo fragmentado, falsificado, pelo espetacular. O espetáculo é o sequestro da vida e a divisão do mundo em realidade e imagem. Há uma simplificação grosseira entre “eles e nós”. Existe um distanciamento do curso da realidade histórica. É como se vivêssemos num eterno presente de gozo ou de dor.
    A banalização ou o fetiche das imagens na mídia, inclusive da morte, leva a uma contemplação passiva e robotizante, onde os vivos podem parecer mortos e os mortos vivos. Não é por acaso que zumbis e “walking deads” povoem a cultura pop e o imaginário das massas.
     Muitos acreditam que o neonazismo é resultado direto de crises econômicas, como causas automáticas, ou como se vivêssemos situação idêntica aos anos 30. Isso é verdadeiro até certo ponto. Tem havido crises sucessivas em escala mundial, além de ameaças bélicas. Mas nossa época é diferente e passa por essa sociedade da insignificância, onde os prisioneiros das coisas e do consumo estão perdendo a vida nas ruas, num cotidiano vazio de sentido, nas prisões e mesmo sob o terrorismo. É como se existissem muitos ”filhos de Saul” a serem resgatados da anomia e da in--significância.
       Somos constrangidos até à perda do simbólico, pela ausência de mediação entre as coisas e o seu sentido. Estamos hoje também bombardeados por uma propaganda enganosa que faria inveja a Goebbels. Vários sinais indicam que há um caldo de cultura facilitador do ódio, do preconceito, da violência e da estupidez.

      O neonazismo oferece um falso conjunto de símbolos para quem perdeu as significações humanas, alienou-se passivamente ou está sob o domínio do medo.

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