Reinaldo Lobo*
Uma língua foi ressuscitada pelo
imaginário social brasileiro nos últimos anos, digamos desde 2002. Uma língua
morta. Não é o latim nem o grego antigo, mas o discurso ideológico dos tempos
da Guerra Fria, do século XX.
Expressões como “subversão”,
“comunismo”, “imperialismo”, “perigo vermelho”, “vai para Cuba”, “estatismo”,
“a mão da CIA”, “burguesia”, “populismo” e várias outras tornaram-se frequentes
na mídia e nas ruas. Nas manifestações dos camisas verde-amarelas
acrescentaram-se termos como “terrorismo”, “intervenção militar” e “bolivarianismo”,
este como sinônimo do velho “totalitarismo”.
O uso dessas palavras do jargão
extremista de direita e de esquerda tornou-se generalizado principalmente após
2013, quando os conservadores contrários à continuidade do PT no poder ganharam
forças a partir de um movimento de massas. Pela primeira vez em muito tempo, a
direita derrotada repetidamente nas urnas conseguiu organizar uma pressão
popular a seu favor. Precisava de um léxico que veiculasse seus planos e
interesses, assimilável pelas multidões e fácil de inocular no imaginário por
meio da mídia.
O ponto mais importante é que essa
linguagem não se destina a descrever uma realidade palpável. Sua elaboração,
consciente para alguns e inconsciente para muitos, visa a dar sentido à
política de remoção de Lula, de Dilma e do PT da cena política. Foi necessária
uma língua morta.
Nunca ouvíamos Lula e Dilma
usarem expressões como “imperialismo” ou “burguesia” para definir qualquer
política governamental. Não usaram nem como gesto simbólico. No entanto, quando
se fala deles, é-lhes atribuído esse discurso. Pode ser que militantes de
frações do PT mais desatualizadas tenham repetido algo desse vocabulário, mas o
próprio partido tão odiado tem veiculado mais termos como “direitos sociais e
humanos”, “movimentos sociais”, “empresariado”, “elites” e “patrões” no lugar
de “burguesia”.
Alguns ideólogos e jornalistas de
direita atribuem “intenções” de uso dessa terminologia aos representantes do
“lulo-petismo”. Esta última expressão parece nova, mas é uma réplica do
“petebo-comunismo”, usado pelos chefes do golpe militar-civil de 1964, em plena
onda “anticomunista”. Não seria preciso lembrar que João Goulart, o presidente
derrubado, era trabalhista, nunca foi comunista, ainda que tivesse apoio dos
marxistas para algumas das reformas que pretendia implementar. Ele fazia uma
política de “frente ampla” com a direita, o centro e as esquerdas.
Lula costuma ser pintado como um Fidel
Castro “vintage”. Não adiantou o próprio dizer que “nunca foi de esquerda” ou
que se apresentava como uma “metamorfose ambulante”. Para a mídia conservadora,
sua caricatura oscila entre o “vermelho”, o “populista corrupto” e o
“bolivariano” (leia-se “castrista”). O Brasil nunca teve, sob Lula ou Dilma,
nada parecido com a Venezuela em termos institucionais e mesmo políticos, no
plano interno. Muito menos com Cuba.
A direita inventou uma caricatura da
esquerda dos anos 60 e passou a bater nela como se ainda existisse.
Aparentemente, deu certo até este momento.
Lula nunca rompeu com a ordem
democrática. Ao contrário inaugurou e manteve, assim como Dilma, um período de
liberdade de imprensa que beirou à liberalidade, de tão ampla. Lula perdeu antes
quatro eleições, continuou a defender a via democrática.
Os
governos de ambos podem ter cometido muitas falhas, a maior delas foi, sem
dúvida, aderir sem crítica ao Sistema Corrupto montado pelos políticos e as
empreiteiras na Petrobrás e em outros sítios, desde, pelo menos, a Ditadura
civil- militar.
O
PT imitou o jogo do PMDB, do PSDB, PTB, etc.-- nas campanhas, na coalizão
governista e junto às estatais--, e isso foi usado contra ele pela mídia e a
oposição. Estas se juntaram e se tornaram praticamente a mesma voz. O argumento
mais forte encontrado é o de que o PT “aperfeiçoou” a corrupção, “para,
exclusivamente, se manter no poder” (Aécio Neves). Como se o partido não
tivesse outro projeto: onde foi parar o objetivo de instaurar “uma república
vermelha no País”, como disse um dos símbolos da direita nacional, o senador
goiano Ronaldo Caiado?
O que parece ter havido é que as
investigações estimuladas pelos próprios governos de Lula e Dilma pareciam
levar a uma revelação de todo o Sistema, mas foram dirigidas preferencialmente,
até agora, contra o próprio PT, ainda que pontualmente atinjam o esquema da
Velha Política em geral. A Rede Globo, os ambiciosos promotores e juízes de
Curitiba, alguns aliados no STF, a mídia conservadora em geral, têm cumprido
esse papel de seleção preferencial.
O
PT era o caçula do Sistema Corrupto, “não podia” fazer o que os outros faziam
em grandes proporções: sempre esteve fora do círculo da “oligarquia liberal”
que nos governa, com intermitências, desde a República Velha.
A esquerda próxima de Lula e de Dilma no
poder foi sempre muito moderada, ainda que a paranoia estimulada por uma
campanha iniciada em 2002, quando Lula virou presidente, diga o contrário e
tenha chegado a dimensões exageradas de anticomunismo à moda dos anos 60.
Não
adiantou lançar a Carta ao Povo Brasileiro, comprometendo-se a não ferir o
sistema capitalista. A desconfiança permaneceu à espera de uma oportunidade.
Ela surgiu quando Dilma venceu as eleições de 2014 e a direita conseguiu uma
votação expressiva do eleitorado para seu candidato.
Lula e Dilma fizeram governos, no máximo,
socialdemocratas. Suas propostas eram inspiradas em Keynes, não em Marx. A
distribuição de renda promovida pela via estatal destinava-se a fortalecer o
mercado interno e promover crescimento econômico. FHC foi o primeiro a
reconhecer isso. Mas, para a oposição à direita, era necessária uma retórica
distorcida, embebida num discurso que juntasse comunismo e corrupção para
provocar um desfecho trágico. Como no golpe de 1964.
“A
tragédia é de direita, a tragédia não é jamais de esquerda” --- disse George
Steiner, o excelente escritor, filósofo e crítico literário nascido em Paris e
que vive nos Estados Unidos. A esquerda prefere a esperança e a generosidade,
ainda que reconheça a existência da tragédia. Para gerar um trágico desfecho
que anule o PT, Dilma e Lula de volta ao governo, a direita brasileira armou um
cenário shakespeariano com um final infeliz.
Permitam-me
evocar de novo o Marx do “18 Brumário”: ocorre que a história foi trágica em
1964; agora não passa de uma farsa escrita numa língua morta.