quarta-feira, 24 de agosto de 2016

UMA LÍNGUA MORTA

   
                                                             Reinaldo Lobo*

          Uma língua foi ressuscitada pelo imaginário social brasileiro nos últimos anos, digamos desde 2002. Uma língua morta. Não é o latim nem o grego antigo, mas o discurso ideológico dos tempos da Guerra Fria, do século XX.
          Expressões como “subversão”, “comunismo”, “imperialismo”, “perigo vermelho”, “vai para Cuba”, “estatismo”, “a mão da CIA”, “burguesia”, “populismo” e várias outras tornaram-se frequentes na mídia e nas ruas. Nas manifestações dos camisas verde-amarelas acrescentaram-se termos como “terrorismo”, “intervenção militar” e “bolivarianismo”, este como sinônimo do velho “totalitarismo”.
          O uso dessas palavras do jargão extremista de direita e de esquerda tornou-se generalizado principalmente após 2013, quando os conservadores contrários à continuidade do PT no poder ganharam forças a partir de um movimento de massas. Pela primeira vez em muito tempo, a direita derrotada repetidamente nas urnas conseguiu organizar uma pressão popular a seu favor. Precisava de um léxico que veiculasse seus planos e interesses, assimilável pelas multidões e fácil de inocular no imaginário por meio da mídia.
         O ponto mais importante é que essa linguagem não se destina a descrever uma realidade palpável. Sua elaboração, consciente para alguns e inconsciente para muitos, visa a dar sentido à política de remoção de Lula, de Dilma e do PT da cena política. Foi necessária uma língua morta.
          Nunca ouvíamos Lula e Dilma usarem expressões como “imperialismo” ou “burguesia” para definir qualquer política governamental. Não usaram nem como gesto simbólico. No entanto, quando se fala deles, é-lhes atribuído esse discurso. Pode ser que militantes de frações do PT mais desatualizadas tenham repetido algo desse vocabulário, mas o próprio partido tão odiado tem veiculado mais termos como “direitos sociais e humanos”, “movimentos sociais”, “empresariado”, “elites” e “patrões” no lugar de “burguesia”.
          Alguns ideólogos e jornalistas de direita atribuem “intenções” de uso dessa terminologia aos representantes do “lulo-petismo”. Esta última expressão parece nova, mas é uma réplica do “petebo-comunismo”, usado pelos chefes do golpe militar-civil de 1964, em plena onda “anticomunista”. Não seria preciso lembrar que João Goulart, o presidente derrubado, era trabalhista, nunca foi comunista, ainda que tivesse apoio dos marxistas para algumas das reformas que pretendia implementar. Ele fazia uma política de “frente ampla” com a direita, o centro e as esquerdas.
          Lula costuma ser pintado como um Fidel Castro “vintage”. Não adiantou o próprio dizer que “nunca foi de esquerda” ou que se apresentava como uma “metamorfose ambulante”. Para a mídia conservadora, sua caricatura oscila entre o “vermelho”, o “populista corrupto” e o “bolivariano” (leia-se “castrista”). O Brasil nunca teve, sob Lula ou Dilma, nada parecido com a Venezuela em termos institucionais e mesmo políticos, no plano interno. Muito menos com Cuba.
       A direita inventou uma caricatura da esquerda dos anos 60 e passou a bater nela como se ainda existisse. Aparentemente, deu certo até este momento.
       Lula nunca rompeu com a ordem democrática. Ao contrário inaugurou e manteve, assim como Dilma, um período de liberdade de imprensa que beirou à liberalidade, de tão ampla. Lula perdeu antes quatro eleições, continuou a defender a via democrática.
      Os governos de ambos podem ter cometido muitas falhas, a maior delas foi, sem dúvida, aderir sem crítica ao Sistema Corrupto montado pelos políticos e as empreiteiras na Petrobrás e em outros sítios, desde, pelo menos, a Ditadura civil- militar. 
       O PT imitou o jogo do PMDB, do PSDB, PTB, etc.-- nas campanhas, na coalizão governista e junto às estatais--, e isso foi usado contra ele pela mídia e a oposição. Estas se juntaram e se tornaram praticamente a mesma voz. O argumento mais forte encontrado é o de que o PT “aperfeiçoou” a corrupção, “para, exclusivamente, se manter no poder” (Aécio Neves). Como se o partido não tivesse outro projeto: onde foi parar o objetivo de instaurar “uma república vermelha no País”, como disse um dos símbolos da direita nacional, o senador goiano Ronaldo Caiado?
      O que parece ter havido é que as investigações estimuladas pelos próprios governos de Lula e Dilma pareciam levar a uma revelação de todo o Sistema, mas foram dirigidas preferencialmente, até agora, contra o próprio PT, ainda que pontualmente atinjam o esquema da Velha Política em geral. A Rede Globo, os ambiciosos promotores e juízes de Curitiba, alguns aliados no STF, a mídia conservadora em geral, têm cumprido esse papel de seleção preferencial.
      O PT era o caçula do Sistema Corrupto, “não podia” fazer o que os outros faziam em grandes proporções: sempre esteve fora do círculo da “oligarquia liberal” que nos governa, com intermitências, desde a República Velha.
      A esquerda próxima de Lula e de Dilma no poder foi sempre muito moderada, ainda que a paranoia estimulada por uma campanha iniciada em 2002, quando Lula virou presidente, diga o contrário e tenha chegado a dimensões exageradas de anticomunismo à moda dos anos 60.
     Não adiantou lançar a Carta ao Povo Brasileiro, comprometendo-se a não ferir o sistema capitalista. A desconfiança permaneceu à espera de uma oportunidade. Ela surgiu quando Dilma venceu as eleições de 2014 e a direita conseguiu uma votação expressiva do eleitorado para seu candidato.
      Lula e Dilma fizeram governos, no máximo, socialdemocratas. Suas propostas eram inspiradas em Keynes, não em Marx. A distribuição de renda promovida pela via estatal destinava-se a fortalecer o mercado interno e promover crescimento econômico. FHC foi o primeiro a reconhecer isso. Mas, para a oposição à direita, era necessária uma retórica distorcida, embebida num discurso que juntasse comunismo e corrupção para provocar um desfecho trágico. Como no golpe de 1964.
       “A tragédia é de direita, a tragédia não é jamais de esquerda” --- disse George Steiner, o excelente escritor, filósofo e crítico literário nascido em Paris e que vive nos Estados Unidos. A esquerda prefere a esperança e a generosidade, ainda que reconheça a existência da tragédia. Para gerar um trágico desfecho que anule o PT, Dilma e Lula de volta ao governo, a direita brasileira armou um cenário shakespeariano com um final infeliz.

      Permitam-me evocar de novo o Marx do “18 Brumário”: ocorre que a história foi trágica em 1964; agora não passa de uma farsa escrita numa língua morta. 

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

ESCOLA SEM PARTIDO


                                                                Reinaldo Lobo*


         Imagine seus filhos ou netos sendo obrigados a ler na escola “manuais de filosofia” de autoria do astrólogo Olavo de Carvalho, livros “de história” do professor Marco Antônio Villa, aquele que declarou não ter havido propriamente uma ditadura no Brasil, exceto “por um curto período”, ou, ainda, levados a estudar geografia política apenas com o ideólogo Demétrio Magnoli, que considera uma “formação de quadrilha” um protesto democrático assumido publicamente por respeitados historiadores.
        Para completar, imagine filhos ou netos obrigados a ter aulas de religião e leituras bíblicas das Igrejas evangélicas, além de rezar para expurgar o Capeta antes das aulas da manhã, da tarde e da noite.
       Se você concorda com esse cenário, gosta desse tipo de educação ou dos três exemplares de intelectuais citados, talvez fique tranquilo e julgue que seus filhos e netos estariam no melhor dos mundos possíveis. Pergunta inevitável: isso não seria escola partidária, doutrinária, monolítica e totalitária de direita?
        “Extirpar a mentalidade petista”, como quer o ilustre sociólogo Bolívar Lamounier, seja por decreto ou qualquer outro meio, inclusive o educacional, seria o protótipo do programa totalitário, pois não?
        Essa teoria da “escola partidária”, atribuída ao bode expiatório petista, é o pretexto idealizado para introduzir o ovo da serpente autoritária na nossa educação republicana, ainda leiga e democrática. Os que defendem essa teoria confundem pedagogia com doutrinação. Atribuem essa confusão aos adversários.
       Até prova em contrário, seria puro fascismo impor essa educação de pensamento único à nossa cultura pluralista, na qual os educadores podem até hoje expor livremente suas ideias e mesmo disputar qual tem a melhor delas, sem deter a hegemonia absoluta.
       O projeto da “Escola Sem Partido”, de autoria do senador Magno Malta, pastor de Igreja Evangélica envolvido em vários casos suspeitos de corrupção, é mais uma tentativa estúpida de burlar o Estado Laico. Esse senador faz parte do grupo que tem proposto mudar a constituição onde ela diz “todo poder emana do povo” para “todo poder emana de Deus”
      O mais grave é que tenha o beneplácito de muitos que se consideram sinceramente “liberais” ou da “direita civilizada”. Não deixa de ser um paradoxo curioso que liberais patrocinem uma proposta que ofende a ideia de livre concorrência (no caso, de ideias) e que reclamem que a esquerda tem vencido e conquistado o “mercado” no âmbito da universidade.
     Um deles, articulista da Folha e professor de Filosofia, Luís Felipe Pondé, vive reclamando que os estudantes só querem saber de Marx e de Foucault no currículo. Ele sabe    que nada é imposto pelas direções universitárias, pois temos escolas com inteira liberdade, até mesmo as de origem religiosa.
      Ora, com a plena autonomia reservada aos professores universitários, basta que esse professor ofereça aulas sobre John Gray, Cioran, Hobbes ou qualquer outro autor de sua preferência. E, depois, é só aguardar a afluência dos alunos. Pelo que se sabe, nada é imposto a eles, sobretudo nos cursos de Filosofia.
     Afinal, um liberal é ou não pela meritocracia? Popper costumava dizer que as ideias teóricas e científicas disputam pela sobrevivência, como acontece na natureza entre as espécies. As “menos falhadas” sobrevivem. Verdadeiro ou não, esse é um postulado genuinamente liberal. Sem ironia.
    Desconfio que a emergência desse projeto infeliz de limitar o direito de opinião dos professores, além de revelar que a estupidez humana não tem limites, não é só parte da onda conservadora que inclui, entre outras tentativas, as restrições ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Mas vai além, tem um objetivo político que atende aos interesses do governo do interino Temer, preocupado com possíveis manifestações de massa reativas às suas medidas de “ajuste” econômico e social.
     São medidas repressivas e quem não espera uma possível resposta, em primeiro lugar, dos estudantes e intelectuais? Houve recentemente uma onda de protestos estudantis em São Paulo e no Rio contra as más condições do ensino, quase uma rebelião, com ocupações e gritos de “Abaixo o Golpe” e “Fora Temer”.
     A preocupação do novo governo de direita é com uma visível ressurreição do movimento estudantil em escala nacional, o que já vem ocorrendo desde 2013, naquelas manifestações que se iniciaram com protestos juvenis contra o preço das passagens do transporte público e que acabaram apropriadas por um movimento de massas de direita, incitado e engrossado pela mídia conservadora.
      Os articuladores da direita sempre acreditaram, ou fingiram acreditar, que todos os problemas sociais, culturais e políticos passam por uma estratégia de controle das mentes.  Essa é uma obsessão conservadora desde, pelo menos, a Guerra Fria. Falam de modo paranoico das “lavagens cerebrais”, dos “inocentes úteis”, da pedagogia da “doutrinação ideológica”, das “conversões”, das “infiltrações subversivas” e outras metáforas de origem militar e religiosa.
     Não espanta que estejam unindo hoje, como no fundamentalismo islâmico, política, força militar e Igreja. É no que acreditam como eficácia de manipulação, pois assistem ao sucesso exemplar, pragmático e financeiro, dos pastores sobre as almas desamparadas. Querem impor preventivamente um controle aos estudantes desse tipo.
     Os jovens não aprenderiam sobre a realidade política e social pela observação própria e por meio das suas famílias, mas estariam sujeitos aos malévolos “professores doutrinadores” – justamente, o que eles querem impor a todos.
     Acho que deveríamos, nós os pais e as mães, propor um projeto que proteja a democracia brasileira da estupidez fascista e do fundamentalismo religioso. São eles que falam, por exemplo, da “ideologia de gênero”, que inventaram para negar a existência de gays, travestis, transexuais, etc., como se não existissem na realidade. Só existem porque se fala deles e porque reivindicam direitos humanos! Fundamentalistas chamam de “ideologia de gênero” o que eles mesmos criaram e praticam.

      Deveríamos lutar para que existam os Olavo de Carvalho e Marco Antônio Villa, mas também os professores que dão aulas de Marx, de Foucault ou de qualquer autor malvisto pelos conservadores. Ainda que, pessoalmente, prefira que meus filhos e netos não apreciem Olavo de Carvalho nem o seus duplos, a escola democrática ainda é a melhor e deve sobreviver.

TERRORISMO



                                                         Reinaldo Lobo

       Os loucos e os fanáticos mobilizam as pessoas. São excelentes motivadores. Fascinam. Ocupam um espaço considerável na mídia, nas estatísticas e na criminologia. As pessoas saudáveis não são notícia, nem constituem um problema de saúde pública. Um homem-bomba talvez não seja necessariamente um psicótico ou psicopata, mas é um fanático. Não se pode dizer exatamente que seja são.
       O fanatismo é uma estreiteza mental. Uma forma de arrogância e de estupidez. Grupos inteiros podem ser atraídos para esses indivíduos, às vezes com características messiânicas. Estão estupidificados e rebaixados mentalmente pelo caráter coletivo da mobilização. São tomados por turbulências emocionais. Freud, Elias Canetti e Jean Paul Sartre mostraram o caráter fusional das multidões e massas encantadas pelo caráter contagioso da ação grupal. Giram em torno de promessas salvadoras, geralmente simplificações da vida política, religiosa e social. 
      O terrorismo é um fenômeno de muitas faces. Seria um erro reduzi-lo a uma manifestação patológica de alguns indivíduos enlouquecidos, ainda que seus agentes sejam desequilibrados na maioria dos casos. Envolve as condições históricas, manipulação política, estratégias e táticas de guerra, motivos sociais e econômicos.
     Um artigo recente publicado na revista francesa “Nouvel Observateur” lembrava que o terrorista utiliza a “estratégia da mosca”, isto é, age como um inseto que penetra na orelha de um elefante, a sociedade, tirando-lhe o equilíbrio e o sossego. 
    O terrorismo pretende ser uma guerra, mas difere da guerrilha clássica que visava a alvos militares e políticos específicos contra governos opressores, tentando ganhar o apoio da população civil. É diferente também das guerras convencionais, nas quais exércitos se confrontam e provocam milhares, às vezes milhões, de mortos.
     O número de mortos provocados pelo terrorismo é relativamente pequeno. O maior até agora foi em Nova York, em 2001, no atentado contra as Torres Gêmeas, quando morreram cerca de três mil pessoas. O que diferencia os ataques terroristas são os alvos -- pessoas inocentes da população civil--, o local --o interior de concentrações urbanas--, e o elemento surpresa – nunca se sabe quando e onde o terror vai eclodir.
      A principal arma do terrorismo é a própria barbárie, que enlouquece o “elefante”. Cidades inteiras ficam vulneráveis. Populações são aterrorizadas, governos precisam se justificar, a insegurança se generaliza. Levar a completa insegurança à civilização -- esta é a fórmula.
       Mao Tsé-tung, um mestre na arte clássica da guerrilha urbana e rural, dizia que um guerrilheiro deveria ser como um peixe no mar, invisível para o conjunto. E anônimo até desfechar um ataque. Se possível, deveria sobreviver após a ação. Esse conselho tem sido seguido pelos terroristas contemporâneos, com a diferença de que seus alvos são mais randômicos e aleatórios do que os da guerrilha. Além disso, o terror atual introduziu o “mártir”, o (a) suicida que explode junto com suas vítimas. Isso o torna mais eficiente e ameaçador. O fato de não se importar em sobreviver revela o caráter niilista do terrorismo atual.
       O anonimato do terrorista islâmico não é tão garantido, pois pode ser identificado quanto à sua origem árabe ou do Oriente Médio. No entanto, até esse detalhe vem se modificando, com a adesão de malucos não árabes a grupos como o Estado Islâmico, Al Qaeda e outros. Os muçulmanos tchetchenos, por exemplo, também passam por ocidentais sem risco de identificação. Ou seja, o fenômeno está longe de acabar e continua a se expandir.    
       Um fator predominante da permanência do terrorismo é a sociedade do espetáculo e da comunicação generalizada em que vivemos. Um evento desses precisa ser noticiado e comunicado para o mundo todo, pois o fanático visa não a convencer por persuasão o outro, mas a impor um fato como demonstração de seu ponto de vista “superior”, como “exemplo” para a humanidade e os seus próprios seguidores. O evento é uma corroboração de seu poder desestabilizador. Mas é também o meio de atormentar o “elefante” a ponto de desorganizar seus rumos e decisões.
       Muitos intérpretes veem o terrorismo como uma luta do arcaico contra o moderno. Outros completam o raciocínio, dizendo que é o conflito do particular contra a universalização imposta pela sociedade de consumo e a globalização. Isso parece ser parcialmente verdadeiro.
      Já o sociólogo Jean Baudrillard, comentando o Onze de Setembro de 2001, dizia que não havia nada mais moderno do que o novo terror, uma vez que agiu como uma espécie de Ong fora do Estado, utilizando-se da sofisticação tecnológica mais avançada, além de ter como agentes engenheiros e estudantes bastante modernos e articulados, que levavam vidas perfeitamente “ocidentais”.
       Penso que as duas visões podem ser verdadeiras. De fato, parece haver no terrorismo atual uma resistência à globalização e uma busca da manutenção das culturas singulares. O Estado Islâmico propõe a volta a um Califado do século XII. Mas esse é o paradoxo do terror:  usa exatamente os meios oferecidos pela contemporaneidade para combatê-la.

       Ainda não se sabe o melhor meio de derrotar imediatamente esse fenômeno assustador. Alguns acham que só a violência resolve.  No entanto, espero que não haja muita dúvida de que o caminho mais adequado para enfrentar a estupidez e a arrogância seja ampliar o pensamento, a imaginação, a curiosidade pelo outro, o diálogo possível e uma cultura de paz.