Reinaldo Lobo
A esquerda está melancólica. De novo. A primeira vez foi quando a União
Soviética se dissolveu no ar, levando consigo os sonhos de igualdade e justiça
da revolução de 1917. Se o império romano decaiu por duzentos anos, o soviético
levou apenas dois para desabar, de 1989 a 1991.
A questão não foi o fim da grandeza
imperial russa, mas a destruição burocrática do maior projeto socialista que a
humanidade já produziu. De lá para cá, a esquerda mundial ficou na defensiva,
quase perdida. Órfã de uma utopia – para usar a expressão de Ernildo Stein--,
vagou em busca de uma brecha para continuar a existir. Uma parte dos antigos
socialistas bandeou-se para o lado oposto, aderindo à direita neoliberal e ao
conservadorismo.
Na
verdade, o fim da URSS não foi exatamente uma vitória do capitalismo. Quem
perdeu foi o próprio socialismo, incapaz de realizar-se de acordo com seus
princípios iniciais e gerando um monstro político, econômico e social, na forma
do totalitarismo. Nenhuma das críticas ao capital e à exploração do homem pelo
homem caducou. Só que o regime contraposto a isso não conseguiu atingir as
metas de humanização das relações econômicas e sociais com garantia da
liberdade.
Quando a maior parte dos países do mundo
seguia o “pensamento único” do neoliberalismo, que seria abalado por duas
grandes crises capitalistas nas duas últimas décadas, pareceu surgir na América
Latina uma alternativa democrática para mudanças socializantes.
O Brasil dos governos Lula e Dilma, a
Argentina do casal Kirchner, a Venezuela de Chaves, o Uruguai de Tabares
Vasques e de Pepe Mojica, o Equador de Rafael Correa, a Bolívia do índio Evo
Morales, o Paraguai do padre Fernando Lugo, Honduras de Manuel Zelaya – todos
tiveram experiências nacional-desenvolvimentistas fora da orientação neoliberal
e da influência norte-americana.
Com as exceções do Uruguai, da Bolívia e
do Equador, cujos projetos esquerdizantes ainda prosseguem com algum êxito,
todos os outros ou foram encerrados ou estão sob bombardeio de fortes oposições
conservadoras.
A
queda do governo Dilma foi a maior derrota da esquerda continental, não só pela
importância do País, mas pela repercussão internacional. O “caso brasileiro”
foi único pelo êxito de um governo dirigido por mais de uma década por um
operário e, depois, por uma ex-guerrilheira marxista. A manutenção de taxas
consideráveis de crescimento com distribuição de renda e vitórias eleitorais
impressionantes tornaram esses governos alvos da reação conservadora, mas
também davam a impressão de levarem a uma transição para a socialização.
Nesses casos, onde até golpes de Estado
parlamentares foram dados, não havia “socialismo” consolidado, mas programas
sociais esquerdistas em andamento.
Essas derrotas trouxeram a segunda
melancolia da esquerda atual.
Para se enfrentar a melancolia e a
depressão no plano psíquico, existem pelo menos dois caminhos: a negação
maníaca e a elaboração do luto. A primeira alternativa consiste em fingir que
nada aconteceu de errado ou grave e partir para uma ação tão eufórica quanto
inconsistente. Uma variante dessa saída maníaca é, como diz a psicanálise,
identificar-se com o agressor: “Os socialistas falharam, então viva o
capitalismo! ”
Seria a fórmula da “síndrome de Estocolmo”:
a vítima que adota o ponto-de-vista e os sentimentos de quem a vitimou. Assim é
que surgem os “arrependidos”, os delatores e os traidores. Nenhum deles é
sincero, apenas tentam dar a volta por cima pela negação da realidade. Deve-se
minimizar a responsabilidade daqueles que sucumbem sob tortura, em ditaduras,
mas não a daqueles que se entregam sem luta, apenas por serem derrotados
politicamente.
A segunda via é mais difícil, mas também
mais sólida. É o caminho da lucidez. Analisar o quadro real, assumir os erros
cometidos e consertá-los na medida do possível é a única forma de superar as
perdas e o luto, sem se afundar na paralisia e no medo.
Houve
um esquerdista célebre, derrotado pela brutalidade do fascismo de Mussolini e atirado
na prisão, onde morreu, que sugeria uma visão aparentemente paradoxal da
estratégia política socialista: “É preciso ter o pessimismo da inteligência e o
otimismo da vontade”. Esse personagem era Antônio Gramsci.
O
“pessimismo da inteligência” é o realismo com que se examinam os fatos, as
políticas desastrosas, as causas e consequências de decisões equivocadas.
Gramsci era um entusiasta de Maquiavel, o mais realista dos pensadores
políticos.
Erros não faltaram no Brasil do PT. Um
socialista inteligente, o escritor de origem paquistanesa Tariq Ali, fez um
comentário duro e sarcástico sobre o nosso José Dirceu e seu “pragmatismo
político”: “Quando foi submetido a uma cirurgia plástica em Cuba para se manter
clandestino, os médicos cubanos não deveriam ter-lhe mudado o nariz, mas o
cérebro”. Aliar-se a personagens como Roberto Jefferson, Marcos Valério e
outros, valeram a Dirceu esse comentário pejorativo.
O erro não foi só dele, Lula entrou no
esquema em nome do apaziguamento da sanha conservadora e da aliança de classes
com partidos notoriamente representativos das classes dominantes.
O PT cometeu os mesmos erros dos
tradicionais stalinistas, com suas alianças de “frente ampla”, sem as
salvaguardas necessárias. Depois da experiência do governo Goulart, em 1964,
quando a esquerda se aliou ao centro e a setores de direita para realizar
reformas esquerdizantes, sucumbindo às tentações populistas, os intelectuais
brasileiros sérios realizaram uma exegese severa do populismo e do seu caráter
conservador. Parece que tudo foi esquecido. O PT subordinou a classe
trabalhadora às decisões de partidos como o PMDB, notoriamente comprometido com
dois sistemas: o Capitalista e o Corrupto, da aliança do Estado com
empreiteiros, Fiesp, banqueiros, burocratas e latifundiários.
O pior é que mantém, para as próximas
eleições municipais, as mesmas alianças com os que derrubaram Dilma e querem
prender Lula.
Para sair da melancolia, a esquerda
talvez precise usar mais o pessimismo da inteligência e, depois, partir para o otimismo
da ação.