quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A ESQUERDA DESILUDIDA


                                                                         
                                                                     Reinaldo Lobo

          A esquerda está melancólica. De novo. A primeira vez foi quando a União Soviética se dissolveu no ar, levando consigo os sonhos de igualdade e justiça da revolução de 1917. Se o império romano decaiu por duzentos anos, o soviético levou apenas dois para desabar, de 1989 a 1991.
        A questão não foi o fim da grandeza imperial russa, mas a destruição burocrática do maior projeto socialista que a humanidade já produziu. De lá para cá, a esquerda mundial ficou na defensiva, quase perdida. Órfã de uma utopia – para usar a expressão de Ernildo Stein--, vagou em busca de uma brecha para continuar a existir. Uma parte dos antigos socialistas bandeou-se para o lado oposto, aderindo à direita neoliberal e ao conservadorismo.
      Na verdade, o fim da URSS não foi exatamente uma vitória do capitalismo. Quem perdeu foi o próprio socialismo, incapaz de realizar-se de acordo com seus princípios iniciais e gerando um monstro político, econômico e social, na forma do totalitarismo. Nenhuma das críticas ao capital e à exploração do homem pelo homem caducou. Só que o regime contraposto a isso não conseguiu atingir as metas de humanização das relações econômicas e sociais com garantia da liberdade.
      Quando a maior parte dos países do mundo seguia o “pensamento único” do neoliberalismo, que seria abalado por duas grandes crises capitalistas nas duas últimas décadas, pareceu surgir na América Latina uma alternativa democrática para mudanças socializantes.
      O Brasil dos governos Lula e Dilma, a Argentina do casal Kirchner, a Venezuela de Chaves, o Uruguai de Tabares Vasques e de Pepe Mojica, o Equador de Rafael Correa, a Bolívia do índio Evo Morales, o Paraguai do padre Fernando Lugo, Honduras de Manuel Zelaya – todos tiveram experiências nacional-desenvolvimentistas fora da orientação neoliberal e da influência norte-americana.
     Com as exceções do Uruguai, da Bolívia e do Equador, cujos projetos esquerdizantes ainda prosseguem com algum êxito, todos os outros ou foram encerrados ou estão sob bombardeio de fortes oposições conservadoras.
      A queda do governo Dilma foi a maior derrota da esquerda continental, não só pela importância do País, mas pela repercussão internacional. O “caso brasileiro” foi único pelo êxito de um governo dirigido por mais de uma década por um operário e, depois, por uma ex-guerrilheira marxista. A manutenção de taxas consideráveis de crescimento com distribuição de renda e vitórias eleitorais impressionantes tornaram esses governos alvos da reação conservadora, mas também davam a impressão de levarem a uma transição para a socialização.
      Nesses casos, onde até golpes de Estado parlamentares foram dados, não havia “socialismo” consolidado, mas programas sociais esquerdistas em andamento.
     Essas derrotas trouxeram a segunda melancolia da esquerda atual.
     Para se enfrentar a melancolia e a depressão no plano psíquico, existem pelo menos dois caminhos: a negação maníaca e a elaboração do luto. A primeira alternativa consiste em fingir que nada aconteceu de errado ou grave e partir para uma ação tão eufórica quanto inconsistente. Uma variante dessa saída maníaca é, como diz a psicanálise, identificar-se com o agressor: “Os socialistas falharam, então viva o capitalismo! ”
    Seria a fórmula da “síndrome de Estocolmo”: a vítima que adota o ponto-de-vista e os sentimentos de quem a vitimou. Assim é que surgem os “arrependidos”, os delatores e os traidores. Nenhum deles é sincero, apenas tentam dar a volta por cima pela negação da realidade. Deve-se minimizar a responsabilidade daqueles que sucumbem sob tortura, em ditaduras, mas não a daqueles que se entregam sem luta, apenas por serem derrotados politicamente.
    A segunda via é mais difícil, mas também mais sólida. É o caminho da lucidez.   Analisar o quadro real, assumir os erros cometidos e consertá-los na medida do possível é a única forma de superar as perdas e o luto, sem se afundar na paralisia e no medo.
   Houve um esquerdista célebre, derrotado pela brutalidade do fascismo de Mussolini e atirado na prisão, onde morreu, que sugeria uma visão aparentemente paradoxal da estratégia política socialista: “É preciso ter o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade”. Esse personagem era Antônio Gramsci.
    O “pessimismo da inteligência” é o realismo com que se examinam os fatos, as políticas desastrosas, as causas e consequências de decisões equivocadas. Gramsci era um entusiasta de Maquiavel, o mais realista dos pensadores políticos.
    Erros não faltaram no Brasil do PT. Um socialista inteligente, o escritor de origem paquistanesa Tariq Ali, fez um comentário duro e sarcástico sobre o nosso José Dirceu e seu “pragmatismo político”: “Quando foi submetido a uma cirurgia plástica em Cuba para se manter clandestino, os médicos cubanos não deveriam ter-lhe mudado o nariz, mas o cérebro”. Aliar-se a personagens como Roberto Jefferson, Marcos Valério e outros, valeram a Dirceu esse comentário pejorativo.
     O erro não foi só dele, Lula entrou no esquema em nome do apaziguamento da sanha conservadora e da aliança de classes com partidos notoriamente representativos das classes dominantes.
     O PT cometeu os mesmos erros dos tradicionais stalinistas, com suas alianças de “frente ampla”, sem as salvaguardas necessárias. Depois da experiência do governo Goulart, em 1964, quando a esquerda se aliou ao centro e a setores de direita para realizar reformas esquerdizantes, sucumbindo às tentações populistas, os intelectuais brasileiros sérios realizaram uma exegese severa do populismo e do seu caráter conservador. Parece que tudo foi esquecido. O PT subordinou a classe trabalhadora às decisões de partidos como o PMDB, notoriamente comprometido com dois sistemas: o Capitalista e o Corrupto, da aliança do Estado com empreiteiros, Fiesp, banqueiros, burocratas e latifundiários.
        O pior é que mantém, para as próximas eleições municipais, as mesmas alianças com os que derrubaram Dilma e querem prender Lula.
        Para sair da melancolia, a esquerda talvez precise usar mais o pessimismo da inteligência e, depois, partir para o otimismo da ação.


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