segunda-feira, 19 de setembro de 2016

UMA QUESTÃO DE COMPETÊNCIA



                                                                        Reinaldo Lobo

         Em política, só é feio perder, diz o cinismo conservador. Esse pensamento ignora que existem belas derrotas, honrosas, assim como os gregos antigos falavam de uma ”boa morte”, derivada da luta digna. Para os pragmáticos, o que importa é o resultado. Mas não consideram que, na política como na economia, existem efeitos secundários, implícitos a longo prazo. Muitos desses efeitos, digamos de uma derrota, podem ser insuspeitos e inesperados.
         A visão conservadora colocou em circulação uma ideia simplista sobre a derrota da esquerda no Brasil. Consiste em repetir que governos esquerdistas “não vão bem” em economia de um modo geral e, em particular, não sabem administrar o capitalismo. Não é bem assim.
         A esquerda salvou o capitalismo diversas vezes, mesmo que nem sempre o quisesse. Na Europa dos séculos XIX e XX, foi a luta dos trabalhadores pela constituição dos sindicatos que levou à estabilização do capital, à integração da classe operária, à rotina de resolução das crises e, finalmente, ao Estado do Bem-Estar social. Isso tudo foi inspirado, primeiro, pelos anarquistas e, depois, pela emergência da revolução soviética na Rússia, em 1917. 
        As propostas do marxismo foram apropriadas pelos economistas europeus, incorporadas ao seu repertório instrumental e intelectual. Em alguns países, foram os próprios governos influenciados ou dirigidos por marxistas que inauguraram governos trabalhistas e economicamente reformistas, como na Inglaterra e nos países nórdicos. A Suécia, a Dinamarca, a Holanda, a Noruega, a Finlândia, todos eles tiveram governos socialistas. E isso sem se tornarem Estados totalitários.
      Na Alemanha, apesar das idas e vindas antes e depois da Segunda Guerra Mundial, o programa marxista do Partido Social Democrata (ocidental) só foi alterado em 1959, no Congresso de Bad Godesberg. Boa parte da recuperação e crescimento alemães, com Willy Brandt, foi sob a égide de uma orientação econômica esquerdizante, ainda que não comunista. A menos que não se considere a social democracia de esquerda, mesmo a conservadora Alemanha Ocidental sentiu a sua influência nas leis trabalhistas e nas políticas de distribuição de renda.  O mesmo aconteceu na França, na Itália e no sul da Europa, onde a presença de socialistas e comunistas nunca deixou de dar o tom em vários governos.
       Nos Estados Unidos, o exemplo mais notável foi o New Deal, com o presidente Franklin D. Roosevelt. A economia foi salva da brutal recessão de 1930 graças a um programa econômica inteiramente traçado e até executado pela esquerda. No Japão do após guerra, o próprio general ocupante, Douglas Macarthur, realizou uma reforma agrária inspirada nos modelos de esquerda e, depois, sucederam-se até hoje vários governos que incorporaram reformas esquerdizantes, ainda que sob a égide de diversos partidos conservadores.
        Na nossa América Latina, a APRA peruana, inspirada no socialismo de Haya de La Torre; na Bolívia, um arco de governos que vão desde os revolucionários de 1952 até os atuais; no Chile, o pensamento estruturalista da Cepal; no Brasil, os governos ambíguos de Getúlio, os avanços desenvolvimentistas inspirados em Celso Furtado, os governos de Kubitschek e de Lula — todas são experiências econômicas que realizaram profundas mudanças, com resultados de longo prazo. E , isso, “apesar” dos conservadores.
       Dizer que o governo Lula foi apenas um fracasso econômico significa não enxergar que o Brasil não será mais o mesmo depois dele, em busca do desenvolvimento com distribuição de renda e amplo mercado interno.
       São efeitos de esquerda em países que não são considerados repúblicas comunistas, para só citar alguns casos.
       Hoje, há governos de esquerda em Portugal e na Grécia, tentando corrigir os equívocos de três décadas de neoliberalismo no mundo. As pessoas esquecem facilmente que as crises de 2000 e 2008 foram provocadas pela mesma fórmula econômica conservadora de Reagan, Thatcher e Clinton, modelo que animou 160 países com o nome de “pensamento único”.
       Ocorre que a direita costuma associar imediatamente a palavra esquerda com a antiga União Soviética, a China e Cuba. O pensamento conservador toma como referência o totalitarismo de origem stalinista, mais fácil de combater do que admitir que ideias de esquerda influenciaram bastante a Europa Ocidental, o mundo e até os Estados Unidos. Isso sem falar nas políticas culturais e não diretamente ligadas à economia, como a de direitos civis e humanos.
       O fantasma do comunismo soviético é retirado do baú, como fantasia de festa no Halloween, sempre que algum governo composto por partidos de esquerda implementa mudanças que beneficiam grandes massas, e não apenas as minorias dominantes.
      Essa atitude ignora a profunda crítica que a esquerda tem desenvolvido não só em relação ao capitalismo, mas também aos regimes que dominavam o Leste Europeu e parte da Ásia. Muitos desses pensamentos concebem aqueles regimes não como socialistas, mas como aberrações que deram origem a um novo modelo de Estado, um monstrengo ainda sendo decifrado do ponto de vista social, econômico e social. 
    O totalitarismo soviético, hoje, não é visto nem mesmo como a realização do comunismo, mas como uma corruptela do capitalismo, onde as classes dominantes tradicionais foram substituídas por uma forma de dominação burocrática tão ou mais exploradora do que a anterior.
      A competência econômica da esquerda em administrar algumas formas de socialismo democrático e o próprio capitalismo tem sido indiscutível na maior parte do mundo. Só no nosso Brasil é que persistem a ignorância e a resistência ideológica das nossas classes dominantes. Como disse Roberto Schwarz, nossa elite tem as ideias fora do lugar. Nesse caso, está atrasada ao ponto de permanecer pensando como se pensava há uns dois séculos atrás.
       
    


                                                                        Reinaldo Lobo

         Em política, só é feio perder, diz o cinismo conservador. Esse pensamento ignora que existem belas derrotas, honrosas, assim como os gregos antigos falavam de uma ”boa morte”, derivada da luta digna. Para os pragmáticos, o que importa é o resultado. Mas não consideram que, na política como na economia, existem efeitos secundários, implícitos a longo prazo. Muitos desses efeitos, digamos de uma derrota, podem ser insuspeitos e inesperados.
         A visão conservadora colocou em circulação uma ideia simplista sobre a derrota da esquerda no Brasil. Consiste em repetir que governos esquerdistas “não vão bem” em economia de um modo geral e, em particular, não sabem administrar o capitalismo. Não é bem assim.
         A esquerda salvou o capitalismo diversas vezes, mesmo que nem sempre o quisesse. Na Europa dos séculos XIX e XX, foi a luta dos trabalhadores pela constituição dos sindicatos que levou à estabilização do capital, à integração da classe operária, à rotina de resolução das crises e, finalmente, ao Estado do Bem-Estar social. Isso tudo foi inspirado, primeiro, pelos anarquistas e, depois, pela emergência da revolução soviética na Rússia, em 1917. 
        As propostas do marxismo foram apropriadas pelos economistas europeus, incorporadas ao seu repertório instrumental e intelectual. Em alguns países, foram os próprios governos influenciados ou dirigidos por marxistas que inauguraram governos trabalhistas e economicamente reformistas, como na Inglaterra e nos países nórdicos. A Suécia, a Dinamarca, a Holanda, a Noruega, a Finlândia, todos eles tiveram governos socialistas. E isso sem se tornarem Estados totalitários.
      Na Alemanha, apesar das idas e vindas antes e depois da Segunda Guerra Mundial, o programa marxista do Partido Social Democrata (ocidental) só foi alterado em 1959, no Congresso de Bad Godesberg. Boa parte da recuperação e crescimento alemães, com Willy Brandt, foi sob a égide de uma orientação econômica esquerdizante, ainda que não comunista. A menos que não se considere a social democracia de esquerda, mesmo a conservadora Alemanha Ocidental sentiu a sua influência nas leis trabalhistas e nas políticas de distribuição de renda.  O mesmo aconteceu na França, na Itália e no sul da Europa, onde a presença de socialistas e comunistas nunca deixou de dar o tom em vários governos.
       Nos Estados Unidos, o exemplo mais notável foi o New Deal, com o presidente Franklin D. Roosevelt. A economia foi salva da brutal recessão de 1930 graças a um programa econômica inteiramente traçado e até executado pela esquerda. No Japão do após guerra, o próprio general ocupante, Douglas Macarthur, realizou uma reforma agrária inspirada nos modelos de esquerda e, depois, sucederam-se até hoje vários governos que incorporaram reformas esquerdizantes, ainda que sob a égide de diversos partidos conservadores.
        Na nossa América Latina, a APRA peruana, inspirada no socialismo de Haya de La Torre; na Bolívia, um arco de governos que vão desde os revolucionários de 1952 até os atuais; no Chile, o pensamento estruturalista da Cepal; no Brasil, os governos ambíguos de Getúlio, os avanços desenvolvimentistas inspirados em Celso Furtado, os governos de Kubitschek e de Lula — todas são experiências econômicas que realizaram profundas mudanças, com resultados de longo prazo. E , isso, “apesar” dos conservadores.
       Dizer que o governo Lula foi apenas um fracasso econômico significa não enxergar que o Brasil não será mais o mesmo depois dele, em busca do desenvolvimento com distribuição de renda e amplo mercado interno.
       São efeitos de esquerda em países que não são considerados repúblicas comunistas, para só citar alguns casos.
       Hoje, há governos de esquerda em Portugal e na Grécia, tentando corrigir os equívocos de três décadas de neoliberalismo no mundo. As pessoas esquecem facilmente que as crises de 2000 e 2008 foram provocadas pela mesma fórmula econômica conservadora de Reagan, Thatcher e Clinton, modelo que animou 160 países com o nome de “pensamento único”.
       Ocorre que a direita costuma associar imediatamente a palavra esquerda com a antiga União Soviética, a China e Cuba. O pensamento conservador toma como referência o totalitarismo de origem stalinista, mais fácil de combater do que admitir que ideias de esquerda influenciaram bastante a Europa Ocidental, o mundo e até os Estados Unidos. Isso sem falar nas políticas culturais e não diretamente ligadas à economia, como a de direitos civis e humanos.
       O fantasma do comunismo soviético é retirado do baú, como fantasia de festa no Halloween, sempre que algum governo composto por partidos de esquerda implementa mudanças que beneficiam grandes massas, e não apenas as minorias dominantes.
      Essa atitude ignora a profunda crítica que a esquerda tem desenvolvido não só em relação ao capitalismo, mas também aos regimes que dominavam o Leste Europeu e parte da Ásia. Muitos desses pensamentos concebem aqueles regimes não como socialistas, mas como aberrações que deram origem a um novo modelo de Estado, um monstrengo ainda sendo decifrado do ponto de vista social, econômico e social. 
    O totalitarismo soviético, hoje, não é visto nem mesmo como a realização do comunismo, mas como uma corruptela do capitalismo, onde as classes dominantes tradicionais foram substituídas por uma forma de dominação burocrática tão ou mais exploradora do que a anterior.
      A competência econômica da esquerda em administrar algumas formas de socialismo democrático e o próprio capitalismo tem sido indiscutível na maior parte do mundo. Só no nosso Brasil é que persistem a ignorância e a resistência ideológica das nossas classes dominantes. Como disse Roberto Schwarz, nossa elite tem as ideias fora do lugar. Nesse caso, está atrasada ao ponto de permanecer pensando como se pensava há uns dois séculos atrás.
       
    


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