quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A ARMA DA CRÍTICA

                                     

                                                              Reinaldo Lobo
          Os conservadores não apreciam a palavra crítica. Na melhor das hipóteses, aceitam-na acompanhada de um adjetivo: “construtiva”. Ora, não existe crítica construtiva, assim como não há uma destrutiva. Criticar é examinar as condições de possibilidade de uma situação ou de um fenômeno; é questionar, interrogar, refletir e interpretar.
         É verdade, dizia Stendhal, que um bom raciocínio ofende. Criticar é o contrário de resignar-se. Significa inquietação, pensamento com liberdade. É quase um sinônimo de pensar. “Pensar é dizer ‘não’”, mostrou o filósofo Gaston Bachelard no século passado. Sócrates, um dos primeiros grandes, foi condenado a se envenenar por ser um crítico do poder em seu tempo.
         Há algo de profundamente “negativo” na crítica. Nega o que está estabelecido, aceito ou a opacidade das aparências. Vê o que não pode ser visto facilmente. Rompe, às vezes, com o “senso comum”, mas não quer dizer “falar mal” de algo ou de alguém. Pode ser vista como um convite a destruir uma ordem social e política. Não é a própria destruição.
         A crítica acompanha -- é verdade-- muitas revoluções. Às vezes, está na origem delas. O maior filósofo do século XVIII, o alemão Immanuel Kant, foi um entusiasta da Revolução Francesa de 1789 e representou uma expressão intelectual desse movimento. Suas ideias de autonomia e igualdade identificavam-se com o lema revolucionário: “Liberté, Egalité, Fraternité”.
       Kant inaugurou toda uma filosofia moderna sobre a base da palavra crítica. Suas três perguntas básicas: “O que consigo saber? O que posso fazer? O que posso esperar? ”, constituem uma crítica do conhecimento, da ética e da história.  Dizia que aquele que provou uma vez da crítica fica enojado para sempre de todo palavreado dogmático. Era radicalmente um democrata e um defensor da liberdade de pensamento.
        Já Karl Marx, autor que inspiraria a maior revolução do século XX, na Rússia de 1917, postulava claramente na sua “Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, que “a arma da crítica não pode substituir, é claro, a crítica das armas”.
      A alusão direta à necessidade prática de uma revolução para mudar a sociedade, mesmo pelas armas, era uma crítica aos hegelianos de esquerda, que se limitavam a questionar as instituições no plano das ideias, sem trazer a filosofia para a terra, ao plano das coisas e da ação.
       No entanto, Marx não desvalorizava a luta com palavras. Foi jornalista por um bom tempo, escrevendo inúmeros artigos de análise do capitalismo, antes e depois de publicar o célebre “Manifesto Comunista”, de 1848 e, mais tarde, “O Capital”, em 1867. Este último tinha como subtítulo “Crítica da Economia Política”
       Tanto Kant quanto Marx disseram que o mundo, depois das grandes revoluções, nunca mais poderia ser o mesmo. Não seria mais possível pensar como se pensava antes. Efeito da crítica e de sua realização prática.
       Os conservadores diriam que, pelo menos, o comunismo preconizado pela revolução russa acabou. Sem dúvida, o comunismo pertence hoje ao passado. Mas, como sustentaram dois filósofos – digamos-- pós-comunistas, Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, a questão do comunismo sobreviveu ao seu naufrágio: ela permanece no coração do nosso tempo.
      Estão aí, à luz do dia, os problemas da injustiça social, da desigualdade, da exploração, da concentração do Capital nas mãos de um por cento da população mundial, da escassez, das crises sucessivas do capitalismo, da anarquia do consumo desenfreado, da destruição da natureza em nome do lucro, da falta de fraternidade e de paz nas sociedades atuais.
      O pensamento conservador está certo ao fazer a sua crítica dos resultados da revolução comunista, cuja forte atração no século XX era menos inspirada nas promessas de felicidade social do que na oportunidade oferecida a uma esquerda pretensamente revolucionária de criar um Estado de tipo totalitário.
      Não foi possível reformar por dentro os regimes que reivindicavam o nome de comunistas e desabaram em sua maioria por inconsistência. Decepcionaram o assim chamado proletariado, a classe que assumiria o poder para “acabar com todas as classes”. Destruíram o sonho marxiano de uma sociedade em que se articulariam a liberdade e a igualdade, a democracia e a socialização dos meios de produção.
     O que os conservadores ainda não entenderam é que o fenômeno comunista não pode ser inteligível nem como um parêntese na história, uma espécie de aberração saída da “cabeça insana” de Marx, nem como um produto da necessidade – nasceu e se articulou da conjunção imprevisível de formas heterogêneas de organização, de ação e de pensamentos no mundo moderno, como disse Lefort.
   Para compreender o comunismo, assim como para apreender a complexidade do capitalismo, é preciso lançar um olhar abrangente sobre a sua realidade concreta, sobre os fatos intrincados – sociológicos, políticos, econômicos, jurídicos, morais, psíquicos – que lhe conferem sua especificidade. Não se pode esquecer também que o comunismo nasceu da crítica ao capitalismo, o que implica vários elementos de identificação inconscientes e involuntários. A própria emergência de uma classe dominante de burocratas e de dirigentes pode ser parte desse fenômeno.
     Estão enganados os que reduziram o comunismo à existência de um partido único ou mesmo ao poder de uma ideologia, explicando esses dois fatores à luz do efeito de sua decadência. A crítica precisa ser renovada também sobre esse aspecto.
     O capitalismo, por sua vez, parece eterno e indestrutível no mundo contemporâneo, apesar de terremotos sucessivos. Será eterno?
     A falta de alternativa aparente não elimina a crítica. Pode-se dizer que o capitalismo é um regime de crise permanente, tal o grau de instabilidade e de barbárie que incrementa. Não despareceram, a despeito do fim do comunismo, nenhum dos elementos contraditórios das sociedades regidas pelo Capital.
     Se a crítica das armas não é possível no momento, a arma da crítica não perdeu sua vigência. Lutar com palavras, como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade, parece ser “a luta mais vã/ no entanto, lutamos/ mal rompe a manhã”. 

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