Reinaldo Lobo
Os conservadores não apreciam a
palavra crítica. Na melhor das hipóteses, aceitam-na acompanhada de um
adjetivo: “construtiva”. Ora, não existe crítica construtiva, assim como não há
uma destrutiva. Criticar é examinar as condições de possibilidade de uma
situação ou de um fenômeno; é questionar, interrogar, refletir e interpretar.
É verdade, dizia Stendhal, que um bom
raciocínio ofende. Criticar é o contrário de resignar-se. Significa
inquietação, pensamento com liberdade. É quase um sinônimo de pensar. “Pensar é
dizer ‘não’”, mostrou o filósofo Gaston Bachelard no século passado. Sócrates,
um dos primeiros grandes, foi condenado a se envenenar por ser um crítico do
poder em seu tempo.
Há algo de profundamente “negativo” na
crítica. Nega o que está estabelecido, aceito ou a opacidade das aparências. Vê
o que não pode ser visto facilmente. Rompe, às vezes, com o “senso comum”, mas
não quer dizer “falar mal” de algo ou de alguém. Pode ser vista como um convite
a destruir uma ordem social e política. Não é a própria destruição.
A crítica acompanha -- é verdade-- muitas
revoluções. Às vezes, está na origem delas. O maior filósofo do século XVIII, o
alemão Immanuel Kant, foi um entusiasta da Revolução Francesa de 1789 e representou
uma expressão intelectual desse movimento. Suas ideias de autonomia e igualdade
identificavam-se com o lema revolucionário: “Liberté, Egalité, Fraternité”.
Kant inaugurou toda uma filosofia moderna
sobre a base da palavra crítica. Suas três perguntas básicas: “O que consigo
saber? O que posso fazer? O que posso esperar? ”, constituem uma crítica do
conhecimento, da ética e da história. Dizia
que aquele que provou uma vez da crítica fica enojado para sempre de todo
palavreado dogmático. Era radicalmente um democrata e um defensor da liberdade
de pensamento.
Já Karl Marx, autor que inspiraria a
maior revolução do século XX, na Rússia de 1917, postulava claramente na sua
“Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, que “a arma da
crítica não pode substituir, é claro, a crítica das armas”.
A alusão direta à necessidade prática
de uma revolução para mudar a sociedade, mesmo pelas armas, era uma crítica aos
hegelianos de esquerda, que se limitavam a questionar as instituições no plano
das ideias, sem trazer a filosofia para a terra, ao plano das coisas e da ação.
No entanto, Marx não desvalorizava a
luta com palavras. Foi jornalista por um bom tempo, escrevendo inúmeros artigos
de análise do capitalismo, antes e depois de publicar o célebre “Manifesto
Comunista”, de 1848 e, mais tarde, “O Capital”, em 1867. Este último tinha como
subtítulo “Crítica da Economia Política”
Tanto Kant quanto Marx disseram que o
mundo, depois das grandes revoluções, nunca mais poderia ser o mesmo. Não seria mais possível pensar como se pensava antes. Efeito da crítica e de sua
realização prática.
Os conservadores diriam que, pelo menos,
o comunismo preconizado pela revolução russa acabou. Sem dúvida, o comunismo
pertence hoje ao passado. Mas, como sustentaram dois filósofos – digamos--
pós-comunistas, Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, a questão do comunismo
sobreviveu ao seu naufrágio: ela permanece no coração do nosso tempo.
Estão
aí, à luz do dia, os problemas da injustiça social, da desigualdade, da
exploração, da concentração do Capital nas mãos de um por cento da população
mundial, da escassez, das crises sucessivas do capitalismo, da anarquia do
consumo desenfreado, da destruição da natureza em nome do lucro, da falta de
fraternidade e de paz nas sociedades atuais.
O pensamento conservador está certo ao
fazer a sua crítica dos resultados da revolução comunista, cuja forte atração
no século XX era menos inspirada nas promessas de felicidade social do que na
oportunidade oferecida a uma esquerda pretensamente revolucionária de criar um
Estado de tipo totalitário.
Não
foi possível reformar por dentro os regimes que reivindicavam o nome de
comunistas e desabaram em sua maioria por inconsistência. Decepcionaram o assim
chamado proletariado, a classe que assumiria o poder para “acabar com todas as
classes”. Destruíram o sonho marxiano de uma sociedade em que se articulariam a
liberdade e a igualdade, a democracia e a socialização dos meios de produção.
O que os conservadores ainda não
entenderam é que o fenômeno comunista não pode ser inteligível nem como um
parêntese na história, uma espécie de aberração saída da “cabeça insana” de
Marx, nem como um produto da necessidade – nasceu e se articulou da conjunção
imprevisível de formas heterogêneas de organização, de ação e de pensamentos no
mundo moderno, como disse Lefort.
Para compreender o comunismo, assim como
para apreender a complexidade do capitalismo, é preciso lançar um olhar
abrangente sobre a sua realidade concreta, sobre os fatos intrincados –
sociológicos, políticos, econômicos, jurídicos, morais, psíquicos – que lhe
conferem sua especificidade. Não se pode esquecer também que o comunismo nasceu
da crítica ao capitalismo, o que implica vários elementos de identificação
inconscientes e involuntários. A própria emergência de uma classe dominante de
burocratas e de dirigentes pode ser parte desse fenômeno.
Estão enganados os que reduziram o
comunismo à existência de um partido único ou mesmo ao poder de uma ideologia,
explicando esses dois fatores à luz do efeito de sua decadência. A crítica
precisa ser renovada também sobre esse aspecto.
O capitalismo, por sua vez, parece eterno
e indestrutível no mundo contemporâneo, apesar de terremotos sucessivos. Será
eterno?
A falta de alternativa aparente não
elimina a crítica. Pode-se dizer que o capitalismo é um regime de crise
permanente, tal o grau de instabilidade e de barbárie que incrementa. Não
despareceram, a despeito do fim do comunismo, nenhum dos elementos contraditórios
das sociedades regidas pelo Capital.
Se a crítica das armas não é possível no
momento, a arma da crítica não perdeu sua vigência. Lutar com palavras, como
dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade, parece ser “a luta mais vã/ no
entanto, lutamos/ mal rompe a manhã”.
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