Reinaldo Lobo
O mundo se pergunta boquiaberto de onde vem
a força social e política que elegeu Donald Trump. Da classe média branca
empobrecida, respondem alguns. Do “lumpen proletariado“, dizem outros. Da
decepção dos mais velhos com a globalização, afirmam os sociólogos. Do medo da
imigração que rouba empregos e do fracasso dos democratas em distribuir renda,
insistem os economistas.
Todos talvez tenham fragmentos de razão. O
fenômeno de um arrivista chegar à presidência da maior democracia liberal do
mundo, com uma linguagem confusa e inclinações fascistas, não é pouca coisa.
Exige no mínimo vários ângulos de uma abordagem multidisciplinar. Mas é
possível pensarmos, além disso, que os vários pedaços da realidade
norte-americana não apareçam ainda como uma Gestalt mais acabada, isto é, um
conjunto significativo que dê visão precisa do que está ocorrendo.
Uma
hipótese a ser considerada sobre a ascensão de Trump, assim como a respeito do
Brexit, a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, é que sejam um resultado da
mudança qualitativa do Capital no século XXI, gestada nas últimas décadas do
século passado. Não é difícil de
entender.
Com a avassaladora globalização que
destruiu fronteiras econômicas e barreiras culturais, com a expansão de
monopólios transnacionais e a política neoliberal que vigorou em mais de 160
países do planeta nas últimas décadas do século XX, não mudou só a forma do
capitalismo mundial. Mudou a sua própria composição. Sua natureza mais íntima. Mudaram as relações de produção e as forças
produtivas, deslocando seu eixo lógico. Mudou a estrutura econômica e social,
com consequências inevitáveis na política.
Nos tempos de constituição e de
desenvolvimento do capitalismo mundial, em sua fase parcialmente globalizada, a
sua contradição principal era entre o Capital e o Trabalho, tal como foi
diagnosticada por Marx e vários outros economistas. As classes, as hierarquias,
os grupos de pressão, os sindicatos, as lutas socais, a produção e a apropriação,
giravam em torno desse núcleo lógico.
Hoje o eixo mudou, após as crises
sucessivas iniciadas lá por 1914, passando por 1929 e culminando em 2008,
seguidas de reordenamentos, primeiro, monopolizantes, depois estatizantes, como
no New Deal norte-americano e do Welfare State europeu, e mais tarde
neoliberais, como nos períodos pós Reagan e Thatcher, que vem até recentemente.
Se quisermos usar uma linguagem
consagrada pelo marxismo, pode-se conjecturar que a contradição fundamental do
capitalismo atual é a relação entre o crescimento econômico e o rendimento do
capital. Um dos primeiros autores a notar essa relação contraditória entre
renda e crescimento foi o filósofo e economista greco-francês Cornelius
Castoriadis, para quem existia de longa data um mito do crescimento infinito da
produção, do emprego e da tecnologia na sociedade capitalista, combinada com o
consumo. Na relação com a concentração e aumento da renda, o crescimento perde,
gerando um descompasso permanente e a exclusão de milhões de pessoas do
processo econômico.
Outro que fez o mesmo diagnóstico, neste
caso de modo mais exaustivo e técnico, é o professor Thomas Piketty, da London
School Of Economics e do MIT, hoje lecionando na École de Economie de Paris. Ele
é o autor de “O Capital no Século XXI”, onde apresenta uma abundância de dados
para demonstrar que a taxa de rendimento do capital supera em muito o crescimento
econômico. Isso provoca uma grande concentração de renda, ao ponto de cerca de
um por cento da humanidade reter o equivalente a praticamente todo o resto da
riqueza mundial.
O descompasso estrutural gera um
circuito de desigualdade que, levado ao às suas últimas consequências, pode atrair os descontentes de todo o planeta para causas como as propostas
por Trump ao eleitorado norte-americano de áreas falidas. As migrações, as
crises cíclicas do Terceiro Mundo e a monopolização da economia em escala
mundial são alguns dos efeitos extremos da crise do Capital. Os pequenos
empresários do centro norte e meio leste, bem como os agricultores do meio
oeste dos EUA, foram a massa de manobra do populismo de direita.
O capitalismo é um regime que se
alimenta das crises. Elas destroem mercados e abrem novas oportunidades. São
conhecidos os inúmeros casos de superação das crises pela abertura de novos
mercados. Uma outra forma de resolvê-las têm sido as guerras. Outra, as
mudanças políticas.
O valor principal do regime do Capital é
econômico. O lucro e a renda. Os valores humanos estão em outro nível, mais
baixo, de consideração. Todos sabem que o capitalismo é um regime de crises,
mas nem todos têm consciência de que as crises não representam uma ameaça ao
sistema, nem mesmo a sua inevitável decadência. Fazem parte de sua lógica
interna e garantem sua sobrevivência. Essa é a “plasticidade” do capitalismo.
Além de abrir ou fechar mercados, as crises
cumprem a função de inovar dentro do sistema, de ocupar áreas e de destruir
outras. Os bairros inteiros destruídos de algumas cidades norte-americanas, de
que tanto falou Trump na campanha, comoveram o eleitorado branco empobrecido. São
o resultado da globalização na área da indústria automobilística e da
siderurgia.
O medo que setores da Inglaterra têm da
migração dentro da União Europeia tem o mesmo sentido sintomático de desespero
diante dos resultados da internacionalização monopolista e da concentração da renda. As populações de zonas
saturadas ou deslocadas dos centros beneficiários do Capital são presas fáceis
do nacionalismo e da xenofobia.
A hora é, infelizmente, a do sucesso da
direita e do extremismo fascista.
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