quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O CAPITAL DE TRUMP


                                                                      Reinaldo Lobo
    O mundo se pergunta boquiaberto de onde vem a força social e política que elegeu Donald Trump. Da classe média branca empobrecida, respondem alguns. Do “lumpen proletariado“, dizem outros. Da decepção dos mais velhos com a globalização, afirmam os sociólogos. Do medo da imigração que rouba empregos e do fracasso dos democratas em distribuir renda, insistem os economistas.
    Todos talvez tenham fragmentos de razão. O fenômeno de um arrivista chegar à presidência da maior democracia liberal do mundo, com uma linguagem confusa e inclinações fascistas, não é pouca coisa. Exige no mínimo vários ângulos de uma abordagem multidisciplinar. Mas é possível pensarmos, além disso, que os vários pedaços da realidade norte-americana não apareçam ainda como uma Gestalt mais acabada, isto é, um conjunto significativo que dê visão precisa do que está ocorrendo.
     Uma hipótese a ser considerada sobre a ascensão de Trump, assim como a respeito do Brexit, a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, é que sejam um resultado da mudança qualitativa do Capital no século XXI, gestada nas últimas décadas do século passado.  Não é difícil de entender.
      Com a avassaladora globalização que destruiu fronteiras econômicas e barreiras culturais, com a expansão de monopólios transnacionais e a política neoliberal que vigorou em mais de 160 países do planeta nas últimas décadas do século XX, não mudou só a forma do capitalismo mundial. Mudou a sua própria composição. Sua natureza mais íntima.  Mudaram as relações de produção e as forças produtivas, deslocando seu eixo lógico. Mudou a estrutura econômica e social, com consequências inevitáveis na política.
      Nos tempos de constituição e de desenvolvimento do capitalismo mundial, em sua fase parcialmente globalizada, a sua contradição principal era entre o Capital e o Trabalho, tal como foi diagnosticada por Marx e vários outros economistas. As classes, as hierarquias, os grupos de pressão, os sindicatos, as lutas socais, a produção e a apropriação, giravam em torno desse núcleo lógico.
      Hoje o eixo mudou, após as crises sucessivas iniciadas lá por 1914, passando por 1929 e culminando em 2008, seguidas de reordenamentos, primeiro, monopolizantes, depois estatizantes, como no New Deal norte-americano e do Welfare State europeu, e mais tarde neoliberais, como nos períodos pós Reagan e Thatcher, que vem até recentemente.
       Se quisermos usar uma linguagem consagrada pelo marxismo, pode-se conjecturar que a contradição fundamental do capitalismo atual é a relação entre o crescimento econômico e o rendimento do capital. Um dos primeiros autores a notar essa relação contraditória entre renda e crescimento foi o filósofo e economista greco-francês Cornelius Castoriadis, para quem existia de longa data um mito do crescimento infinito da produção, do emprego e da tecnologia na sociedade capitalista, combinada com o consumo. Na relação com a concentração e aumento da renda, o crescimento perde, gerando um descompasso permanente e a exclusão de milhões de pessoas do processo econômico.
        Outro que fez o mesmo diagnóstico, neste caso de modo mais exaustivo e técnico, é o professor Thomas Piketty, da London School Of Economics e do MIT, hoje lecionando na École de Economie de Paris. Ele é o autor de “O Capital no Século XXI”, onde apresenta uma abundância de dados para demonstrar que a taxa de rendimento do capital supera em muito o crescimento econômico. Isso provoca uma grande concentração de renda, ao ponto de cerca de um por cento da humanidade reter o equivalente a praticamente todo o resto da riqueza mundial.
        O descompasso estrutural gera um circuito de desigualdade que, levado ao às suas últimas consequências, pode atrair os descontentes de todo o planeta para causas como as propostas por Trump ao eleitorado norte-americano de áreas falidas. As migrações, as crises cíclicas do Terceiro Mundo e a monopolização da economia em escala mundial são alguns dos efeitos extremos da crise do Capital. Os pequenos empresários do centro norte e meio leste, bem como os agricultores do meio oeste dos EUA, foram a massa de manobra do populismo de direita.
        O capitalismo é um regime que se alimenta das crises. Elas destroem mercados e abrem novas oportunidades. São conhecidos os inúmeros casos de superação das crises pela abertura de novos mercados. Uma outra forma de resolvê-las têm sido as guerras. Outra, as mudanças políticas.
       O valor principal do regime do Capital é econômico. O lucro e a renda. Os valores humanos estão em outro nível, mais baixo, de consideração. Todos sabem que o capitalismo é um regime de crises, mas nem todos têm consciência de que as crises não representam uma ameaça ao sistema, nem mesmo a sua inevitável decadência. Fazem parte de sua lógica interna e garantem sua sobrevivência. Essa é a “plasticidade” do capitalismo.
        Além de abrir ou fechar mercados, as crises cumprem a função de inovar dentro do sistema, de ocupar áreas e de destruir outras. Os bairros inteiros destruídos de algumas cidades norte-americanas, de que tanto falou Trump na campanha, comoveram o eleitorado branco empobrecido. São o resultado da globalização na área da indústria automobilística e da siderurgia.
       O medo que setores da Inglaterra têm da migração dentro da União Europeia tem o mesmo sentido sintomático de desespero diante dos resultados da internacionalização monopolista e da  concentração da renda. As populações de zonas saturadas ou deslocadas dos centros beneficiários do Capital são presas fáceis do nacionalismo e da xenofobia.

       A hora é, infelizmente, a do sucesso da direita e do extremismo fascista. 

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