REINALDO LOBO
O sistema atual chamado de democracia não
é democrático de verdade. Vivemos em sociedades onde os cidadãos não têm a
possibilidade efetiva de participar da legislação, do governo, da jurisdição e,
enfim, da instituição da sociedade. Existem arremedos de participação. O
resultado é a falta de confiança na Política e na Lei -- hoje maior do que nunca,
como lembrou Zygmunt Bauman em uma de suas últimas entrevistas antes de
falecer.
“Todos são iguais perante a Lei, mas alguns
são mais iguais do que outros”. Você já ouviu essa frase. Revela a natureza das
democracias contemporâneas. De todas elas, não só do Brasil. Não se refere a
uma falha legislativa localizada capaz de transformar bandidos em inocentes ou,
ao contrário, culpar quem não cometeu algum crime. Não é uma brecha no sistema.
É o próprio sistema. Expressa a essência das instituições jurídicas e do Estado
nesses regimes em decadência.
A desigualdade está na base da corrosão
institucional, apesar da equidade formal. É a fonte da violência e da barbárie
nas sociedades que se consideram “democracias liberais”. No Brasil atual, cujo
grau de desigualdade social e de participação política precária é cada vez
maior neste momento, tem havido explosões de violência e de criminalidade
cíclicas. É possível postular um caráter sistêmico permanente, originário da
mesma natureza e da mesma fonte. O que desestabiliza a chamada “paz social” é a
própria base instável de uma democracia precária.
Deve-se acrescentar à situação brasileira o
fato de o País ser hoje uma sociedade de massas, como os Estados Unidos ou a
Índia. Há algumas décadas, os sociólogos
se surpreendiam com a diferença entre a criminalidade brasileira e a
norte-americana. Dizia-se: lá, existiam massacres aleatórios provocados por
atiradores enlouquecidos que buscavam chamar a atenção e participar de forma
desesperada; aqui, matava-se apenas por paixão ou por dinheiro. Estamos hoje
assemelhados aos EUA em crimes
randômicos.
A anomia, a falta de reconhecimento no
trabalho e na vida, a existência precária, a carência de identidade e a
dependência de decisões dos outros – tudo isso somado à miséria e à enorme
desigualdade social faz lotar as prisões de gente pobre e infeliz. Ainda
existem crimes de paixão e por ambição, claro, mas constituem apenas um desvio
da curva. A regra tem-se tornado a configuração de formas brutais de violência.
Dizia-se que o assassino enlouquecido, o
serial-killer, as matanças coletivas e as guerras de gangues eram um fenômeno
estrangeiro, alheio a um “povo pacífico e ordeiro”, como diz o clichê do
discurso de juízes, políticos e autoridades em geral.
As nossas prisões não estão repletas de
seres humanos-- desesperados e embrutecidos por infâncias e famílias de um meio
incapaz de dar continência e educação. Nada disso. São, como diz a linguagem
jornalística-policial, “elementos” e “bandidos”. Nessa condição, podem ser
mortos como mosquitos da dengue ou moscas varejeiras, privados de sua condição
humana.
A boa sociedade, os homens de bem,
sentem-se aliviados quando esses “elementos” são assassinados pelo Estado ou
por eles mesmos, numa guerra de gangues pela posse e distribuição das drogas.
Um conjunto de fatores faz lotar nossos
presídios infectos, inclusive a existência de uma absurda “guerra às drogas”,
iniciada mundialmente lá atrás por um governante norte-americano, Richard
Nixon, deposto por ser nada menos do que um delinquente. Outro ponto, especificamente
brasileiro, é o desprezo da boa sociedade pelos Direitos Humanos.
Apesar da conjunção de vários motivos para
a existência da violência brasileira atual, existe um que postulamos hoje como central:
a inexistência de representação legítima da própria população. O que parece ser
apenas um defeito institucional localizado é, na verdade, a essência da
instabilidade geral. Esse ponto provoca inércia do sistema democrático e ondas
centrípetas de sequelas e efeitos colaterais. É o foco permanente de uma
barbárie latente, pronta para explodir de tempos em tempos.
Só há democracia no dia das eleições – e,
mesmo assim, os candidatos são selecionados por partidos comprometidos com
interesses os mais diversos. Não surpreende que existam representantes do
“povo” eleitos pelo PCC, o grupo de traficantes e assassinos mais conhecido.
No dia seguinte ao da eleição, o povo é privado
de voz ativa e seus “representantes” – ligados muitas vezes a grupos econômicos
e áreas de influência--, se apropriam das funções legislativas e executivas. E
adeus, até as próximas eleições. Quanto aos juízes e promotores, são escolhidos
por regras mais particulares, ditadas pela sua própria corporação.
O quadro se agrava quando sabemos, pelas
estatísticas dos economistas, que 8 pessoas no mundo detém riqueza equivalente
a 3.6 bilhões de outros habitantes da Terra.
Uma situação como essa não se resolve com
maquiagem e reformas paliativas, mas supõe mudanças radicais nas instituições
atuais. Nesse sentido, tem implícito um projeto que pode ser chamado de
revolucionário, entendendo-se que revolução não significa massacres, banhos de
sangue, o extermínio dos burocratas, a guilhotina ou a tomada do Palácio de
Inverno. Representa a necessidade de mudanças de ordem política por iniciativas
de baixo para cima, partindo da própria população, sobretudo dos mais lúcidos e
dos que trabalham para sustentar a riqueza das minorias.
Os regimes existentes no chamado mundo
ocidental são erradamente denominados “democracias liberais”, mas constituem de fato
“oligarquias liberais”—o que é uma contradição de termos, pois um sistema democrático
não poderia nunca ser oligárquico, pois repousa por definição sobre a autonomia
dos cidadãos.
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