quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

PARA QUE SERVE A POLÍTICA?



                                                              Reinaldo Lobo

         Muita gente responde facilmente a essa pergunta. Dizem: “serve para organizar, civilizar, manipular, enganar, governar o animal humano, roubar, mandar, representar o povo, buscar a felicidade geral, o bem comum, evitar a guerra direta, manter privilégios, administrar e expressar o desejo de poder e grandeza”. Há um pouco de verdade em cada um desses ângulos e é do senso comum considerar a política algo inevitável para conter os impulsos hobbesianos de combater os vizinhos. Será só isso?
        Inúmeros filósofos e sociólogos deram respostas à questão, mas ela permanece aberta. Quanto aos psicanalistas, são os mais embaraçados ao lidar com o assunto. Ou o ignoram olimpicamente ou, então, reduzem o problema a algumas referências a Freud e aos conflitos psíquicos. A política, sob essa ótica, seria uma simples amplificação de fantasias e desejos inconscientes dos indivíduos.
        Os que escreveram sobre as relações entre a psicanálise e a política limitaram-se geralmente às formulações isoladas de Freud ou às suas incursões nas áreas da filosofia da história, da sociedade e da antropologia, como “Mal-estar na Civilização”, “O Futuro de uma Ilusão”, “Moises e o Monoteísmo”. Muitos tiraram conclusões “pessimistas” ou mesmo “reacionárias” desses escritos, a respeito das implicações da psicanálise quanto aos projetos de transformação política e social.
        Os psicanalistas têm mostrado uma certa “preguiça” em refletir sobre isso e, quando o fazem, é de maneira um tanto apressada e negligente, reduzindo tudo à privacidade dos consultórios ou, em casos raros, confirmando aquelas “conclusões” conservadoras.
       Há um mito psicanalítico sobre a moderação, a paciência e a neutralidade que é escandalosamente ... político.
        Uma exceção foi o greco-francês Cornelius Castoriadis, simultaneamente filósofo e psicanalista, ao examinar essas relações entre a política e a psicanálise sem nenhum preconceito e com muita liberdade. Ele não ignorou obras importantes como “Totem e Tabu” nem as inúmeras formulações de Freud sobre a co-presença do individual e do social na análise, sem que uma face se subordine à outra.
         Castoriadis, se não respondeu à questão, fez pelo menos as perguntas certas, em lugar de se fixar em algumas opiniões esparsas de Freud e mesmo de outros autores, como Klein, Lacan e Bion. Perguntou sobre a significação da própria psicanálise, como teoria e como prática.  Sobre suas implicações internas e externas, interrogando se ela não teria nada a ver com o movimento emancipatório do Ocidente. Se o esforço de conhecer o inconsciente e de transformar o sujeito não tem nenhuma relação com a questão da liberdade e com as questões milenares da filosofia. Se a psicanálise teria sido possível fora das condições sociais e históricas que a tornaram possível na Europa. Se o conhecimento do inconsciente não teria nada a ensinar sobre a socialização dos indivíduos, portanto também sobre as instituições sociais e a política.
        Esse autor pouco conhecido no Brasil, falecido em 1997, indagava ainda por que a psicanálise como prática no campo individual seria automaticamente nula quando se passa para o campo coletivo. O que poderia haver na práxis psicanalítica capaz de ensinar algo sobre a conquista da autonomia humana?
        Essas perguntas raramente foram formuladas, em parte, pela ânsia dos psicanalistas de se afastarem das disciplinas humanas e se voltarem para um outro mito: o modelo da ciência positiva da natureza.
         Em mais de trinta anos de reflexão e pesquisa, Castoriadis postulou que a verdadeira política, aquela que se desenvolveu desde a Grécia antiga, tem algo intrínseco a ver com a psicanálise, no que se refere aos objetivos. Tomando o modelo da práxis e da criação psicanalíticas, ele sugeriu que o processo de passagem da dependência (heteronomia) para a autonomia (independência) está presente em ambas. Ou seja, o que interessa não são apenas interpretações sobre as instituições políticas, mas a correlação estrutural entre a própria disciplina psicanalítica e a natureza da política.
        A política é o que diz respeito ao poder em uma sociedade. O poder em uma sociedade  sempre terá regras a serem respeitadas, como “Não matarás”, e que concernem às decisões da coletividade para sobreviver. A liberdade não é algo espontâneo e utópico, do tipo “tudo pode”, mas decorre de decisões responsáveis sobre a própria coletividade – tem, pois, um fundamento ético.
      O objetivo da política, assim como o da psicanálise, não é o poder em si mesmo nem a felicidade humana, mas a liberdade.
       Ambas têm isso em comum: a liberdade como meta, o que implica em emancipação tanto individual como coletiva, isto é, os sujeitos se tornarem responsáveis pelo seu destino, decisões, regras, constituindo uma sociedade em que predomine autonomia e não dependência heteronômica.
       A verdadeira política deveria servir para a emancipação humana, efeito também de uma psicanálise bem-sucedida, cujo processo não acaba quando o paciente finaliza sua “cura”, mas que prossegue após, na medida em que o sujeito vem- a- ser sem descansar, pois o inconsciente não acaba, nem os riscos da regressão à heteronomia.   A democracia constituí-se assim: a liberdade é escolha, conflitos sucessivos, emancipação e responsabilidade.

        Na contribuição de Castoriadis, assim como penso, não existe liberdade “com” responsabilidade. Ela é a própria responsabilidade.

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