Reinaldo Lobo
Muita gente responde facilmente a essa
pergunta. Dizem: “serve para organizar, civilizar, manipular, enganar, governar
o animal humano, roubar, mandar, representar o povo, buscar a felicidade geral,
o bem comum, evitar a guerra direta, manter privilégios, administrar e
expressar o desejo de poder e grandeza”. Há um pouco de verdade em cada um
desses ângulos e é do senso comum considerar a política algo inevitável para
conter os impulsos hobbesianos de combater os vizinhos. Será só isso?
Inúmeros filósofos e sociólogos deram
respostas à questão, mas ela permanece aberta. Quanto aos psicanalistas, são os
mais embaraçados ao lidar com o assunto. Ou o ignoram olimpicamente ou, então,
reduzem o problema a algumas referências a Freud e aos conflitos psíquicos. A
política, sob essa ótica, seria uma simples amplificação de fantasias e desejos
inconscientes dos indivíduos.
Os que escreveram sobre as relações
entre a psicanálise e a política limitaram-se geralmente às formulações
isoladas de Freud ou às suas incursões nas áreas da filosofia da história, da
sociedade e da antropologia, como “Mal-estar na Civilização”, “O Futuro de uma
Ilusão”, “Moises e o Monoteísmo”. Muitos tiraram conclusões “pessimistas” ou
mesmo “reacionárias” desses escritos, a respeito das implicações da psicanálise
quanto aos projetos de transformação política e social.
Os psicanalistas têm mostrado uma certa
“preguiça” em refletir sobre isso e, quando o fazem, é de maneira um tanto
apressada e negligente, reduzindo tudo à privacidade dos consultórios ou, em
casos raros, confirmando aquelas “conclusões” conservadoras.
Há um mito psicanalítico sobre a
moderação, a paciência e a neutralidade que é escandalosamente ... político.
Uma exceção foi o greco-francês
Cornelius Castoriadis, simultaneamente filósofo e psicanalista, ao examinar
essas relações entre a política e a psicanálise sem nenhum preconceito e com
muita liberdade. Ele não ignorou obras importantes como “Totem e Tabu” nem as
inúmeras formulações de Freud sobre a co-presença do individual e do social na
análise, sem que uma face se subordine à outra.
Castoriadis, se não respondeu à
questão, fez pelo menos as perguntas certas, em lugar de se fixar em algumas
opiniões esparsas de Freud e mesmo de outros autores, como Klein, Lacan e Bion.
Perguntou sobre a significação da própria psicanálise, como teoria e como
prática. Sobre suas implicações internas
e externas, interrogando se ela não teria nada a ver com o movimento
emancipatório do Ocidente. Se o esforço de conhecer o inconsciente e de
transformar o sujeito não tem nenhuma relação com a questão da liberdade e com
as questões milenares da filosofia. Se a psicanálise teria sido possível fora
das condições sociais e históricas que a tornaram possível na Europa. Se o
conhecimento do inconsciente não teria nada a ensinar sobre a socialização dos
indivíduos, portanto também sobre as instituições sociais e a política.
Esse autor pouco conhecido no Brasil,
falecido em 1997, indagava ainda por que a psicanálise como prática no campo
individual seria automaticamente nula quando se passa para o campo coletivo. O
que poderia haver na práxis psicanalítica capaz de ensinar algo sobre a
conquista da autonomia humana?
Essas perguntas raramente foram
formuladas, em parte, pela ânsia dos psicanalistas de se afastarem das
disciplinas humanas e se voltarem para um outro mito: o modelo da ciência
positiva da natureza.
Em mais de trinta anos de reflexão e pesquisa,
Castoriadis postulou que a verdadeira política, aquela que se desenvolveu desde
a Grécia antiga, tem algo intrínseco a ver com a psicanálise, no que se refere
aos objetivos. Tomando o modelo da práxis e da criação psicanalíticas, ele
sugeriu que o processo de passagem da dependência (heteronomia) para a
autonomia (independência) está presente em ambas. Ou seja, o que interessa não
são apenas interpretações sobre as instituições políticas, mas a correlação
estrutural entre a própria disciplina psicanalítica e a natureza da política.
A política é o que diz respeito ao
poder em uma sociedade. O poder em uma sociedade sempre terá regras a serem respeitadas, como
“Não matarás”, e que concernem às decisões da coletividade para sobreviver. A
liberdade não é algo espontâneo e utópico, do tipo “tudo pode”, mas decorre de
decisões responsáveis sobre a própria coletividade – tem, pois, um fundamento
ético.
O objetivo da política, assim como o da
psicanálise, não é o poder em si mesmo nem a felicidade humana, mas a
liberdade.
Ambas têm isso em comum: a liberdade
como meta, o que implica em emancipação tanto individual como coletiva, isto é,
os sujeitos se tornarem responsáveis pelo seu destino, decisões, regras,
constituindo uma sociedade em que predomine autonomia e não dependência
heteronômica.
A verdadeira política deveria servir
para a emancipação humana, efeito também de uma psicanálise bem-sucedida, cujo
processo não acaba quando o paciente finaliza sua “cura”, mas que prossegue
após, na medida em que o sujeito vem- a- ser sem descansar, pois o inconsciente
não acaba, nem os riscos da regressão à heteronomia. A democracia constituí-se assim: a liberdade é escolha,
conflitos sucessivos, emancipação e responsabilidade.
Na contribuição de Castoriadis, assim
como penso, não existe liberdade “com” responsabilidade. Ela é a própria
responsabilidade.
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