Reinaldo Lobo
No
romance “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, a personagem de um
aristocrata e latifundiário comenta, em face de uma possível revolução
republicana: “Se não nos envolvermos nisso, os outros implantam a república. Se
quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro? ”
Esse
tipo de cinismo das classes dominantes --retratado nessa obra clássica
reeditada agora primorosamente no Brasil—é também uma tradição das nossas
elites conservadoras. Muitos conhecem a frase do mineiro Antônio Carlos que
antecedeu a Revolução de 30: ”Façamos a revolução antes que o povo a
faça”.
Hoje, essa tradição se renova no apoio da nossa “oligarquia liberal”
(latifundiários, industriais, managers de fundos de pensão, burocratas do
Estado, políticos, tecnocratas e mesmo juízes e promotores) a duas atitudes
dominantes na cena política e econômica:
As “reformas” implementadas pelo governo do
melífluo e oportunista Michel Temer, que são, na verdade, medidas
ultraconservadoras destinadas a proteger os interesses dominantes em nome da
restauração da estabilidade econômica, atingida pela crise e pelos erros do
“inimigo populista”.
A alardeada campanha anticorrupção do tipo “Mãos
Limpas”, desencadeada por uma parte do Judiciário e pela mídia, apoiada pelas
classes médias e a população em geral, cujo alvo, a corrupção, foi instituída
historicamente por essas mesmas elites “liberais” e incrementada recentemente pelo
empresariado das empreiteiras da indústria da construção, pelos burocratas
estatais e por bancos públicos e privados.
O fio principal que ainda sustenta no poder o
governo corrupto de Temer é o cinismo. De seus próprios ministros e do
presidente, em primeiro lugar. Como tiveram inicialmente uma carta branca das
classes dominantes para dar o golpe parlamentar que derrubou a presidente
Dilma, os membros do atual governo não dão a menor importância para sua
impopularidade e descrédito. Foram colocados lá -- à custa de muito dinheiro
das mesmas propinas do empresariado denunciadas pela operação Lava Jato-- com
uma única missão: realizar as “reformas” restauradoras da ordem e da hierarquia
social tradicional e restabelecer a “confiança do Mercado”.
O cinismo prevalecente afeta também a
parte da classe média decepcionada com as mais recentes revelações da louvada
Lava Jato, que parecia atingir só o odiado PT, mas trouxe à tona fatos
escabrosos envolvendo o ex-candidato tucano Aécio Neves, o próprio Temer, cujo
assessor foi apanhado com a mala cheia de dinheiro vivo e uma série de quase
dois mil políticos. Muitos deles ajudaram na deposição do governo anterior em
nome da luta anticorrupção e agora estão presos ou delatando seus pares.
Se dependesse dessa fração da classe
média, todos os políticos iriam para a cadeia, mas, constrangida por seu
próprio engano em relação a seus heróis, não faz nada sobre isso nas ruas, como
fez a partir de 2013.
As bases de apoio do governo estão
ameaçadas por pressões de vários lados, mas mesmo assim ele sobrevive com o
argumento de que não há alternativa viável a ele no momento. E todos os setores
conservadores engolem isso.
É como se Temer dissesse: ”se me puserem
na cadeia, que é o meu maior temor, quem vocês teriam com a minha desfaçatez de
promover a compra dos cerca de 300 picaretas que conheço muito bem no Congresso?
Liberei para eles emendas parlamentares de, no mínimo, seis milhões, além de
outros benefícios menos publicáveis! ”
O apoio sem graça do PSDB é mantido
apenas a favor da “agenda das reformas”. Alguns de seus líderes mais cínicos
querem trocar essa sustentação pela salvação da cabeça do Senador Aécio Neves,
apanhado com a mão na cumbuca e ameaçado de ter a cabeça raspada em algum
momento.
No Supremo Tribunal Federal, sede hoje de
decisões políticas, há uma divisão entre ministros que censuram os excessos da
Operação Lava Jato e os que exigem o “cumprimento da Lei”. O apoio
governamental é mínimo, portanto. Há uma certa paralisia da ação dos seus
ministros, que engoliram o fiasco da absolvição do governo corrupto no TSE.
Existe uma guerra não declarada entre a Procuradoria Geral da República, o
Governo e alguns ministros do STF que querem apaziguar tudo, contendo a Lava
Jato, em nome da “estabilidade”.
Para os setores dominantes, a Lava Jato
pode ter ido longe demais em sua sanha punitiva, deixando assim um fino fio de
sustentação a Temer. Um fio muito frágil. A “oligarquia liberal” bem pode mudar
de opinião a qualquer momento, assumindo o combate à corrupção como sua própria
bandeira e procurando abrir caminho para o “novo”, que poderia significar o
recurso às Forças Armadas ou forjar candidatos “anti-políticos” como Trump,
Macron ou qualquer outro na moda.
Vários setores da elite dirigente já
aceitaram a “aliança populista” com Lula e o engoliram temporariamente graças
ao êxito econômico do seu governo. Durante um bom tempo, Lula e o PT não eram
os inimigos, pois acionaram um certo desenvolvimento, inclusive social,
ampliando o mercado.
Então,
por que não aceitariam Temer cujo slogan como vice-presidente era: “Meu
gabinete sempre estará aberto aos empresários”? Hoje se sabe por quê e para
quê.
O
governo não tem representatividade nem autoridade para muita coisa, mas possui
a legitimidade conferida pelo cinismo dominante. Cinismo que mantém a equipe
econômica do seu lado até onde lhe convier, pois é ela que sustenta o ideário
neoliberal conservador.
Os analistas “frios” da ciência econômica e
política temem que todos esses polos de manutenção do poder abandonem de uma
vez o governo, trazendo o caos constitucional e social, pois há dúvidas na
linha de sucessão e nenhum nome capaz de manejar com facilidade o Congresso, um
dos baixos, se não o mais baixo, em matéria de qualidade humana e política. O
perigo estaria na hipótese impensável de o povo assumir o controle da situação.
A frágil democracia brasileira continua nas
mãos da “oligarquia liberal”, incapaz de uma hegemonia fundada em princípios e
sempre ameaçada de decadência, como a aristocracia de Lampedusa. Igual ao
diagnóstico do romance, está claro que o que temos de pior são as nossas
elites.