terça-feira, 20 de junho de 2017

FIOS QUE SEGURAM TEMER


 

                                                                 Reinaldo Lobo

 

     No romance “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, a personagem de um aristocrata e latifundiário comenta, em face de uma possível revolução republicana: “Se não nos envolvermos nisso, os outros implantam a república. Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro? ”

     Esse tipo de cinismo das classes dominantes --retratado nessa obra clássica reeditada agora primorosamente no Brasil—é também uma tradição das nossas elites conservadoras. Muitos conhecem a frase do mineiro Antônio Carlos que antecedeu a Revolução de 30: ”Façamos a revolução antes que o povo a faça”.     

      Hoje, essa tradição se renova no apoio da nossa “oligarquia liberal” (latifundiários, industriais, managers de fundos de pensão, burocratas do Estado, políticos, tecnocratas e mesmo juízes e promotores) a duas atitudes dominantes na cena política e econômica:

As “reformas” implementadas pelo governo do melífluo e oportunista Michel Temer, que são, na verdade, medidas ultraconservadoras destinadas a proteger os interesses dominantes em nome da restauração da estabilidade econômica, atingida pela crise e pelos erros do “inimigo populista”.

 

A alardeada campanha anticorrupção do tipo “Mãos Limpas”, desencadeada por uma parte do Judiciário e pela mídia, apoiada pelas classes médias e a população em geral, cujo alvo, a corrupção, foi instituída historicamente por essas mesmas elites “liberais” e incrementada recentemente pelo empresariado das empreiteiras da indústria da construção, pelos burocratas estatais e por bancos públicos e privados.     


     O fio principal que ainda sustenta no poder o governo corrupto de Temer é o cinismo. De seus próprios ministros e do presidente, em primeiro lugar. Como tiveram inicialmente uma carta branca das classes dominantes para dar o golpe parlamentar que derrubou a presidente Dilma, os membros do atual governo não dão a menor importância para sua impopularidade e descrédito. Foram colocados lá -- à custa de muito dinheiro das mesmas propinas do empresariado denunciadas pela operação Lava Jato-- com uma única missão: realizar as “reformas” restauradoras da ordem e da hierarquia social tradicional e restabelecer a “confiança do Mercado”.
      O cinismo prevalecente afeta também a parte da classe média decepcionada com as mais recentes revelações da louvada Lava Jato, que parecia atingir só o odiado PT, mas trouxe à tona fatos escabrosos envolvendo o ex-candidato tucano Aécio Neves, o próprio Temer, cujo assessor foi apanhado com a mala cheia de dinheiro vivo e uma série de quase dois mil políticos. Muitos deles ajudaram na deposição do governo anterior em nome da luta anticorrupção e agora estão presos ou delatando seus pares.
      Se dependesse dessa fração da classe média, todos os políticos iriam para a cadeia, mas, constrangida por seu próprio engano em relação a seus heróis, não faz nada sobre isso nas ruas, como fez a partir de 2013.
      As bases de apoio do governo estão ameaçadas por pressões de vários lados, mas mesmo assim ele sobrevive com o argumento de que não há alternativa viável a ele no momento. E todos os setores conservadores engolem isso.
     É como se Temer dissesse: ”se me puserem na cadeia, que é o meu maior temor, quem vocês teriam com a minha desfaçatez de promover a compra dos cerca de 300 picaretas que conheço muito bem no Congresso? Liberei para eles emendas parlamentares de, no mínimo, seis milhões, além de outros benefícios menos publicáveis! ”
      O apoio sem graça do PSDB é mantido apenas a favor da “agenda das reformas”. Alguns de seus líderes mais cínicos querem trocar essa sustentação pela salvação da cabeça do Senador Aécio Neves, apanhado com a mão na cumbuca e ameaçado de ter a cabeça raspada em algum momento.
     No Supremo Tribunal Federal, sede hoje de decisões políticas, há uma divisão entre ministros que censuram os excessos da Operação Lava Jato e os que exigem o “cumprimento da Lei”. O apoio governamental é mínimo, portanto. Há uma certa paralisia da ação dos seus ministros, que engoliram o fiasco da absolvição do governo corrupto no TSE. Existe uma guerra não declarada entre a Procuradoria Geral da República, o Governo e alguns ministros do STF que querem apaziguar tudo, contendo a Lava Jato, em nome da “estabilidade”.
     Para os setores dominantes, a Lava Jato pode ter ido longe demais em sua sanha punitiva, deixando assim um fino fio de sustentação a Temer. Um fio muito frágil. A “oligarquia liberal” bem pode mudar de opinião a qualquer momento, assumindo o combate à corrupção como sua própria bandeira e procurando abrir caminho para o “novo”, que poderia significar o recurso às Forças Armadas ou forjar candidatos “anti-políticos” como Trump, Macron ou qualquer outro na moda.
     Vários setores da elite dirigente já aceitaram a “aliança populista” com Lula e o engoliram temporariamente graças ao êxito econômico do seu governo. Durante um bom tempo, Lula e o PT não eram os inimigos, pois acionaram um certo desenvolvimento, inclusive social, ampliando o mercado.
     Então,   por que não aceitariam Temer cujo slogan como vice-presidente era: “Meu gabinete sempre estará aberto aos empresários”? Hoje se sabe por quê e para quê.
     O governo não tem representatividade nem autoridade para muita coisa, mas possui a legitimidade conferida pelo cinismo dominante. Cinismo que mantém a equipe econômica do seu lado até onde lhe convier, pois é ela que sustenta o ideário neoliberal conservador.
    Os analistas “frios” da ciência econômica e política temem que todos esses polos de manutenção do poder abandonem de uma vez o governo, trazendo o caos constitucional e social, pois há dúvidas na linha de sucessão e nenhum nome capaz de manejar com facilidade o Congresso, um dos baixos, se não o mais baixo, em matéria de qualidade humana e política. O perigo estaria na hipótese impensável de o povo assumir o controle da situação.
    A frágil democracia brasileira continua nas mãos da “oligarquia liberal”, incapaz de uma hegemonia fundada em princípios e sempre ameaçada de decadência, como a aristocracia de Lampedusa. Igual ao diagnóstico do romance, está claro que o que temos de pior são as nossas elites.

      

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