Reinaldo
Lobo
Existe uma esquerda fácil de se identificar. É
a dos slogans, do entusiasmo militante, das palavras-de-ordem, da adesão cega a
um lado, do maniqueísmo e até fanatismo, da falta de espírito crítico em
relação aos seus próprios erros e do conforto burocrático. Costuma ser animada
por valores éticos, pela busca da igualdade, justiça e liberdade, mas nem
sempre sua ação se sustenta nos seus princípios ao longo da luta. É
conciliatória e radical, muitas vezes contraditória nos seus fundamentos. A
tentação do populismo é frequente. Pratica eventualmente um maquiavelismo
barato ou, então, se fecha em algumas ideias simples e em posições extremas.
Há, porém, uma outra esquerda mais
difícil de localizar em meio à guerra ideológica e pouco reconhecida em seu
valor inestimável. Esse grupo é tão esquerdista quanto o outro, mas não hesita
em proclamar sua independência e dirigir um “fogo amigo” ao PT e a todos os
partidos localizados nesse lado do espectro político.
Sua visão é mais circunspecta e reflexiva,
ainda que bastante crítica tanto em relação ao capitalismo quanto ao que chama
de “socialismo de caserna”, dogmático e autoritário. Filia-se a uma ancestralidade
mais libertária, respeita autores como o francês Merleau-Ponty, o neomarxista
alemão Theodor Adorno e os epígonos da célebre Escola de Frankfurt, assim como
os franceses Claude Lefort, André Gorz e, sobretudo, o greco-francês Cornelius
Castoriadis, cujas teorias foram construídas, simultaneamente, nas lutas
antitotalitária e anticapitalista.
Para essa esquerda contemporânea não é
apenas importante a diferença entre esquerda e direita, mas igualmente entre
totalitarismo e democracia. Pode-se até arriscar dizer que se fala de uma
geração intelectual “pós-totalitária”, que não ignora a monstruosidade do que
se construiu em nome do socialismo no Leste Europeu e em outras partes do
mundo, sem negar, contudo, avanços obtidos nas esferas sociais e políticas por
muitos movimentos e governos que reivindicaram o rótulo de socialistas ou mesmo
de comunistas.
Essa posição singular é, como se vê,
difícil. Obriga a navegar pela complexidade histórica atual e exige muita
lucidez e sutileza nas suas análises. O que não falta, aliás, ao livro
“Caminhos da Esquerda—Elementos para uma Reconstrução”, recém lançado pela
Companhia das Letras, e ao seu autor, o filósofo Ruy Fausto, professor emérito
da USP, também professor e doutorado pela Universidade de Paris I.
Um livro raro na nossa Pindorama, que traça
um diagnóstico duro sobre a trajetória dos governos Lula e Dilma sem perder de
vista a brutal ofensiva da direita contra eles, inclusive a forma assimétrica
das decisões da Lava Jato e do Judiciário, bem como o avanço direitista no
mundo, sobretudo após a eleição de Trump nos Estados Unidos.
Fausto é severo no diagnóstico geral
quando diz, com razão, que um “trabalho de reconstrução” da esquerda, posta em
xeque desde o evento simbólico da queda do Muro de Berlim, em 1989, “deve
começar pela percepção de que, por diferentes razões e sob diferentes formas, vivemos
nos últimos cem anos um período de alienação radical do projeto de esquerda em
relação ao que ela representou na origem, e deveria continuar representando”.
Uma objeção que geralmente parte da
direita seria: “para salvar a esquerda, ” o autor estaria pondo entre
parênteses a esquerda “realmente existente” e se refugiando numa outra, ”que só
existe no seu espírito”. É a crítica sobre a falta de realismo em propor um
projeto socialista depois do stalinismo, do Gulag, de Pol Pot e outros
fenômenos aberrantes.
Fausto apresenta uma resposta
interessante a essa acusação frequente, ao fazer uma analogia com o destino do
cristianismo sob o poder da Igreja, que teve “a Inquisição, as Cruzadas, o papa
Bórgia, a noite de São Bartolomeu, o reacionarismo de uma fieira de papas, a
atitude do papa Pio XII na Segunda Guerra Mundial, a homofobia, a oposição ao
divórcio, o fanatismo nas diretrizes sobre a escola, enfim, uma longa história
de erros e horrores do cristianismo realmente existente”. E pergunta: “Seria
tão irrealista assim dizer que, apesar de tudo, o cristianismo verdadeiro é
outra coisa? ”
A esquerda não é, bem entendido, religião,
mas a analogia é útil como ilustração – diz ele. Ora, houve sempre uma esquerda
fora do poder de Estado e dos partidos. Mesmo dentro dos partidos e do Estado
nem tudo foi sempre negativo—pense-se, diz ele, no “Front Populaire” francês
dos anos 1930 ou no socialismo nórdico. Pensemos também nos movimentos
sindicais de esquerda que empurraram o próprio capitalismo a fazer concessões
aos trabalhadores, fornecendo condições menos desumanas de trabalho nos países mais
civilizados. No plano da produção de ideias, então, nem se fale: a esquerda tem
brilhado e, como diz Fausto, “para dar um exemplo, o pensamento clássico de
Frankfurt não foi nenhuma brincadeira”.
O autor não pretende substituir tudo o que
foi feito ou existe na área da esquerda por algo inteiramente novo ou um plano
utópico, do que não existe. Faz a crítica da corrupção em que o PT se envolveu,
da sua aliança de classes típica de governos populistas com banqueiros,
industriais e fazendeiros, mas não considera o projeto inicial do partido um
caso perdido. Nem desdenha das conquistas em direitos humanos e sociais dos
governos Lula e Dilma.
Há que se fazer, contudo, uma profunda
autocrítica, desintoxicando o PT do que ele chama de patologias da esquerda—o
reformismo adesista, o populismo e o neototalitarismo. Se não fizer essa
purgação ou desinfecção, esse partido não terá um futuro sério e cairá no grupo
das aberrações que deformaram a esquerda ao ponto de, em alguns casos, se
tornar irreconhecível, como, por exemplo, na social democracia, cuja mutação em
neoliberal chega a ser risível.
O que Fausto oferece em seu livro é muito
mais do que resenhamos aqui, mas o principal é assinalar que, além da crítica, fornece
elementos para a reconstrução de um projeto de esquerda que seja ao mesmo tempo
democrático, anticapitalista, antipopulista, obviamente antitotalitário e com
consciência ecológica.
Uma excelente leitura para quem ainda se
considera comprometido com uma ética humana de esquerda.
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