Reinaldo Lobo*
O cinismo psíquico é uma defesa
sofisticada, usada principalmente pelos adultos. Do que nos defendemos? Da
realidade, ou melhor, da dor que ela provoca ou pode causar. Dizemos de algumas
profissões como a de policial, de cirurgião, de juiz e de jornalista, que elas
expõem seus praticantes a duras experiências da vida. Podem levar ao cinismo, que
envolve uma certa indiferença cúmplice e uma anestesia diante da dor infligida
ao outro.
O
Brasil é hoje um país com muitos cínicos nesse sentido, gente de quase todas as
profissões.
Uma
grande parte do povo que foi às ruas a partir de 2013, pedindo a cabeça dos
governantes, agora está paralisada, medrosa ou, sobretudo, cínica. Isso tem a
função óbvia de não ver o próprio erro e de não reconhecer as consequências dos
seus atos. O alcance de uma atitude política imediatista nos escapa com
frequência e pode dar no que está acontecendo agora, no presente de recessão
profunda e estagnação econômica.
Além disso, pode revelar o que ninguém
esperava—ou seja, que nossos aliados eram também corruptos, alguns até há mais
tempo do que aqueles que imaginávamos.
O cinismo protege também de ver a miséria,
a destruição da natureza, as leis arbitrárias e regressivas, a perseguição às
minorias, o fanatismo religioso a serviço do dinheiro, o massacre de jovens nas
favelas, a inoperância do combate às drogas, a eliminação de direitos humanos e
trabalhistas e a enxurrada de leis aprovadas em benefício de bilionários e
aproveitadores dos recursos públicos.
A
irmã do cinismo é a hipocrisia, outro recurso pré-consciente e, às vezes,
consciente, destinado a reassegurar uma pessoa ou um grupo.
Não deixa de ser uma ironia bizarra
sabermos que boa parte dos que ostentavam cartazes e gritavam contra a
corrupção eram, eles próprios, notórios corruptos. Geddel Vieira Lima, por
exemplo, estava na linha de frente das manifestações de camisas amarelas e,
agora, tudo indica que é o dono daquelas malas com mais de 50 milhões de reais
achadas em apartamento de sua propriedade. Assim como não deixa de ser
ridículo, mas revelador, que personagens como o ator pornô Alexandre Frota
esteja também à frente dos protestos moralistas contra a nudez em museus, ou,
ainda, que se lance um olhar pedófilo recalcado sobre uma performance no MAM.
O preconceito consiste em julgar um
fato ou um fenômeno baseado em apenas informações parciais. É assim que um
antissemita justifica sua generalização a partir de uma experiência com um
judeu determinado ou por sua estranheza em relação a hábitos que não entende ou
não conhece o suficiente.
Essa extensão no julgamento é
frequente igualmente na avaliação dos políticos, como defesa em relação à constatação
de que aqueles nos quais votamos também prevaricaram: “Todos são iguais, devem ser
punidos igualmente com a violência da Lei! ”.
O cínico atribui a culpa ao outro e
lava as mãos. Pilatos pode ser
considerado um dos pioneiros do cinismo comportamental. Interessante é o seu
recurso à inação, que, na verdade, é um ato. Parece um gesto de complacência,
neutralidade e de democracia, mas consiste numa tomada de posição. Pilatos
escolheu o seu lado, romano, deixando para o povo a decisão que sua própria lei
e seu pessoal executou.
No Brasil atual, Pilatos encarnou na
forma de uma parte do povo, que se recusa a agir contra a máfia que empalmou o
poder na onda de ódio anti-petista. Aceitar que certos atores políticos são
parte de um antigo Sistema Corrupto é dar aval ao petismo. O PT virou a Gení da
atualidade. O ódio e o pseudomoralismo exacerbado de juízes e promotores estão
levando a desastres como o suicídio daquele reitor da Universidade Federal do
Paraná, que se jogou do alto do vão livre de um shopping.
Agir saindo às ruas ou protestando
contra o governo Temer seria reconhecer a precipitação, a parcialidade, o
excesso, o erro, a ingenuidade política, mas, sobretudo, constituiria violar
uma lei ideológica atacando um governo que, apesar de acusado de corrupto como
o anterior, é conveniente para setores adeptos do capitalismo de resultados.
Boa parte das nossas classes médias está
surfando a onda do “todos são iguais, mas alguns são nossos iguais”. Há, para
esses, alguns corruptos chiques que devem ser mais tolerados do que os
sindicalistas “vulgares e deselegantes”. Daí o silêncio cínico.
O cinismo a que nos referimos tem pouco
ou nada a ver com o cinismo filosófico, aquela doutrina criada por Antístenes
de Atenas (444-365 a.C.), que pregava uma vida simples e natural, uma
felicidade desapegada de riquezas, artifícios e frivolidades e que tomava a vida
dos cães como uma espécie de modelo ideal da simplicidade. A única ligação
possível com o sentido original da palavra, hoje deformada, talvez seja a
indiferença, comum ao desapego grego aos bens e riquezas vigentes e, hoje, o
gesto de virar os olhos para lá diante da imoralidade evidente “dos iguais”,
cheios de riquezas e de bens.
O cinismo a que nos referimos é
diferente da filosofia antiga, pois aplaca a consciência dos que não querem
enxergar a corrupção, a riqueza ilegal e o abuso daqueles que amavam,
toleravam, e até agora toleram. Muitos dos que votaram em Aécio Neves, por
exemplo, só querem ouvir falar de outros corruptos e, apesar de prometerem não
votar mais nele, lastimam sua decadência política: “um rapaz tão igual a nós,
simpático e bem vestido”.
O cinismo psíqu
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