sexta-feira, 19 de junho de 2020

A TENTAÇÃO FASCISTA


  Reinaldo Lobo

      Diante da ascensão de Benito Mussolini, em 1922, o italiano Antônio Gramsci perguntou: “O que é o fascismo?”. E deu uma resposta hoje histórica: “É a tentativa de resolver problemas de produção e troca com disparos de metralhadora e tiros de pistola”.
      O fascista clássico resistia à complexidade da sociedade surgida com a revolução industrial e pretendia resolver tudo pela violência. Para isso, precisava de mitos, rituais e perfis humanos específicos.
     O fascista típico é um reducionista. Tudo se resume a uma questão de força e de vontade. É uma força que leva ao “triunfo da vontade”, como intitulou a nazifascista alemã Leni Riefenstahl. O próprio Mussolini escreveu em 1932, dez anos depois do diagnóstico gramsciano: “Eles [os inimigos] se perguntam sobre programas, mas já há programas demais. Não são programas que estão faltando para a salvação da Itália, mas homens com força de vontade”.
     Era uma reunião de fanáticos armados em torno de uma extrema simplificação diante de situações difíceis como a luta de classes, a diversidade de demandas, o pluralismo democrático, as novas estruturas sociais surgidas com as classes médias, a radicalização operária e a concentração do capital.
    O fascista sempre foi um inimigo feroz da ciência, das artes e da cultura e partia para a agressão à modernidade. Propunha suas próprias ciência e cultura megalomaníacas. Combatia a racionalidade iluminista e as instituições liberais.
     Vários sociólogos classificaram o fascismo como uma “revolução conservadora”, regressiva. Havia uma nostalgia romântica da vida no campo, da base agrária e dos pequenos artesãos anteriores ao tsunami capitalista ocorrido na passagem do século 19 para o 20.
     O meio buscado para realizar essa revolução era um Estado forte e um líder (o Duce, o Füehrer) ditatorial, dotado dessa visão mítica da sociedade simplificada e “purificada” dos “maus elementos”. Daí o genocídio e os campos de concentração.
      Hoje existe um neofascismo, que se livrou parcialmente da ideia de um Estado totalitário forte e se aliou até a um extremo liberalismo econômico, o neoliberalismo. Mas o neofascismo não se afastou de muitos traços antigos, como de um pseudo romantismo simbólico, e, principalmente, da simplificação violenta.
       Freud foi o primeiro psicanalista a notar que havia “um estado mental” específico para o tipo de perfil do fascista, ao se referir àquelas pessoas nas quais predomina a pulsão de morte, contrária à energia heterogênea provocada pelas pulsões de vida, Diante da anarquia da vida, impõe-se dentro dos seres humanos (nós todos), uma pulsão conservadora, voltada para a repetição e geralmente vinculada ao poder e à dominação.
     Haveria em todos nós uma tentação totalitária oposta à liberdade, que gera muita insegurança e angústia, obrigando o Ego a ter força suficiente para assumir responsabilidades éticas e realistas. Depois da intuição freudiana, expressa em sua linguagem particular, surgiram vários outros psicanalistas a tocar no assunto.
    O alemão Willhem Reich falava de um “desejo de fascismo” que animava as massas e os indivíduos. Os psicólogos e sociólogos da Escola de Frankfurt , Adorno, Horkheimer  e Eric Fromm realizaram uma pesquisa de campo na Alemanha pré nazista que apontou a existência de uma “personalidade autoritária” pronta para se identificar com um ditador prepotente, arrogante e dominador.
    Eram pessoas frágeis e desamparadas, no fundo, ameaçadas pela brutal crise econômica após a I Guerra mundial. Ficou conhecido um ensaio de Fromm, de muito sucesso  após a II Guerra e as revelações das atrocidades nazistas, intitulado “Fuga à Liberdade”, onde ampliou os achados iniciais de Freud.
      Tanto Fromm como outros autores seguiram uma linha de relativa “patologização” do fascista. Seria um sujeito muito particular : um louco, um anormal, um delirante furioso, um psicopata, um sociopata ou alguém que teria um perfil médio que mereceria ser internado num hospital psiquiátrico. Os outros frankfurtianos eram mais sóbrios e diziam que destacavam a personalidade autoritária no momento particular da crise alemã e não faziam tantas generalizações.
          Sem dúvida, alguns personagens como Hitler e Mussolini poderiam encaixar-se no perfil capaz de ocupar o papel, mas prefiro a linhagem de interpretação de que há um “estado mental fascista”, que ultrapassa a teoria política e a ideologia, e se refere à condição humana.
       É a concepção que vem da intuição inicial de Freud, passa por Reich, a filósofa Hannah Arendt, o psicanalista  italiano Massimo Recalcati e o anglo-americano  Christopher Bollas, para os quais existe um fascista dentro de cada um nós, sendo que somos passíveis da tentação por essa política autoritária em certas circunstâncias. Os fascistas explícitos não são os únicos a encarnar o Mal.
      É um desejo de fascismo ou uma busca de segurança extrema, disparada pelas crises do capitalismo, o que induz até ao racismo e à intolerância. Precisamos de cuidados próprios especiais e de egos fortes para resistir ao apelo fácil que atinge as massas, pois temos forças da morte dentro de nós, que operam de forma conservadora e, ao mesmo tempo, destrutivas. Imaginem se o governo Bolsonaro, como o de Hitler, tivesse um êxito econômico inicial. Quantos neofascistas não teríamos?
    O bolsonarismo brasileiro surpreende algumas mentes das elites liberais, assustadas com a força remanescente de um governo inepto, sem considerarem que elas próprias estão sujeitas ao desejo de fascismo.
   A pulsão de morte conservadora envolve o poder e os poderosos de tal modo ambíguo que perdem a perspectiva que os ameaça. Não se pode esquecer que Mussolini, o inventor do fascismo, acabou pendurado num poste.

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