segunda-feira, 8 de junho de 2020

VOLTA AO NORMAL?


  Reinaldo Lobo
    Muitos se perguntam quando voltaremos à normalidade. Mas de qual “normalidade” se fala? É a da volta ao trânsito engarrafado, da poluição, do stress e da neurose urbana? Do retorno ao desemprego estrutural? Ao consumo desenfreado de bens desnecessários e supérfluos? À rotina do lazer programado por terceiros e dosado para as horas de maior cansaço? Volta a quê?
     A quarentena imposta pela pandemia do novo Corona Vírus abriu uma brecha no cotidiano social bastante reveladora. Um exemplo: foi preciso um evento de proporções traumáticas e assustadoras, capaz de produzir uma espécie de paranoia generalizada, para que descobríssemos a possibilidade de vivermos com o básico necessário para a sobrevivência.
   Por um instante, muitos de nós tivemos que nos confrontar com a simplicidade da vida doméstica, com a intimidade, a evidência de problemas conjugais, sem a fuga compulsiva para o prazer em eventos hipomaníacos, atividades comerciais programadas ou o consumo permanente em qualquer escala.
    A rotina e os hábitos repetidos têm um papel importante na estruturação da vida mental das pessoas de qualquer país. Independente da cultura, a continuidade do cotidiano forma um quadro de referência, como uma moldura do dia-a-dia, dando limites e parâmetros.
   Mesmo quando as condições de existência são difíceis, quase insuportáveis, os indivíduos se adaptam, criam e mantém esse quadro referencial que é o cotidiano minimamente confiável. Há uma expectativa permanente de acordar no dia seguinte e encontrar a rotina, as programações e os projetos no mesmo lugar onde foram deixados no dia anterior. É como a nossa crença de que, após a noite, o sol vai aparecer.
   A pandemia instaurou uma espécie de eclipse solar, um apagão e uma quebra surpreendente na continuidade da vida cotidiana. Isso tem sido traumático, pois toda ruptura brusca na linha da existência causa uma perturbação importante na mente individual e no esquema de representação coletiva.
   Houve grandes perdas, como no luto. Todos sentem nostalgia dos objetos e referências perdidas, por mais difíceis que tenham sido nas circunstâncias anteriores “normais”. Uma cultura alienada não deixa de ser uma cultura funcional a seu modo. O rompimento da estrutura do cotidiano abala a continuidade da própria vida cultural e de seus valores.
    Para os trabalhadores, voltar ao “normal” seria superar a ameaça à própria sobrevivência, mas também ter a segurança de alimentar a própria família. Ocorre que os que trabalham sob o regime do Capital estão permanentemente ameaçados pelo desemprego, os congelamentos salariais e as ordens cuja racionalidade nem sempre está clara ou bem estabelecida. Seria voltar para a insegurança diária que já conhecem
     No Brasil, como em alguns outros países, a quarentena provocada pela pandemia teve um problema a mais com a redução salarial, às vezes sob o pretexto da diminuição da jornada ou do “home office”. Além disso, veio junto com a retirada de direitos trabalhistas e sociais, o que aumentou muito a insegurança das famílias.
    Como ter um salário, por menor que seja, é melhor do que não ter salário algum, os trabalhadores aceitaram a situação, mas estão nostálgicos e ansiosos pela volta à “normalidade”. Os que simplesmente perderam seus empregos e passaram a engrossar o Exército de reserva do Capital mantém a expectativa de que, com a volta da vida rotineira, algo possa ser resolvido.
     Voltar ao cotidiano de uma sociedade alienada de seus fins e propósitos, calcada na desigualdade e na exploração do trabalho, não é o melhor dos mundos. Mas, mesmo assim, é ter de volta um quadro comportamental e mental conhecido, que torna possível alguma expectativa e a retomada das atividades populares de lazer, ou da elite. O respiro da roda de samba, dos shows e espetáculos, não muda uma existência, mas a alivia. Por isso, muitos torcem pelo fim da crise sanitária e das mortes pela Covid19.
     Num regime capitalista, a “normalidade” é acomodar-se às condições de trabalho, aceitar as regras do jogo e aproveitar migalhas de descanso e lazer. As pessoas mais adaptadas à realidade do sistema almejam ter uma propriedade, educar os filhos, reproduzir a mão de obra e adequar-se ao dia-a-dia da indústria cultural.
     A rotina de trabalho- cansaço--assistir à TV-- churrasco no fim de semana-- cerveja -- futebol pode ser o melhor para a maioria. Muitas vezes, são ações sem criatividade alguma.
    As mídias cumprem o papel de moldar as consciências, oferecendo, muitas vezes, um lixo cultural como um caminho para a fuga da realidade.
    Ao contrário do que pensava Nietzsche, a arte só torna a realidade mais suportável para alguns. Para a grande maioria, o que se oferece hoje é um entretenimento de baixa qualidade, que faz parte dessa mesma realidade difícil de suportar.
    Os homens primitivos, das cavernas, provavelmente viviam num estado em que muitos de nós vivemos durante a quarentena: com medo, perseguidos pela morte e voltados para a sobrevivência. Muitos aproveitaram a quarentena para ler, escrever, ouvir música, fazer yoga e pensar. Esses são os privilegiados do sistema, com acesso à educação e a uma cultura mais sofisticada.
   A maioria, porém, ficou submetida às palavras de ordem de Bolsonaro ou lutando para sobreviver nas filas da caridade aos “mais vulneráveis”. Como disse um amigo, foi preciso a pandemia para descobrirem que o Eduardo Suplicy tem razão. Uma renda básica de cidadania pode salvar vidas e manter um consumo mínimo na sociedade, até para que a economia funcione.
    Enquanto prevalecerem as condições de desigualdade e privilégios, de egoísmo e o individualismo possessivo, a norma será a do crescimento econômico “infinito” e do consumo sem limites.
      Se retornar à normalidade for ao eterno retorno do mesmo, isto é, à “normalidade anormal”, insegura e disfuncional do capitalismo, cabe ainda a pergunta inicial: voltar a quê?
    

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