Reinaldo Lobo*
Muitas pessoas acreditam que o
capitalismo é eterno. Como em qualquer religião, sonham com um “paraíso” sem
fim. Fora dele não há salvação, dizem.
Não se dão conta de que o capitalismo
não existiu sempre, que começou devagar na alta Idade Média, cresceu um pouco
no Renascimento com o artesanato urbano, os primeiros banqueiros e o marcado
nas cidades, ganhando força nos séculos 17 e 18 com a burguesia ascendente e
suas revoluções anti-aristocráticas, acabando por explodir selvagemente na
revolução industrial e tecnológica entre o século 19 e início do 20.
O capitalismo é um produto histórico.
Portanto, pode ser modificado e destruído.
O sociólogo germânico Max Weber dizia que
esse sistema, tal como o conhecemos, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos,
era filho direto do protestantismo calvinista e do culto meritocrático ao
trabalho suado e sacrificial. Hoje, mais parece fruto de um materialismo
simplório e imediatista:” Time is Money”.
Já o
historiador britânico Arnold Toynbee sugeria que o capitalismo seria uma
consequência do monoteísmo judaico-cristão e da ideia de uma razão universal.
Hegel, o filósofo alemão, pensava parecido, já que considerava a História como
a realização consumada de uma razão universal. Seria a realização do Espírito
Absoluto. Foi outro alemão, Karl Marx, quem trouxe a questão para a Terra, fora
da religião e da razão espiritual. Inverteu a equação, demonstrando que a razão
e a religião também são produtos de uma História que se passa no registro das
forças produtivas materiais, da economia e das estruturas sociais que dão forma
à condição humana.
Mesmo na sua juventude, Marx ressaltava que
a ganância e o desejo de lucro são derivados, em grande parte, de uma situação
social desigual, calcada na exploração do trabalho. A religião, dizia ele, é um
meio de alívio para a situação de miséria, de alienação e de submissão dos
trabalhadores às classes dominantes.
Freud, o médico austríaco que criou a
psicanálise, nunca foi marxista e até criticava Marx por usar a chave
explicativa da economia, que determinaria, em última instância, até mesmo
fenômenos culturais, artísticos e filosóficos. Mas o psicanalista também
considerava, por exemplo, a religião como uma “ilusão” necessária para que os
seres humanos suportassem o mal-estar na civilização, isto é, a tensão entre os
impulsos mais primitivos, sexuais e agressivos, e a repressão imposta pelas
instituições, a moral instituída e os costumes civilizados. Acrescentou também
que o sofrimento geral e a miséria encontravam alivio em recursos ideais, como
num sonho ou mesmo nas alucinações, delírios e rituais obsessivos. Dizia que a
religião é a “neurose obsessiva” da Humanidade.
Alguns dos primeiros seguidores de Freud,
como Ferenczi, Wilhem Reich, Otto Fenichel e Alfred Adler, procuraram
aproximar, cada um a seu modo, o pensamento freudiano do marxismo, inaugurando
uma análise psicossocial do que consideraram uma submissão ao capitalismo.
Seria esse desejo de capitalismo o que empolgaria as massas e as sociedades
contemporâneas, fazendo com que acreditassem no mito da eternidade e da
naturalidade do sistema existente. Alguns procuraram estudar a gênese desse
desejo.
Essa
foi uma análise crítica pioneira que, aliás, não se resumiu a esses autores,
incluindo depois o filósofo Herbert Marcuse, a chamada Escola de Frankfurt, de
Theodor Adorno e Max Horkheimer, além de muitos outros.
Hoje, é preciso avançar e dar continuidade
a essa visão crítica, desconstruindo o aparato ideológico que se armou em
defesa do Capital e afinando as análises psicossociais, que vão para além do
marxismo ortodoxo.
Há
uma crença bem difundida de que o individualismo possessivo e a fé no
capitalismo são fenômenos “naturais”, pertencentes à natureza humana. Isso é
pura racionalização ideológica. A Antropologia e a História já demonstraram que
nem sempre foi assim e que existiram sociedades solidárias onde o desejo do
lucro e a exploração do trabalho não foram predominantes. A lista dessas
sociedades é enorme, não vou enumerá-la aqui, e não se resume às sociedades
pré-colombianas das Américas.
A crença que “naturaliza” o desejo de
lucro confunde a luta pela sobrevivência com a divisão do trabalho injusta e
desigual. Parte do pressuposto falso de que todos partiriam do mesmo ponto
inicial na corrida da sobrevivência, como se fossem iguais, ignorando que
existem os “mais iguais” do que outros. Isso piora nas sociedades mais
complexas, nas quais as especializações do trabalho e a multiplicidade de classes
e categorias sociais mascaram a hegemonia do capital, agora concentrado nas
mãos de minorias.
À medida em que o capitalismo fica mais
complexo, com as tecnologias e novas formas de comunicação, aumenta a
manipulação dos desejos e subjetividades humanas. O desejo de capitalismo é uma
construção social a partir da educação familiar, da reprodução ideológica nas
escolas e nos aparatos ideológicos do Estado.
A
sociedade de consumo cria necessidades que não existem, como a troca periódica
de um carro ou compra de um celular de “última geração”. Assim como a
tecnologia, as “necessidades” e “desejos” são construções substituíveis para
peças cada vez mais efêmeras e descartáveis da produção e comércio
capitalistas. Uma pesquisa feita por cientistas europeus sobre as fábricas
japonesas de automóveis revelou que os carros fabricados tinham prazo de
validade de cinco anos e, aos poucos, o Mercado “exigiu” que durassem menos na
sua integridade, caindo para quatro ou três anos.
A publicidade usa, inclusive, os achados da
Psicanálise sobre os impulsos mais profundos das pessoas para fabricar desejos
artificiais como fumar e beber cada vez mais. Todos conhecem os anúncios de
cigarros para homens, associados à aventura, potência e mulheres lindas. Com as
bebidas, as mulheres loiras ficaram famosas. O mesmo ocorre com a publicidade
destinada às mulheres e à sua sexualidade, como os cremes e sabonetes que
“acariciam” e “massageiam” a pele feminina, órgão receptor de impulsos sexuais
difusos ligados à superfície da epiderme.
O mito do empreendedorismo é outro sonho
implantado pela ideologia dominante nas massas pouco esclarecidas. As pesquisas
de mercado indicam que uma grande parcela da população no Brasil -- e no
mundo-- prefere ser “patrão” do que trabalhador assalariado ou precário, por
razões óbvias. O que essas pesquisas não mostram é que existe hoje uma
concentração feroz do capital nas mãos de poucas empresas monopolistas e a
deglutição das pequenas e médias empresas pelos grandes conglomerados.
Até mesmo a teoria marxista tem sido
usada pelas classes dominantes para saber como readaptar o capitalismo, a fim
de evitar a luta de classes e as crises cíclicas do Capital. O capitalismo
parece ter uma capacidade de se reciclar com frequência, o que lhe dá a imagem
de eternidade. Mesmo camisetas com a
estampa da foto de Che Guevara viram produtos de consumo no mercado. Dizia o
filósofo Marcuse que, se cocô vendesse, seria moda no mercado.
Ocorre que o capitalismo tem uma face
altamente destrutiva, do tipo “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Está
destruindo todos os recursos naturais e a própria vida na Terra e, por mais que
recicle, é bem possível que tenha chegado a um ponto de saturação, sendo capaz
de destruir a si mesmo num futuro mais próximo do que se imagina.