sexta-feira, 27 de novembro de 2020
NOVA ESQUERDA EM SÃO PAULO
Reinaldo Lobo*
“Uma nova esquerda está surgindo em São Paulo”, sentenciou Franklin Martins, o ex todo poderoso da comunicação do governo Lula e ex líder guerrilheiro durante a Ditadura. Sua opinião é importante, pois tem o pleno respeito da esquerda histórica e do PT.
A frase de Martins é verdadeira. Uma nova estrela surge em SP: Guilherme Boulos (38 anos), do PSOL (Partido do Socialismo e Liberdade), que escolheu a veterana Luíza Erundina (86 anos) para sua candidata a vice para a Prefeitura. Seja qual for o resultado das eleições de domingo, a dupla Boulos-Erundina sai de uma campanha vitoriosa por chegar bem ao segundo turno na cidade mais conservadora do País.
São Paulo é o fulcro do capitalismo brasileiro e, como dizia Jean Paul Sartre numa viagem ao Brasil, a esquerda deveria conquistar primeiro São Paulo e não as serras e florestas como fizeram Fidel Castro e Guevara em Cuba.
Há muito tempo, os paulistas representam o que há mais capitalista no País, expandindo a partir deles a indústria moderna, as tecnologias, o agronegócio e a inovação. É onde estão as concentrações de serviços, as sedes das filiais das multinacionais, as finanças e os bilionários nacionais. Não é só uma questão de quantidade, mas do núcleo qualitativo do capital. Por isso mesmo, o candidato Boulos insiste em dizer que a cidade mais rica da América do Sul tem as contradições sociais e econômicas mais gritantes do regime capitalista brasileiro.
Não se pode esquecer que as massas de trabalhadores da grande indústria e dos seus sindicatos foram a base paulista do movimento que confrontou a Ditadura e o patronato nos anos 70, dando origem ao Partido dos Trabalhadores. Ocorreu um fenômeno de burocratização tanto dos sindicatos quanto do PT ao longo dos anos e suas bases na região do ABC foram deslizando para outras direções políticas, inclusive o populismo da extrema direita bolsonarista.
Muitos atribuem o que aconteceu à ausência da figura carismática de Lula no jogo direto da política, em face de sua exclusão pela Operação Lava Jato e a perseguição movida pelo juiz Moro, de extrema direita.
Isso é verdade apenas em parte. Ocorre que surgiu uma nova geração de trabalhadores, hoje voltada também para os serviços da área eletrônica e outras, que não tem a memória dos idos da Vila Euclides e da fase heroica do PT. Essa é uma geração de jovens ameaçados de desemprego crescente pela políticas neoliberais e sedenta de um futuro com mais esperança.
Boulos e o PSOL aparecem com mais relevância aos olhos dessa juventude, inclusive da universitária, de classe média, que está também saturada de populismo e da política tradicional. A sinceridade de Boulos em combater a pobreza diretamente, com ações concretas, seu apelo à periferia e a uma certa virgindade em relação à política tradicional, dão-lhe uma legitimidade inédita desde Lula no ABC.
O discurso dessa nova esquerda lembra muito, na verdade, a autenticidade de um Pepe Mujica, o do “fusquinha”, o ex-guerilheiro uruguaio que foi um presidente original em seu país, reformador sem violência, mas implacável com a corrupção e em sua adesão à classe trabalhadora. A simplicidade de vida e sua ausência de ódio, próxima do exemplo de Mandela, encantou tanto a esquerda quanto a direita, que ainda hoje lhe rende homenagens e respeito.
Valores como humanidade, empatia com o sofrimento alheio, respeito à diversidade e elogio à liberdade fazem dessa nova geração de esquerda realmente potente em sua comunicação com os desfavorecidos e a juventude. São valores autenticamente de esquerda e não apenas promessas de benefícios econômicos ou de paternalismo vazio.
Pouca gente notou com clareza que as propostas de Boulos e da experiente Erundina são voltadas especificamente para São Paulo, mas inspiradas também nos modelos de cidades mais modernas do planeta, estabelecendo prioridades ecológicas e gerando espaços de convivência democrática. Por exemplo, São Paulo tem um sistema de coleta do seu enorme volume de lixo completamente viciado pelo domínio de máfias que giram em torno da Prefeitura. Essa nova esquerda propõe combater essas máfias e instaurar um sistema de reciclagem --sempre prometido e sempre adiado--, inspirado em cidades como Barcelona, Amsterdã, Oslo e outras.
Esse é um exemplo de programa que pode ser aceito por qualquer eleitor, de direita ou de esquerda, pois remete à simples modernização, combatendo os perigosos aterros ou “lixões”.
A direita se engana em rotular a nova esquerda paulistana, que já ganhou alcance nacional --como fez um “cientista político” da TV Bandeirantes-- como estando apenas “à esquerda do PT”. Não percebeu, em seu preconceito, que essa onda emergente na maior cidade sul-americana representa uma conciliação da esquerda com a modernidade e a superação de um passado conciliatório e proto-populista.
Se Boulos e Erundina forem eleitos haverá muitas surpresas no País, não só na liquidação do bolsonarismo nefasto e similares, mas também na forma de administrar atualizada e ousada. Isso, sem falar no clima de humanização, no fim do espetáculo de gente procurando comida nos sacos de lixo e dormindo nas calçadas.
Franklin Martins, que já foi porta-voz do PT e, antes, âncora da Rede Globo, tem toda razão: essa “nova esquerda” é mesmo nova. Está chegando para ficar, pois não tem como objetivo apenas criar consumidores e possui como prioridade algo valioso e insubstituível: a dignidade humana.
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