domingo, 27 de dezembro de 2020

O QUE É SER DE ESQUERDA HOJE?

Reinaldo Lobo Ser de esquerda é ter um projeto de emancipação humana, de combate à injustiça e à desigualdade. Emancipação é sinônimo de fim da escravidão, da submissão e da exploração. Significa, portanto, liberdade. Ora, dirão os da direita: onde foi que esse projeto se realizou desde que o anunciaram, lá atrás, na Revolução Francesa, em 1789, com os jacobinos? Os direitistas proclamam que sempre houve poder, exploração e injustiça na História e sempre haverá. É da “natureza humana”, dizem. E concluem: já que isso é fatal, inevitável, por que não podemos ser nós mesmos os exploradores? O tradicional cinismo da direita se contrapõem “às ilusões utópicas da esquerda”. Como todo projeto político, houve desvios e excessos perigosos na esquerda, a começar pelos jacobinos franceses, que adotaram o Terror como forma de poder. Os vícios da esquerda foram notáveis, como o totalitarismo stalinista antes e depois da Segunda Guerra Mundial e a esclerose do poder de uma burocracia tão detestável quanto as classes dominantes do capitalismo, com seu colonialismo, escravidão e privilégios de uma minoria. Não é o caso, aqui, de justificar ou depurar esses erros graves impostos, em parte, pelas pressões da guerra e da luta de classes, mas de ressaltar a mudança na ideia de esquerda ao longo das últimas décadas no mundo. Antes, quando a URSS representava-- sobretudo após a vitória sobre o nazismo na Segunda Guerra--, a esperança de um futuro socialista para o mundo, o núcleo duro da esquerda era concentrado no marxismo e no leninismo, que se pretendiam “socialismo científico”. A História era vista como determinada racionalmente por etapas sucessivas, onde o objetivo final seria o comunismo, com a reconciliação das classes e o fim da opressão e da desigualdade. O comunismo nunca existiu dessa maneira em parte alguma, talvez apenas em algumas tribos originárias em algumas partes do mundo. A esquerda clássica oscilou entre a socialdemocracia adesista e o poder leninista de uma “intelligentsia” dirigista, mas os valores principais permaneceram intocados, ainda que sempre referidos ao marxismo. Hoje, tem havido mudanças consideráveis na ideia de esquerda. Até mesmo o marxismo “científico” foi posto em questão. Um marxismo que não é vulgar, como o da chamada Escola de Frankfurt, abriu caminho para outras reflexões, como o da escola francesa anti-totalitária de Cornelius Castoriadis, Claude Lefort e Edgar Morin, inspirada mais na psicanálise, na filosofia e na antropologia do que em uma economia dita científica. Uma pergunta comum hoje: os movimentos ambientalista e o feminista são de esquerda? Minha resposta: são, na medida em que colocam a sociedade capitalista em questão e também representam valores opostos ao conservantismo e ao cinismo da direita, sobretudo o neoliberal em voga. Ser de esquerda, atualmente, é ser anti-racista, anti-sexista, respeitar os LGBTQ+ e lutar contra a violência repressiva no interior da sociedade. Durante o movimento Occupy Wall Street as ruas de Nova York se encheram de gente de esquerda que nada mais tinha em comum com a esquerda autoritária do passado comunista-leninista. Foi um exemplo de movimento reativo às crises capitalistas sucessivas que provocam desemprego, miséria nas cidades e falências de agricultores no campo, que destroem famílias e futuros. A esquerda deixou de ser perfeccionista e não propõe mais revoluções que nos levem ao marco zero da sociabilidade, aprendeu com seus erros e o famoso dilema reforma X revolução vai sendo substituído por sucessivos avanços na cultura e na sociedade, um processo de transformações que não se pretendem “graduais” nem privilegiam a presença do Estado como chave para tudo, mas recorrem a laços comunitários como cooperativas e associações de cidadãos. Movimentos como o MST e o MTST, dos sem terra e dos sem teto, são modelos de uma onda constante de organização no interior da sociedade civil. Essa mutação não implica abandonar os valores de emancipação humana e de justiça. O grande desafio da esquerda clássica sempre foi conciliar justiça e liberdade, mas isso pode estar sendo tramado e resolvido no interior da própria esquerda quando discute as noções de representação política, em crise no mundo todo. Ser de esquerda hoje significa ter um conjunto de valores éticos opostos ao cinismo e ao “realismo” da direita, cujo compromisso com preconceitos milenares e com a opressão a torna sempre suspeita ao defender a democracia. O projeto de emancipação humana vem desde a Grécia antiga, passa pela Revoluções francesa e russa, desemboca nas ruas de Paris em 1968: “A imaginação ao Poder” e “Sejam realistas: peçam o impossível”. Tem algo de utópico? Tem, mas seu movimento inexorável é bastante real.

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