Reinaldo Lobo*
A sessão de cinema está começando e
aparece na tela o letreiro: "Isto é uma obra de ficção. As personagens
deste filme são fictícias. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é
mera coincidência".
Por que esse aviso é necessário? Existem,
é claro, problemas legais; alguém pode se sentir representado na história e
ofender-se ao ponto de processar os roteiristas, os produtores e o diretor da
obra cinematográfica. A frase é necessária, em parte, para proteger legalmente
todos os que investiram no filme. Mas não é só isso. Indica também a linha
demarcatória teórica entre o objeto subjetivo e o objeto objetivamente
percebido na realidade compartilhada.
O cinema pressupõe, portanto, algum grau
de ilusão. Estamos no preâmbulo da transicionalidade. Situamo-nos, por
enquanto, naquele território intermediário que sustenta a verossimilhança e a
crença. São bastante conhecidos, por exemplo, os casos daquelas pessoas que
ficam aquém da linha demarcatória e chegam a atacar atores na rua porque odeiam
suas personagens nas novelas da TV. Algumas dessas pessoas deslizaram para uma
crença tão forte que constitui uma alucinação.
Ilusão
não é, para nós, uma percepção distorcida de um objeto real nem tem o sentido
comum atribuído pela fé perceptiva de erro, engano, imagem distorcida (ilusão
de ótica), armadilha, trapaça (iludir alguém) ou de visão parcial de algo.
Ilusão constitui, em nossa perspectiva conceitual, o efeito de criação
decorrente da relação do sujeito com o objeto subjetivo(1). Quando essa relação
não transita para o objeto não-eu e para
o brincar, temos a patologia.
Esta é uma idéia, como todos sabem,
proveniente da obra de Winnicott e bastante especificada em "O Brincar e a
Realidade" como um pressuposto básico dos
fenômenos transicionais e do aparecimento do objeto transicional. Logo no início, o
bebê cria e encontra um objeto -- o seio. O objeto subjetivo é, primeiro, uma
criação do bebê.
Winnicott sugeria que ele era um autor para
ser usado. Pois o estou usando para entender um pouco o cinema. Por isso, tomo
a ilusão como ponto de partida e como base da crença na "realidade"
do que se passa na tela. Quando psicanalistas falam de um filme tendem a
prestar a atenção no conteúdo das cenas e no seu significado. Muitas vezes,
psicanalisam uma personagem como se fosse um paciente. Em outras, aplicam o
método psicanalítico para compreender toda a obra cinematográfica ou a sua
temática. Não é uma crítica. Às vezes, isso é interessante e importante.
Há, contudo, um outro ângulo para ver um
filme, que é desconstruir o próprio cinema e o que ele provoca em nós,
espectadores e cinéfilos. O cinema é uma composição de fotogramas postos em
sucessão, o que produz uma ilusão de
movimento. O cinema é filho da fotografia, só que posta em ação pela dinâmica da rapidez da sucessão de imagens e,
depois, da edição.
Antes disso, uma história foi escrita , um
roteiro, e alguém se dispôs a dirigir tudo isso, talvez em meio a inúmeras reuniões com produtores, atores, maquiadores,
cenógrafos, diretor de fotografia e, eventualmente, de efeitos especiais. Tudo
isso para produzir algo requintado próximo de um sonho, mas baseado no ponto
inicial de ilusão. A ilusão cria uma abertura, uma expectância de um objeto por
vir. O que surge desses elementos como produto final é uma espécie de brincar
para adultos e crianças.
O
filme passa numa tela como num sonho -- cenas justapostas que acabam formando
uma história. Os olhos acompanham quase como no sono REM (Revolutionnary Eyes
Mouvement), seguindo as cenas de alto a baixo, da esquerda para a direita ou
vice-versa. Freqüentemente, pacientes dizem no divã os seguintes lapsos:
"Ontem, vi um sonho, quer dizer, um filme..." ou, então, "Esta
noite tive um filme, quer dizer, um sonho...".
O cinema se esforça para realizar não algo
totalmente verdadeiro, mas verossímil. Nem o documentário se apresenta como a
"realidade", mas como uma visão dela. Muitas vezes nem precisa ser
tão verossímil, como nas histórias de "Harry Potter", o "Senhor
dos Anéis" e outras. Basta que se entre na brincadeira.
Um filme, nós bem o sabemos, está naquela
terceira área da experiência, que não é interna nem externa. Situa-se no espaço
que os objetos culturais ocupam -- o espaço potencial entre a realidade e a
fantasia.
Para
o cinema existir, é necessário que haja primordialmente "um sujeito
suposto crer", como também diz Slavoj Zizek (em "Como Ler Lacan",
pg. 40), que seria para os lacanianos o traço constitutivo da ordem simbólica. Esse sujeito, do nosso ponto de vista, é o da
ilusão no sentido de Winnicott, pois é condição de possibilidade da
transicionalidade e , portanto, de toda possibilidade de simbolização.
UMA LACUNA NA
TEORIA DA SUBLIMAÇÂO
Winnicott sugere no "Brincar e a
Realidade" que havia um branco na teoria da sublimação de Freud e na sua
concepção do lugar dos objetos culturais. A sublimação é apresentada apenas
como um deslocamento no alvo do instinto. Um derivativo e uma compensação para
a insatisfação pulsional. Em lugar de apenas perguntar sobre a excitação
subjacente e o conteúdo das fantasias derivadas do impulso presentes nos
produtos culturais, Winnicott faz a pergunta fundamental : onde está localizada
a experiência cultural?
Ele a responde encontrando, primeiro, as etapas
constitutivas do espaço em que se situam o bebê e o ambiente e onde se dá a
experiência; depois, discernindo
os ritmos e as temporalidades em que esta localização ocorre. Diz ele:
"Nos estudos psicanalíticos, o tema do
brincar já foi intimamente e em demasia vinculado à masturbação e às variadas
experiências sensuais. É verdade que quando nos defrontamos com a masturbação,
sempre pensamos: qual é a fantasia? E é também verdade que, observando o
brincar, tendemos a ficar imaginando qual é a excitação física que está
vinculada ao tipo de brincadeira a que assistimos. Mas o brincar precisa ser
estudado como um tema em si mesmo, suplementar ao conceito de sublimação do instinto"(
pg. 60).
Quando a excitação aumenta e se torna
predominante, diz Winnicott, acaba a brincadeira. Se a excitação física do envolvimento instintual se torna
evidente,então o brincar se interrompe ou, pelo menos, se estraga, diz ele em
"Brincar: Seu estatuto teorético na
situação clínica" ("Intern. Journal of Psycho-anal"(pg. 49).
Isto separa o cinema como experiência cultural e como pornografia, por exemplo.
Se o objetivo é masturbatório ou excitante, não estamos mais na área
intermediária. Estamos no terreno da fuga para o real ou para a concretude
alucinatória. Também se pode pensar em uma passagem ao ato e o bloqueio do
simbólico. Acabou a área de repouso representada pela transicionalidade ou a
criatividade contidas no brincar ou no objeto propriamente cultural, cujo
orgasmo proporcionado é o do ego.
Um filme como Matrix, aparentemente de
ficção científica, em que foi dita a frase celebrizada intelectualmente por
Slavoj Zizek -- "Bem-vindos ao
deserto do Real"-- remete-nos a uma experiência ao mesmo tempo verossímil
e falsa. Verossímil, porque o mundo da
eletrônica computacional torna quase possível uma "realidade virtual"
como a de Neo e de seus companheiros. Falsa, porque sabemos que é apenas um
filme.
No entanto, a impressão e a vivência de que
estamos mergulhados nesse mundo transcendente e
traumático, espelham e nos fazem
sentir, em parte, nossa alienação e robotização contemporâneos.Saímos aliviados
do cinema quando constatamos que era apenas um filme. Digo que era um filme
aparentemente de ficção e futurologia por isso mesmo: ele fala do nosso
presente. Estamos, talvez, à espera de um novo Neo que possa nos salvar.
Quanto à realidade virtual, não pode ser
confundida com espaço potencial, que é vivo, é área de jogo vital. O cinema é o
jogo entre a subjetividade e a objetivação. É vida. A realidade virtual lembra
o ascetismo da sociedade contemporânea: é preciso sacrifício na academia, malhando,comer
alimento sem gordura, beber leite sem
lactose e sem proteína, frutas desidratadas, tomar café descafeinado. Não é
café , mas tem gosto e cheiro de café.
É a forma sem o conteúdo. A forma
sem o núcleo duro do real, como dizem os lacanianos. O ser sem a sua substância.
Muitos interpretaram Neo como um novo
Cristo, um Messias, o que, aliás, o próprio roteiro do filme sugere. Mas isso
não é o mais importante. Como não é importante, a meu ver, distinguir o que é
real e o que é imaginário em relação à vida atual, com base na ciência ou no
avanços tecnológicos, o que seria capaz de dar um sentido realista à história
contada.
A função de um filme como Matrix é
semelhante à dos mitos dos nossos ancestrais gregos e dos romances de aventura
que começaram com a saga do cavaleiro da Triste Figura, D. Quixote de La Mancha.
Além do enorme poder simbólico que possuem, transportam-nos para o registro intermediário que nos faz
descansar da luta infinita do Princípio do Prazer com o P. de Realidade. Uma área de repouso, sem
dúvida, mas tão precária quanto o brincar, pois ameaça permanentemente romper a
linha entre o objeto subjetivo e a realidade compartilhada objetivamente
percebida.
Winnicott demonstrou com certa clareza que
não temos jamais a realidade 100% objetivamente percebida. André Bazin, o mais
famoso crítico de cinema da primeira até
a segunda metade do século passado, autor da primeira grande teoria sobre o
cinema, concordaria com ele. Depois de centenas de entrevistas com cineastas
como Orson Welles, Chaplin,Antonioni, Howard Hawks, Roberto Rossellini, Alfred
Hitchcock, Carl Dreyer, Buñuel e muitos
outros, o francês Bazin, fundador do célebre "Cahiers du Cinéma",
disse que o cinema pertence a uma fronteira entre a realidade e a fantasia, usa
a mentira para dizer verdades e as imagens para criar novas realidades.
Fellini , num último documentário em
vida sobre sua obra, declarou: "Sou
um mentiroso. Invento mentiras e espero que o espectador acredite nelas. E o
mais curioso é que o efeito é fascinante. Todos acreditam".
Winnicott demonstrou ainda que o Princípio
de Realidade é um insulto. Fugimos dele como do Diabo de "O
Exorcista" ou do maluco de "O Iluminado".Ao contrário da
psicanálise clássica, Winnicott não via a onipotência narcísica primordial como
necessariamente negativa e nem considerava a frustração pela realidade como um
bem positivo a ser conquistado, até porque a frustração e a desilusão são
inevitáveis. Ele situava esses fenômeno como parte de um jogo intermitente de
resgate da onipotência ao longo da vida, pois a psique considera o principio de
realidade um insulto e tenta ganhar terreno intermitentemente contra ele. A
frustração humana não deve ser vista como um valor especial nem como
instrumento privilegiado. A reconciliação com o princípio de realidade nunca se
dá de forma rasa e absoluta, mas no plano da experiência, quando esta vem
envolta em criação e, portanto, de um colorido que resulta na capacidade de
espontaneidade e de estar vivo.
No cinema,
há uma identificação onipotente do espectador com as cenas, gratificando
até mesmo pulsões de curiosidade e voyeurismo sobre a cena primária. Mas há
também um convite da cultura para que essa gratificação fique no registro
imagético. "É só um filme".
Esse campo relacional entre o indivíduo que vê e o filme que se oferece
é o jogo transicional. As identificações e os sonhos se dão dentro desse campo
de colorido lúdico.
Lembra um pouco a situação analítica entre o
indivíduo que traz sua força identificatória e convive com um outro que se
oferece como tela transferencial e
contra-transferencial para suas projeções e seus sonhos. Se saírem da linha
demarcatória desse campo a cena pode virar passagem ao ato, concretização,
excitação ou mesmo violência e pornografia.
O cinema, como a transferência, pressupõe
um certo grau de ilusão. Se fosse uma alucinação , depois de uma sessão de
um bom ou mau filme o espectador seria
transportado para a ela e lá ficaria aprisionado. Não retornaria para a
realidade cotidiana. A ilusão é , portanto, bem diferente da alucinação.
AS LACUNAS NA
TRANSICIONALIDADE
Há
dois furos , contudo, na teoria da transicionalidade de Winnicott.. Um deles é
que Winnicott não explica como se passa de uma experiência particular com o
objeto transicional, a posse não eu, para a experiência mais amplamente comum,
como diz Adam Phillips (pg. 166-167). Em outras palavras, como se passa de um
ursinho pessoal para o prazer de ler Guimarães Rosa.
Uma das razões dessa dificuldade, penso eu, decorre
do segundo furo: é que a teoria da sublimação e a da transicionalidade foram
apenas acopladas em Winnicott, mas não resolvidas. Ele pensou a passagem do
bebê para o objeto transicional nas condições restritas do ambiente-mãe, mas
não investigou o que toda a cultura , no seu conjunto, exige de sacrifício do
bebê para que seja capaz de absorver linguagem, valores e domesticar-se de
acordo com os moldes representacionais dessa sociedade determinada. A mãe é
também a História e a Linguagem. Uma parte da sublimação é feita por imposição
de uma estrutura lingüística que, por
sua vez, é ela própria sublimada. Uma criança nasce dentro dessas condições de
possibilidade e é como se fosse exigido
dela: seja capaz de sublimar pela via da linguagem e dos símbolos dados, além
de transitar pela brincadeira até à cultura. A cultura espera algo dessa
criança e não é pouco.
Pode-se até dizer que, ainda bem, existem
as artes, os jogos e algo como o cinema. Pois a imposição sobre o humano não é
fácil. Há um caminho alternativo , diz
Winnicott, que é dar colorido à vida.
Lembro-me que , quando bem jovem e estudante
, eu matava às vezes as aulas para ir ao cinema, nas matinês, no ginásio, ou à
noite, no curso noturno do colegial.No escuro do cinema, fixado na tela
colorida ou em branco e preto, aprendi a modular emoções , a sofrer com o
mocinho, a balear os bandidos, a amar a garota linda e a ter esperança no
futuro.
O cinema brinca , com freqüência, com sua
própria natureza. Há filmes reflexivos sobre o próprio cinema, sobretudo na
chamada modernidade tardia, com os herdeiros da "nouvelle vague" ou
com os filmes de Woody Allen, onde uma personagem sai da tela para conversar
com a fã cinéfila ou os atores se dirigem diretamente aos espectadores,
convidando-os a dar palpite na história.Essa metalinguagem nos lembra sempre da
linha demarcatória entre o objeto subjetivo e o objeto objetivamente percebido.
Boa parte da nossa sensibilidade foi moldada
pelo cinema. Mesmo quando os filmes de Hollywood eram tendenciosos , como aqueles que nos influenciaram a odiar
os nazistas ou a ver os japoneses como traiçoeiros e cruéis. Mas até nesses
filmes B de propaganda havia algo de humano sobre a coragem e a dor da
violência e da guerra.
Depois disso, surgiram
filmes mais sofisticados, mostrando áreas mais complexas dos seres humanos,
como os de Truffaut, Godard ou Ingmar Bergman , que nos introduziam na psicanálise e revelavam
plenamente uma estética capaz de constituir a Sétima Arte.
Nunca me arrependi de ter matado aquelas
aulas.
NOTAS
BIBLIOGRÁFICAS
(1) "O Brincar e a
Realidade, D.W.Winnicot", Imago Editora Ltda., 1975.
(2) "A Clínica da
Ilusão e sua Epistemologia", Reinaldo Lobo, Rabisco, n°1, vol.3, maio de
2013.
(3) "Como ler Lacan",
Slavoj Zizek. Ed. Zahar, 2010.
(4) "Winnicott",
Adam Phillips, Ed .Idéias e Letras, 2006.