terça-feira, 20 de maio de 2014

CINEMA: REALIDADE, ILUSÃO.


                                                                                                             Reinaldo Lobo*

 

     A sessão de cinema está começando e aparece na tela o letreiro: "Isto é uma obra de ficção. As personagens deste filme são fictícias. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera coincidência".

     Por que esse aviso é necessário? Existem, é claro, problemas legais; alguém pode se sentir representado na história e ofender-se ao ponto de processar os roteiristas, os produtores e o diretor da obra cinematográfica. A frase é necessária, em parte, para proteger legalmente todos os que investiram no filme. Mas não é só isso. Indica também a linha demarcatória teórica entre o objeto subjetivo e o objeto objetivamente percebido na realidade compartilhada.

     O cinema pressupõe, portanto, algum grau de ilusão. Estamos no preâmbulo da transicionalidade. Situamo-nos, por enquanto, naquele território intermediário que sustenta a verossimilhança e a crença. São bastante conhecidos, por exemplo, os casos daquelas pessoas que ficam aquém da linha demarcatória e chegam a atacar atores na rua porque odeiam suas personagens nas novelas da TV. Algumas dessas pessoas deslizaram para uma crença tão forte que constitui uma alucinação.

    Ilusão não é, para nós, uma percepção distorcida de um objeto real nem tem o sentido comum atribuído pela fé perceptiva de erro, engano, imagem distorcida (ilusão de ótica), armadilha, trapaça (iludir alguém) ou de visão parcial de algo. Ilusão constitui, em nossa perspectiva conceitual, o efeito de criação decorrente da relação do sujeito com o objeto subjetivo(1). Quando essa relação não transita para o objeto não-eu e para  o brincar, temos a patologia.

   Esta é uma idéia, como todos sabem, proveniente da obra de Winnicott e bastante especificada em "O Brincar e a Realidade" como um pressuposto básico dos  fenômenos transicionais e do aparecimento  do objeto transicional. Logo no início, o bebê cria e encontra um objeto -- o seio. O objeto subjetivo é, primeiro, uma criação do bebê.

   Winnicott sugeria que ele era um autor para ser usado. Pois o estou usando para entender um pouco o cinema. Por isso, tomo a ilusão como ponto de partida e como base da crença na "realidade" do que se passa na tela. Quando psicanalistas falam de um filme tendem a prestar a atenção no conteúdo das cenas e no seu significado. Muitas vezes, psicanalisam uma personagem como se fosse um paciente. Em outras, aplicam o método psicanalítico para compreender toda a obra cinematográfica ou a sua temática. Não é uma crítica. Às vezes, isso é interessante e importante. 

    Há, contudo, um outro ângulo para ver um filme, que é desconstruir o próprio cinema e o que ele provoca em nós, espectadores e cinéfilos. O cinema é uma composição de fotogramas postos em sucessão,  o que produz uma ilusão de movimento. O cinema é filho da fotografia, só que posta em ação pela  dinâmica da rapidez da sucessão de imagens e, depois, da edição.

    Antes disso, uma história foi escrita , um roteiro, e alguém se dispôs a dirigir tudo isso, talvez em meio a  inúmeras reuniões  com produtores, atores, maquiadores, cenógrafos, diretor de fotografia e, eventualmente, de efeitos especiais. Tudo isso para produzir algo requintado próximo de um sonho, mas baseado no ponto inicial de ilusão. A ilusão cria uma abertura, uma expectância de um objeto por vir. O que surge desses elementos como produto final é uma espécie de brincar para adultos e crianças.

    O filme passa numa tela como num sonho -- cenas justapostas que acabam formando uma história. Os olhos acompanham quase como no sono REM (Revolutionnary Eyes Mouvement), seguindo as cenas de alto a baixo, da esquerda para a direita ou vice-versa. Freqüentemente, pacientes dizem no divã os seguintes lapsos: "Ontem, vi um sonho, quer dizer, um filme..." ou, então, "Esta noite tive um filme, quer dizer, um sonho...".

    O cinema se esforça para realizar não algo totalmente verdadeiro, mas verossímil. Nem o documentário se apresenta como a "realidade", mas como uma visão dela. Muitas vezes nem precisa ser tão verossímil, como nas histórias de "Harry Potter", o "Senhor dos Anéis" e outras. Basta que se entre na brincadeira.

    Um filme, nós bem o sabemos, está naquela terceira área da experiência, que não é interna nem externa. Situa-se no espaço que os objetos culturais ocupam -- o espaço potencial entre a realidade e a fantasia.

    Para o cinema existir, é necessário que haja primordialmente "um sujeito suposto crer", como também diz Slavoj Zizek (em "Como Ler Lacan", pg. 40), que seria para os lacanianos o traço constitutivo da ordem simbólica.  Esse sujeito, do nosso ponto de vista, é o da ilusão no sentido de Winnicott, pois é condição de possibilidade da transicionalidade e , portanto, de toda possibilidade de simbolização.

                              UMA LACUNA NA TEORIA DA SUBLIMAÇÂO

   Winnicott sugere no "Brincar e a Realidade" que havia um branco na teoria da sublimação de Freud e na sua concepção do lugar dos objetos culturais. A sublimação é apresentada apenas como um deslocamento no alvo do instinto. Um derivativo e uma compensação para a insatisfação pulsional. Em lugar de apenas perguntar sobre a excitação subjacente e o conteúdo das fantasias derivadas do impulso presentes nos produtos culturais, Winnicott faz a pergunta fundamental : onde está localizada a experiência cultural?

   Ele a responde  encontrando, primeiro, as etapas constitutivas do espaço em que se situam o bebê e o ambiente e onde se  dá a  experiência; depois,  discernindo os ritmos e as temporalidades em que esta localização ocorre. Diz ele:

   "Nos estudos psicanalíticos, o tema do brincar já foi intimamente e em demasia vinculado à masturbação e às variadas experiências sensuais. É verdade que quando nos defrontamos com a masturbação, sempre pensamos: qual é a fantasia? E é também verdade que, observando o brincar, tendemos a ficar imaginando qual é a excitação física que está vinculada ao tipo de brincadeira a que assistimos. Mas o brincar precisa ser estudado  como um tema  em si mesmo, suplementar  ao conceito de sublimação do instinto"( pg. 60).

   Quando a excitação aumenta e se torna predominante, diz Winnicott, acaba a brincadeira. Se a excitação física  do envolvimento instintual se torna evidente,então o brincar se interrompe ou, pelo menos, se estraga, diz ele em "Brincar: Seu estatuto teorético na situação clínica" ("Intern. Journal of Psycho-anal"(pg. 49). Isto separa o cinema como experiência cultural e como pornografia, por exemplo. Se o objetivo é masturbatório ou excitante, não estamos mais na área intermediária. Estamos no terreno da fuga para o real ou para a concretude alucinatória. Também se pode pensar em uma passagem ao ato e o bloqueio do simbólico. Acabou a área de repouso representada pela transicionalidade ou a criatividade contidas no brincar ou no objeto propriamente cultural, cujo orgasmo proporcionado é o do ego.

    Um filme como Matrix, aparentemente de ficção científica, em que foi dita a frase celebrizada intelectualmente por Slavoj Zizek  -- "Bem-vindos ao deserto do Real"-- remete-nos a uma experiência ao mesmo tempo verossímil e falsa. Verossímil, porque  o mundo da eletrônica computacional torna quase possível uma "realidade virtual" como a de Neo e de seus companheiros. Falsa, porque sabemos que é apenas um filme.

    No entanto, a impressão e a vivência de que estamos mergulhados nesse mundo transcendente e  traumático,  espelham e nos fazem sentir, em parte, nossa alienação e robotização contemporâneos.Saímos aliviados do cinema quando constatamos que era apenas um filme. Digo que era um filme aparentemente de ficção e futurologia por isso mesmo: ele fala do nosso presente. Estamos, talvez, à espera de um novo Neo que possa nos salvar.

    Quanto à realidade virtual, não pode ser confundida com espaço potencial, que é vivo, é área de jogo vital. O cinema é o jogo entre a subjetividade e a objetivação. É vida. A realidade virtual lembra o ascetismo da sociedade contemporânea: é preciso  sacrifício na academia, malhando,comer alimento sem gordura, beber  leite sem lactose e sem proteína, frutas desidratadas, tomar café descafeinado. Não é café , mas tem gosto e cheiro de café.    É a forma sem o conteúdo.  A forma sem o núcleo duro do real, como dizem os lacanianos. O ser sem a sua substância.

   Muitos interpretaram Neo como um novo Cristo, um Messias, o que, aliás, o próprio roteiro do filme sugere. Mas isso não é o mais importante. Como não é importante, a meu ver, distinguir o que é real e o que é imaginário em relação à vida atual, com base na ciência ou no avanços tecnológicos, o que seria capaz de dar um sentido realista à história contada.

   A função de um filme como Matrix é semelhante à dos mitos dos nossos ancestrais gregos e dos romances de aventura que começaram com a saga do cavaleiro da Triste Figura, D. Quixote de La Mancha. Além do enorme poder simbólico que possuem, transportam-nos  para o registro intermediário que nos faz descansar da luta infinita do Princípio do Prazer com o  P. de Realidade. Uma área de repouso, sem dúvida, mas tão precária quanto o brincar, pois ameaça permanentemente romper a linha entre o objeto subjetivo e a realidade compartilhada objetivamente percebida. 

    Winnicott demonstrou com certa clareza que não temos jamais a realidade 100% objetivamente percebida. André Bazin, o mais famoso crítico de cinema  da primeira até a segunda metade do século passado, autor da primeira grande teoria sobre o cinema, concordaria com ele. Depois de centenas de entrevistas com cineastas como Orson Welles, Chaplin,Antonioni, Howard Hawks, Roberto Rossellini, Alfred Hitchcock,  Carl Dreyer, Buñuel e muitos outros, o francês Bazin, fundador do célebre "Cahiers du Cinéma", disse que o cinema pertence a uma fronteira entre a realidade e a fantasia, usa a mentira para dizer verdades e as imagens para criar novas realidades.

    Fellini , num último documentário em vida  sobre sua obra, declarou: "Sou um mentiroso. Invento mentiras e espero que o espectador acredite nelas. E o mais curioso é que o efeito é fascinante. Todos acreditam".

    Winnicott demonstrou ainda que o Princípio de Realidade é um insulto. Fugimos dele como do Diabo de "O Exorcista" ou do maluco de "O Iluminado".Ao contrário da psicanálise clássica, Winnicott não via a onipotência narcísica primordial como necessariamente negativa e nem considerava a frustração pela realidade como um bem positivo a ser conquistado, até porque a frustração e a desilusão são inevitáveis. Ele situava esses fenômeno como parte de um jogo intermitente de resgate da onipotência ao longo da vida, pois a psique considera o principio de realidade um insulto e tenta ganhar terreno intermitentemente contra ele. A frustração humana não deve ser vista como um valor especial nem como instrumento privilegiado. A reconciliação com o princípio de realidade nunca se dá de forma rasa e absoluta, mas no plano da experiência, quando esta vem envolta em criação e, portanto, de um colorido que resulta na capacidade de espontaneidade e de estar vivo.

   No cinema,  há uma identificação onipotente do espectador com as cenas, gratificando até mesmo pulsões de curiosidade e voyeurismo sobre a cena primária. Mas há também um convite da cultura para que essa gratificação fique no registro imagético. "É só um filme".  Esse campo relacional entre o indivíduo que vê e o filme que se oferece é o jogo transicional. As identificações e os sonhos se dão dentro desse campo de colorido lúdico.

    Lembra um pouco a situação analítica entre o indivíduo que traz sua força identificatória e convive com um outro que se oferece como tela transferencial  e contra-transferencial para suas projeções e seus sonhos. Se saírem da linha demarcatória desse campo a cena pode virar passagem ao ato, concretização, excitação ou mesmo violência e pornografia.

    O cinema, como a transferência, pressupõe um certo grau de ilusão. Se fosse uma alucinação , depois de uma sessão de um  bom ou mau filme o espectador seria transportado para a ela e lá ficaria aprisionado. Não retornaria para a realidade cotidiana. A ilusão é , portanto, bem diferente da alucinação.

                     

                     AS LACUNAS NA TRANSICIONALIDADE

 

   Há dois furos , contudo, na teoria da transicionalidade de Winnicott.. Um deles é que Winnicott não explica como se passa de uma experiência particular com o objeto transicional, a posse não eu, para a experiência mais amplamente comum, como diz Adam Phillips (pg. 166-167). Em outras palavras, como se passa de um ursinho pessoal para o prazer de ler Guimarães Rosa.

   Uma das razões dessa dificuldade, penso eu, decorre do segundo furo: é que a teoria da sublimação e a da transicionalidade foram apenas acopladas em Winnicott, mas não resolvidas. Ele pensou a passagem do bebê para o objeto transicional nas condições restritas do ambiente-mãe, mas não investigou o que toda a cultura , no seu conjunto, exige de sacrifício do bebê para que seja capaz de absorver linguagem, valores e domesticar-se de acordo com os moldes representacionais dessa sociedade determinada. A mãe é também a História e a Linguagem. Uma parte da sublimação é feita por imposição de uma estrutura  lingüística que, por sua vez, é ela própria sublimada. Uma criança nasce dentro dessas condições de possibilidade e é como se fosse  exigido dela: seja capaz de sublimar pela via da linguagem e dos símbolos dados, além de transitar pela brincadeira até à cultura. A cultura espera algo dessa criança e não é pouco.

    Pode-se até dizer que, ainda bem, existem as artes, os jogos e algo como o cinema. Pois a imposição sobre o humano não é fácil.  Há um caminho alternativo , diz Winnicott, que é dar colorido à vida.

   Lembro-me que , quando bem jovem e estudante , eu matava às vezes as aulas para ir ao cinema, nas matinês, no ginásio, ou à noite, no curso noturno do colegial.No escuro do cinema, fixado na tela colorida ou em branco e preto, aprendi a modular emoções , a sofrer com o mocinho, a balear os bandidos, a amar a garota linda e a ter esperança no futuro.

  O cinema brinca , com freqüência, com sua própria natureza. Há filmes reflexivos sobre o próprio cinema, sobretudo na chamada modernidade tardia, com os herdeiros da "nouvelle vague" ou com os filmes de Woody Allen, onde uma personagem sai da tela para conversar com a fã cinéfila ou os atores se dirigem diretamente aos espectadores, convidando-os a dar palpite na história.Essa metalinguagem nos lembra sempre da linha demarcatória entre o objeto subjetivo e o objeto objetivamente percebido.

  Boa parte da nossa sensibilidade foi moldada pelo cinema. Mesmo quando os filmes de Hollywood eram tendenciosos  , como aqueles que nos influenciaram a odiar os nazistas ou a ver os japoneses como traiçoeiros e cruéis. Mas até nesses filmes B de propaganda havia algo de humano sobre a coragem e a dor da violência e da guerra.

Depois disso, surgiram filmes mais sofisticados, mostrando áreas mais complexas dos seres humanos, como os de Truffaut, Godard ou Ingmar Bergman  , que nos introduziam na psicanálise e revelavam plenamente uma estética capaz de constituir a Sétima Arte.

  Nunca me arrependi de ter matado aquelas aulas.

 

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

 

(1) "O Brincar e a Realidade, D.W.Winnicot", Imago Editora Ltda., 1975.

(2) "A Clínica da Ilusão e sua Epistemologia", Reinaldo Lobo, Rabisco, n°1, vol.3, maio de 2013.

(3) "Como ler Lacan", Slavoj Zizek. Ed. Zahar, 2010.

(4) "Winnicott", Adam Phillips, Ed .Idéias e Letras, 2006.

   

 

 

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